A profilaxia da peste decorre naturalmente do que se sabe sobre esta doença. Sendo o rato o principal depositario e o inicial reservatorio do virus pestoso, e as pulgas o vector do bacilo, toda a profilaxia tem o intuito de combater o roedor e seus parasitas. Sucede, porém, que as medidas tomadas são quasi sempre tardias e daí a sua ineficácia.
Todo o erro proveio da doutrina estabelecida pela Conferencia Internacional de Paris, de que um porto é considerado infectado quando nele se verificam casos humanos. Como a peste do rato precede a humana e se mantém após a cessação desta, é a peste murina que realmente dá o indice de infestação de um porto.
Ha, pois, a necessidade de manter, nas localidades ameaçadas, um serviço permanente de exame de ratos, única forma de obstar ao desenvolvimento de uma epidemia humana.
Para evitar que ratos pestosos ou pulgas parasitadas sejam importados, teem-se contentado as autoridades sanitarias com a desratização dos navios provindos de localidades infectadas ou suspeitas.
Ora, essa operação, mesmo quando feita com o maior cuidado, é ineficaz, porque incide sobre navios carregados, e as pulgas escondem-se no conteúdo dos sacos, ou entre as fibras destes, escapando á acção dos insecticidas empregados. Em Batavia, Flu observou que mesmo empregando todas as precauções, se matam apenas os ratos, mas que as pulgas escapam. Por conseguinte, o tratamento de um navio carregado não dá resultado eficaz.
É sobre os meios de transporte vazios que deve incidir a operação da desratização, que então não só atinge esse fim, mas ainda destroe as pulgas, que são o mais perigoso agente do contagio.
Experiencias bem conduzidas mostraram que basta fazer o tratamento dos navios despejados todos os três meses, para se obter a quasi completa aniquilação da sua população murina.
Será para desejar, como diz Flu, que se estabeleça, para todos os navios comerciais, uma desratização periodica, sob a inspecção de uma Comissão Internacional.
Á semelhança do que se tem feito nas Indias holandesas, ha que começar a construir nos portos armazens á prova do rato.
Nas varias vacinas antipestosas, a primeira das quais imaginada por Hafkine em 1896, temos um recurso precioso para proteger a população de uma localidade infectada, como no soro antipestoso, primeiro fabricado por Yersin. Calmette e Borel (1895 e 1896), temos um metodo de tratamento da maior eficacia.
Se se chegar a demonstrar que realmente ha virus pestosos pulmo-tropos, tendo predilecção pela localização pulmonar, ha que fabricar soros, partindo dessas bactérias, para o tratamento da pneumonia pestosa primitiva, onde o soro vulgar é quasi sempre sem resultado.
Dois factos bastante importantes para a profilaxia da peste foram recentemente estabelecidos por dois investigadores franceses: a existencia, entre os ratos, de portadores sãos de bacilos pestosos (prof. Tanon), e a existencia no homem de portabacilos sãos. O ultimo pormenor que foi comunicado ao Congresso de Medicina Tropical de Loanda, pelo dr. Marcel Leger, é da maior importancia. Este investigador teve a feliz idéa de puncionar pequenos ganglios indolores de individuos sãos, tendo estado em contacto com pestiferos, e verificou neles a existencia de bacilos pestosos virulentos.
Na profilaxia da peste haverá, pois, de futuro, que contar com estes factos.
O que precede, demonstra quanto já ha feito, e o pouco que resta fazer, para que a peste, que no século XIV fez desaparecer a quarta parte da população da Europa, se torne apenas uma raridade digna de figurar nos livros consagrados á Historia das Epidemias.
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A Europa estava tão longe de contar com a peste que, quando, em 1899, apareceram os primeiros casos no Porto, houve dificuldade em aceitarem o diagnostico que, em breve, era perfeitamente confirmado pela bacteriologia.
O interesse despertado foi tão grande, que ao Porto afluiram missões de quasi todos os países, desde a nossa vizinha Espanha á longiqua Russia. É que por essa altura ainda havia duvidas sobre a eficacia do soro anti-pestoso.
Uma Comissão internacional estudou lá, então, os efeitos do soro, a melhor fórma de o administrar, doses a empregar, etc.
Luis da Camara Pestana, professor da Escola Medica e director do Instituto que hoje tem o seu nome, em plena pujança da sua inteligencia e cheio de patriotismo, não quiz deixar apenas a estrangeiros o estudo desses magnos problemas. Como ainda houvesse no capitulo “peste” muita questão interessante a resolver, decidiu ir colher “in loco” todo o material para uma obra que, integralmente executada, daria a maior honra a Portugal.
Não se calcula o que foi a vida de Camara Pestana, e dos medicos que a seu lado trabalharam, durante esses meses! Vida de intenso labor que se prolongava pela noite dentro.
Durante o dia, nas conferencias, estudava-se a clinica, para avaliar da eficacia do soro, e de noite, até madrugada, no cemiterio do Repouso, faziam-se as necropsias, os exames bateriologicos dos orgãos e a colheita do material para ulteriores estudos.
Habilissimo clinico, o primeiro dos nossos bacteriologistas, era egualmente anatomo-patologista distinto. De forma que em sua volta se agruparam nacionais e estrangeiros, recolhendo da sua boca preciosas lições.
Em novembro, Camara Pestana, que na sua missão patriotica tinha delapidado os seus parcos haveres, resolveu voltar para Lisboa, para o seu Instituto, para estudar todo o precioso material tão laboriosamente colhido.
Na vespera do seu regresso à capital foi procurado por um dos seus colegas, que instou para que ele proprio autopsiasse uma mulher falecida de peste, e a que certo clinico da capital do norte diagnosticára outra afecção. É de saber-se que em tempo de epidemias, que colidem com muito interesse pessoal, ha sempre quem conteste o diagnostico, está estabelecido nas mais sólidas bases.
Camara Pestana anuiu, e essa autopsia transformou-se em pormenorisada lição sobre a doença. Durante horas, Pestana foi colhendo o material necessario para levar o convencimento ao espirito do teimoso adversario.
Como sempre sucedia, ao passo que ele ia examinando as lesões observadas, os seus auxiliares iam fazendo o exame microscépico, de forma que, ao terminar a autopsia, o exame bacteriologico estava egualmente concluido.
Finda a autopsia, ao lavar-se, notou Pestana que tinha na mão uma pequena ferida, que foi imediatamente tratada . Já era, porém, tarde!
O caso era de uma grave septicemia e fôra excepcionalmente demorado o contacto com o material virulento, de forma que, quando Pestana regressou a Lisboa, era já portador da doença que o havia de vitimar.
Dias depois, Pestana sucumbia com 33 anos de idade, a uma pneumonia pestosa, secundaria ao bubão axilar que contraira naquela malfadada autopsia.
Foi uma irreparavel perda para a sciencia portuguesa.
Toda a sua vida fôra consagrada a aliviar os males da humanidade, e no seu activo contava já, com tão curta idade, uma série de interessantes trabalhos.
Criador do serviço anti-difterico, a par de trabalhos clinicos de muito valor, Camara Pestana iniciou em Portugal certas medidad profilaticas contra a difteria, que outras nações, das mais cultas, haviam de imitar.
O estudo da epidemia coleriforme de 1894 foi um dos melhores trabalhos de Pestana e mereceu o maior dos elogios, da parte do grande bacteriologista Kock.
A sua tese de concurso, sobre a soroterapia, é cheia de factos de maior interesse.
Enfim, o remate da sua vida foi quanto ha de mais belo. Fôra o seu alto patriotismo que o mantivera no Porto, e o acrisolado amor da verdade que, afinal, o vitimou.
A vida de Camara Pestana é um exemplo que deve ser apontado a todos os que ambicionam colaborar na dignificação da nossa Pátria.
Prof. Carlos França