Todas as observações de Marte, e principalmente as que foram feitas em Agosto do ano passado, provam que aquele planeta não deve por mais tempo ser considerado inacessivel ás investigações dos astronomos terrestres. O planeta foi-nos revelado como outra terra analoga á nossa, em certos respeitos, apesar de ser completamente diferente noutros, principalmente no que diz respeito às suas dimensões.
É provavelmente um planeta mais antigo do que o nosso e mais arido e seco. A agua na sua superficie tornou-se rara, e em vez de oceanos imensos como os nossos, parece ter sómente um numero de mares, grandes lagos, e um sistema singular de irrigação, tão diferente de qualquer coisa conhecida na terra, que a sua natureza ainda não foi determinada com precisão.
Tem-se dito muito acerca dos canaes de Marte. O astronomo americano Lowell, um dos mais eminentes observadores de Marte, chegou à conclusão de que esses canaes são construções artificiaes, o trabalho de engenheiros de Marte, e que são usados para conduzir a todas as latitudes a agua formada pelas neves derretidas nos polos, afim de assegurar uma irrigação adequada nas partes daquele planeta, em que a agua escasseia.
Esta hipotese de Lowell é bastante atractiva, mas ainda não foi provada. Na realidade, a existencia destes “canaes” representados por uma rede geometrica de linhas finas, parece ser ilusoria.
De facto, ha muita falta de agua em Marte, e a maior parte da sua superficie deve ser deserta, muito similhante ao Sahará. São estas areas desertas que teem levado alguns observadores de Marte á conclusão de que aquele planeta é desabitado e impossivel de ser habitado, por isso que as regiões desertas do nosso planeta representam aos nossos olhos o extremo de desolação, isolamento, silencio e a ausencia de animação, de actividade, de vida.
Mas isto é julgar a questão sob um ponto de vista terreno. Suponhamos que um jornalista de Marte entrevista um astronomo daquele planeta, um habil teorico e matematico, e o consulta sobre a possibilidade do nosso planeta ser habitado. A sua conversa, sem duvida, discorreria da seguinte forma:
- É a terra um corpo celeste habitado por uma raça inteligente? – preguntaria o jornalista.
Um mundo de peixes
-Impossivel – responderia o astronomo – É um mundo de peixes, porque a sua superficie é coberta de agua em proporções formidaveis. A agua cobre quasi tres quartas partes da sua area total, e assim, os seus continentes ocupam uma porção tão insignificante da sua face, que não pode haver logar para a evolução de seres pensadores.
Esta declaração peremptoria seria perdoavel, porque as condições de observação da terra, para um habitante de Marte, são menos favoraveis do que aqueles sob as quaes podemos observar Marte, por isso que, quando os dois planetas estão no ponto da sua maior aproximação um do outro, Marte vê a terra como nós vemos Venus, isso é, na forma dum crescente luminoso nos ceus estrelados.
É muito natural que desejassemos saber qual é a forma do homem de Marte.
Primeiro que tudo, ha homens em Marte? É a vida possivel ali?
O motivo principal porque muita gente não acredita na existencia de vidas em Marte, é a temperatura baixissima que ali deve prevalecer, devido á sua distancia do sol.
Mas isto não é a razão suficiente, porque a temperatura de um planeta depende tambem – e principalmente - na constituição fisica e quimica da atmosfera. As experiencias que foram feitas, muito recentemente, nos observatorios de Lowell, Flagstaff e Arizona, pelo metodo thermo-electrico são absolutamente conclusivas neste ponto. Estas experiencias indicaram que Marte gosa uma temperatura media de 59 a 64 graus Fahr.
As noites são frigidas
As porções mais claras do planeta teem uma temperatura de 5 a 45 graus Fahr., e as porções mais escuras, de 54 a 72.
Como a atmosfera é em geral limpida, os dias em Marte talvez sejam muito quentes – mesmo muito mais quentes do que os dias quentes nas nossas regiões temperadas – e as noites muito frias. Isto é confirmado pela presença numa geada branca e nuvens ao nascer do sol, mostrando a condensação da atmosfera durante a noite.
Assim, a temperatura geral de Marte talvez seja muitissimo diferente da nossa terra.
Esta ideia é suportada pelo desaparecimento visivel das neves polares que nós podemos ver derreter de dia a dia na primavera e verão, para reaparecerem durante o outono e inverno. Parece tambem, que a quantidade, profundidade e conducta destas neves polares em Marte, dependem na actividade do sol.
Muito parecido com a terra
Assim, durante as observações do ano passado, ou seja equivalente a dizer-se, no dia seguinte ao do periodo da minima actividade solar, que cahiu em 1923, (um periodo caracterisado pela raridade de manchas visiveis no sol) as neves das regiões do polo sul de Marte, que então estavam voltadas para a terra, eram singularmente vastas.
No meio da primavera, a porção branca do Artico daquele planeta prolongava-se nas latitudes de Marte até um ponto, correspondente na terra, ás da costa norte da Escocia e ilhas Hebridas, e teria coberto o paralelo de Stockholmo, Oslo e Petrogrado, etc., mostrando a presença, em Marte, dum inverno excepcionalmente rigoroso.
Estas neves derreteram muito lentamente, e até no meio do verão, havia logares onde ela tinha resistido aos raios do sol. Este fenomeno foi tambem observado em 1913, o periodo precedente de minima actividade solar, ao passo que em 1894, um ano de calor solar maximo, as neves desapareceram rapidamente, não deixando vestigios.
Assim é que, relativamente á temperatura, Marte parece-se com a terra. Alem disso, as estações apesar de serem duas vezes tão longas como as nossas, da mesma forma que os anos, são duma intensidade similhante, e o efeito das estações é claramente manifesto nas variações de forma e côr, dos terrenos, sob o pezo de qualquer vegetação desconhecida que se desenvolve nas planicies, pela agua que vem das neves, derretidas nos polos.
A gravidade especifica de Marte é sómente 0,37 da terra; quere isto dizer que um homem que na terra pesasse 160 libras, em Marte pesaria somente cerca de 69 libras.
A densidade e pressão da atmosfera apresentam uma grande diferença das condições existentes na terra. A evaporação deve ser facil e rapida, e a agua provavelmente ferve a uma temperatura de menos de metade do que é necessario para ferver na terra.
p. 2 A pressão barometrica talvez seja tambem cerca de um terço do que é no nosso globo. Noutras palavras, a pressão em Marte, ao nivel do mar, será pouco mais ou menos o que é na terra, no cimo do Monte Evereste.
A prevalencia de taes condições, significa que os habitantes de Marte, se é que os há, não podem de forma alguma parecer-se conosco, e, bem entendido, um homem biologicamente não tem a forma humana, deve por nós ser considerado um monstro.
Podemos nós desenhar aqueles monstros com o auxilio dos factos conhecidos pela sciencia ácerca de Marte? Já tentaram fazel-o, novelistas e sabios.
Um eminente naturalista francez, M. Edmond Perrier curador do Museu de Paris, respondendo a uma pregunta que lhe foi feita, disse que Marte era um planeta de flôres e borboletas.
Os insectos são enormes
Devido á densidade infima de atmosfera, as arvores e a herva devem crescer muito mais, os frutos serão muito maiores e mais abundantes, e os insectos são enormes. Os repteis devem ser mais compridos e delgados e os crocodilhos devem ser abundantes.
Os passaros devem ter proporções gigantescas e as variedades dos que cantam devem redominar. Os animaes mamiferos devem ter uma pele muito grossa, mas serão tão leves do pé como os nossos antilopes, e os campos devem estar semeados de gazelas animadas. O urso de Marte não é um animal tão pesado como o seu irmão terrestre, mas será mais parecido com um cão.
Relativamente aos homens de Marte, M. Perrier diz que são excepcionalmente altos, em parte, devido à baixa gravidade especifica, e louros como os escandinavos, devido à natureza da luz em Marte, com grandes craneos e cabeças enormes. Ele diz que eles são superiores a nós, e que a sua organisação social é perfeita.
A vida é barata em Marte
Seja isto ou não uma concepção verdadeira, o que é certo é que os habitantes de Marte, assumindo que os ha, são mais ageis do que nós e até se pode conjecturar que eles são seres aereos, em vez de estarem ancorados na terra como nós.
Talvez que, relativamente a eu considerar Marte uma terra de passaros e de seres humanos parecidos com passaros, eu seja acusado de me parecer com o imaginario astronomo de Marte que pensou que a terra devia ser um mundo de peixes.
Uma coisa que é incontestável é que, sendo o ano em Marte do dobro da duração do nosso – a sua duração é 686 dias, 23 h. 30 m e 41 s. – um homem que na terra tem noventa e quatro anos de edade, teria em Marte somente cincoenta. Isto é uma vantagem distincta.
Desde que tudo é mais leve em Marte do que aqui, o alimento dos seus habitantes é tambem provavelmente menos solido do que o nosso. Não é absurdo supor-se que existe em Marte uma atmosfera nutritiva da qual os habitantes tiram a sua subsistencia; isto é uma ideia que eu já insinuei no meu pequeno livro, “Lumen”.
Numa terra tão feliz nunca os seus habitantes serão confrontados pelo problema do custo elevado de vida.
Assumindo que isto representa um quadro fiel da vida em Marte, é certo que os habitantes não terão aparelho digestivo, nem dentes (por isso que não terão de mastigar) e nunca sofrerão de apendicites.
Mas com certeza serão munidos com qualquer orgão especial, proprio para o seu metodo de alimentação. Bem entendido, não ha nada que prove que isto seja verdadeiro, mas é uma suposição completamente razoavel, em vista do seu pouco peso especifico.
Nestes outros mundos altamente electrisados, é possível que os habitantes possuam um senso electrico que não podemos imaginar. A sua vista talvez seja tambem constituida por raios ultra violeta e os seus olhos não teem nada por conseguinte, em comum com os nossos.
Uma coisa de que nos podemos certificar é que tudo indica uma diferença de aspecto entre os habitantes de Marte e os da terra, por isso que o organismo humano é em producto do planeta em que ele foi creado.
(Do Boston Sunday Advertiser)
Camilo Flammarion - "Os habitantes de Marte talvez se alimentem do ar - Nunca naquela terra feliz são os seus habitantes confrontados com o problema do custo elevado da vida"
in Diário dos Açores
de 30 de Julho de 1925, nº. 9998, p. 1-2 (col. 4-7; 4-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1241.