Chronica scientifica

Depuração das aguas de alimentação – Inquinação das aguas potaveis causa de doenças epidemicas e endemicas – O cholera e a febre typhoide propagados pela agua – O que succede em Portugal, no estrangeiro e nas colonias – Não basta captar as aguas; é preciso purifical-as – Estudos e processos – Purificação das aguas de exgotos – Abastecimento industrial – Aguas de alimentação – Filtros oxydantes – Opinião de Grandeau – Resultados praticos – vindos tirados de Inglaterra

A purificação das aguas destinadas á alimentação é um destes problemas de importancia vital. Como tudo que diz respeito á salubridade das populações e [sic] de uma actualidade que as difficuldades da solução tornam constante, bem assim as exigencias crescentes da hygiene que attribue á impureza das aguas potaveis grande numero de doenças, que deveriam ser e são, mais evitaveis do que faceis de curar. Estão neste numero o cholera, a febre typhoide, as infecções colibacillares e diversas afecções parasitarias que se transmittem pelas aguas alimentares.

Todos os annos por esta epoca as febres infecciosas de origem hydrica retomam o seu incremento epidemico mais ou menos assustador, renovando a actualidade deste assumpto e estimulando o zelo das auctoridades municipaes e sanitarias, para debellar a origem do mal, diga-se a verdade, poucas vezes com exito completo, pois ha localidades que todos os annos na declinação da quadra estival pagam funebre tributo aquelles males.

O facto d’esta ordem succedido ultimamente no Entroncamento basta na sua significativa simplicidade para comprovar o que afirmamos, pois não resta duvidas de que a especie de endemia ali propagada é devida á inquinação das aguas de abastecimento.

O que de analogo succede em França, na Allemanha, em toda a parte, principalmente nas possessões coloniaes, onde a agua é por vezes pessima, é de molde a fazer convergir as attenções das auctoridades e do publico para o importantissimo trabalho de restituir ás aguas de alimentação a exigivel pureza, principal caracteristico [sic] da sua potabilidade.

Parece á primeira vista que, depois de tão despendiosas obras para captar em longinquas fontes a natural bebida das povoações, com gigantescos aqueductos e complicadas canalisações para a sua distribuição, tudo ficaria no melhor plano para obter um liquido nas condições requeridas pela sanidade publica.

Não é no entanto assim e constitue mesmo engano ingenuo suppor que a agua das fontes é o ideal das aguas potaveis, absolutamente destituida de perigos e de germens contaminantes. Não basta ter á disposição uma fonte crystallina e fresca; é preciso purifical-a, o que ha annos pareceria um pleonasmo, um cumulo, uma excentricidade, mas que perante os modernos conhecimentos da bacteriologia e da analyse chimico-biologica se ergue como um principio incontestavel, um dever indeclinavel para certas municipalidades.

Que a coisa não é inteiramente facil deduz-se logo do facto da camara de Paris mandar ao estrangeiro averiguar a melhor maneira de conseguir o desideratum dos hygienistas. Conclue-se ainda da confissão dos technicos, a qual faz prever que ainda temos muito a esperar dos processos postos em vigor para aquelle fim, os quaes não representam ainda mais do que um aperfeiçoamento relativo.

Não nos é possivel explanar nesta secção limitada a maneira como se opera, no sentido de alcançar o melhoramento das aguas menos proprias para beber. Convem no entanto pôr o leitor ao corrente do progresso deste systema posto em honra principalmente nas nações do Norte da Europa.

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Por mais que pareça disparatado recordar a este respeito o que já foi dito a proposito da depuração das aguas de exgotto, temos que o fazer pelo menos nos seus traços mais geraes, para dar idéa do modo como se pratica a purificação das aguas potaveis. Estão em uso para o tratamento das primeiras os processos physico-chimicos que consistem essencialmente na combinação de uma filtragem multiplicada, com os resultados da acção bio-chimica dos microbios chamados anaerobios por viverem á custa de um oxygenio que não é o do ar mas sim o das substancias que lhes servem de meio de polulação.

É portanto em parte uma filtração repetida, em parte uma fermentação devida a microrganismos de especies mais ou menos conhecidas, os quaes teem o poder de em pouco tempo liquifazer substancias ternarias (assucar, cellulose, amido) e quaternarias (carne, queijo, residuos azotados provenientes de matadonios e queijarias, etc.). Estas aguas, antes de se estenderem pelas superficies filtrantes, são separadas das materias solidas em suspensão por meio de tanques de decantação e de grades que reteem os corpos mais volumosos. São d’ahi conduzidas por irrigadores especiaes em movimento giratorio para os leitos filtradores formados por camadas de coke, escoria de ferro e outras materias porosas, tendo por entremeio uma espessura de carboferrite (carbonato de ferro natural calcinado). Os efluentes dos successivos tanques depuradores saem cada vez mais limpidos e despovoados da flora bacteriana de modo que, como refere o sr. Grandeau (Bulletin de la Société de l’encoouragement [sic] pour l’industrie nationale), o liquido que sae do ultimo reservatorio é limpido, incolor, inodoro e sem a menor tendencia para a putrefacção. As materias organicas são reduzidas a 90 % e os microrganismos pathogenicos anniquilados.

É escusado dirigil-os para o campo de irrigação, porque satisfazem pelo seu estado de relativa pureza as condições de salubridade indispensaveis. Posto que estes processos purificadores tenham especialmente por fim apropriar uma certa quantidade de agua inutilisada, tornando a capaz para uso industrial (lavagens, abastecimento de caldeiras, etc.) a purificação é tão completa, afirma o mesmo auctor, que os operarios a utilisam como bebida, sem que d’isso resulte nenhum acidente.

Por aqui se vê que a transformação da agua de exgottos em agua potavel não é mera possibilidade, mas uma realidade pratica muito aproveitavel em certas circumstancias.

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Não nos parece que perante estas progressivas descobertas e engenhosas applicações da experiencia chimica se possa duvidar que analogos emprehendimentos dirigidos sobre as correntes de rios e descomplicados até dos tanques de decantação, para o caso desnecessarios, sejam capazes de dar a melhor agua potavel, o que é particularmente interessante para o abastecimento das villas e cidades.

A filtração sobre a carboferrite pode fazer-se sob pressão, em vasos fechados ou á simples pressão d’ar. Sob este principio ha apparelhos, cujo fim é proporcionar uma certa quantidade d’agua em um tempo determinado, empregando o systema da passagem atravez de materiaes porosos e oxydantes, em camadas sobrepostas, á pressão do ar comprimido.

Sabe-se que o funccionamento, a limpeza e a manutenção destes filtros é facil e bastante regular, não sendo despendiosa a sua construcção, a qual se presta sensivelmente a perfectibilisações tendentes a ampliar o emprego de taes machinas. As que se acham instaladas em Hastings (Inglaterra), trabalham ha 4 annos com a mesma regularidade. Para lavagem de uma agua de ribeira, não dispondo de pressão, constroem-se camaras de purificação a descoberto, umas com areia, outras com cascalho e areia e as ultimas com carboferrite, disposta em camadas de cerca de um metro de espessura.

Um dos exemplos mais notaveis da aplicação de similhante systema é a installação ingleza de Egham, onde todos os dias se escoam 7:000 metros cubicos de agua do Tamisa.

Segundo a analyse feita, a materia organica é quasi totalmente eliminada, e o liquido efluente dos machinismos não contem um só microbio.

No fim de contas, a operação é tão facil e pouco custosa, que não duvidamos que ella venha um dia a ser tambem executada com reconhecida vantagem no nosso paiz.

J. Bettencourt Ferreira.