O que vae por ahi
(Chronica lisbonense)
Do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, pedimos venia para transcrever na integra a notavel chronica destinada áquella folha pelo illustre escriptor sr. José Antonio de Freitas.
É ao mesmo tempo uma justa homenagem ao distinctissimo homem de letras que se se [sic] occulta sob o pseudonymo de Raul na sua collaboração para o importante jornal fluminense, e mais um merecido preito á memoria sempre abençoada e querida de Camara Pestana.
Eis o artigo do sr. José Antonio de Freitas:
Lisboa, 19 de dezembro de 1899.
O telegrapho annunciou com certeza a morte do dr. Camara Pestana, esse medico de tão grande talento e de tão largo futuro, contando apenas 36 annos de idade.
Nunca se affirmou de alguem com mais justiça que morreu sem ter dado a medida exacta de si mesmo, levando comsigo os maiores sonhos apenas esboçados. No campo em que exercia a sua actividade, o dr. Pestana era capaz de realisar os planos mais vastos e as concepções mais fortes; possuia a vontade indomita, a iniciativa ousada, a intelligencia a um tempo pratica e ideal – mistura rara de qualidades que constituem o homem de genio. Tel-o-hia elle porventura? Talvez. Nem as occasiões, nem a brevidade da sua existencia lhe permittiram demonstrar que o tivesse; mas o que elle teve sem duvida dentro de si foi uma chamma intensa, como teem poucos homens, e essa chamma – ai, de nós! extinguiu-se bruscamente sem ter luzido com todo o seu poder illuminante.
Em Portugal a Patria e a Sciencia estão de luto, pois a proposito da morte do Pestana pode-se repetir a phrase de Montecuccolli por occasião da morte de Turenne, seu adversario: «Acaba de morrer um homem, que fazia honra ao homem.»
E, com effeito, toda a gente louva, todas as corporações se aprestam para louvar dignamente o talento scientifico do eminente professor, a elevação e alcance das suas vistas, a segurança dos seus processos, a paciencia das suas investigações, o rigor das suas experiencias, a energia do seu trabalho, a lucidez dos seus escriptos. Pois a sua vida não é menos admiravel do que a sua obra. Tambem o homem particular foi acima de todo o elogio, tambem deu exemplos grandes e numerosos.
Em primeiro logar, era simples, perfeitamente simples, de uma simplicidade que não é a dos bons espiritos, mas sim dos grandes espiritos. De uma familia distincta, mas pobre, vindo d’esse jardim denominado «ilha da Madeira» para a sciencia e para a gloria, que principiava a aureolar-lhe a fronte, não esquecia um instante a pobreza do seu berço, as circumstancias duras em que foi creado e educado. Como que até se comprazia em recordal-as sem ostentação, mas sem constrangimento, com a sua modestia altiva. Querem um exemplo?
A primeira vez que falei ao dr. Pestana, foi no primeiro andar de uma casa do Chiado, esquina do largo dos [sic] Duas Egrejas, onde tinham fundado um posto medico dois facultativos, já illustres, não obstante haverem saido pouco antes das escolas, os drs. Avelino Monteiro e Henrique Schindler. Respirava-se ali uma atmosphera pura e tonificante de alegria e de trabalho. Sobre as mesas havia jornaes, revistas scientificas, grande numero de livros de medicina, de sociologia, de litteratura, de critica. E entre os frequentadores contava-se o dr. Silva Carvalho, hoje um dos clinicos lisbonenses mais conceituados na fama publica; o dr. Hygino de Sousa, escriptor distincto, e não menos distincto especialista de molestias de olhos; o dr. José de Magalhães, medico de marinha, um Caboverdiano esperto como azougue, que defendera uma these notavel sobre o «Pessimismo no ponto de vista da Psychologia morbida», o qual falava de Leopardi, Baudelaire, Schopenhauer, Byron e outros, como se tratasse por tu a todos elles, e discutia Mallarmé, Verlaine e Moréas com grande intelligencia e com todo o palavriado dos nephelibatas.
Dos assiduos só eu não era medico. Por esse motivo, como lá fosse uma vez e me retirasse por não encontrar pessoa alguma, o continuo que valia um dinheirão, perguntado depois se tinha ido alguem durante a ausencia dos donos da casa, respondeu:
- Veiu só aquelle senhor, que costuma a cá vir e… que é doente.
N’aquelle primeiro andar, de que me recordo com viva saudade, assentou um dia arraiaes o dr. Pestana. Levou uma quantidade de frascos com reagentes, e outros que continham microbios do cholera, do cancro, da tuberculose, de tudo quanto ha; e como elle se apelidasse Camara Pestana, e estivesse constantemente de pescoço curvado sobre o microscopio, chamava-lhe eu sempre o Camara Optica.
Desde o terceiro anno da escola que o Pestana principiara a sympathisar com a nascente bacteriologia. Na defeza da sua these, cujo assumpto foi o «Microbio do Carcinoma», revelou o mais decidido pendor para aquella especialidade; e proseguindo [sic] com affinco o mesmo genero de estudos, fazendo varias analyses para a escola na qualidade de preparador da cadeira de histologia, entenderam os seus mestres e collegas que seria conveniente mandal-o a Paris aperfeiçoar se no Instituto Pasteur.
Era ministro do reino o conselheiro Antonio Candido Ribeiro da Costa, que nomeou o Pestana com applauso do publico e jubiloso contentamento dos amigos. Dias depois da nomeação, entro no consultorio. Estava o Camara Optica em exercicio.
- Quer você vêr o bacillus virgula? perguntou-me.
- Ó seu assassino! Eu quero lá vêr isso! Não bastam as virgulas, que sou obrigado a espalhar nas minhas chronicas, ainda quer você mostrar-me outras, que não só dão massadas, mas dão morte!... Veja-as você, e divirta-se.
Em seguida perguntei:
- Quando é a partida?
- Não sei, homem. Estou devéras atrapalhado. Preciso de umas flanellas, um casaco forte, mais umas cousitas, e acho-me litteralmente sem vintem. Vou mesmo assim. Apanho uma pneumonia… mas deixal-o! - Qual vae assim mesmo! Aqui dentro d’esta casa, ha duas, tres, quatro pessoas, que do melhor grado poriam á sua disposição a quantia necessaria para os seus arranjos de viagem. Você não precisa de esmolas, e portanto, quando lhe conviesse, restituiria o dinheiro a quem tivesse a satisfação de lh’o emprestar. Mas que demonio! amanhã póde ter tudo o que lhe falta. Vá procurar o ministro, diga-lhe que precisa indispensavelmente de um adiantamento para a viagem, e o Antonio Candido manda abonar-lhe o necessario.
- Tenho vergonha.
- Qual vergonha! Vá, e está tudo feito.
Decidiu-se a ir, e o ministro logo logo providenciou.
Pois, senhores, o Pestana fallava-me constantemente n’isto. Ainda no dia 28 de setembro (dia dos anniversarios de el-rei e da rainha, e por isso fixei a data) no dia 28 de Setembro tivemos uma larga conversação, de que dei conta n’estas columnas, porque versou quasi toda sobre a peste. Ao vel-o no Café Martinho, onde elle e o irmão faziam horas para tomar o comboio de Cintra, entrei, sentei-me a seu lado e disse-me elle:
- Ora venham lá dois dedos de cavaco ao Camara Optica. Bons tempos, os do consultorio do Schindler!
- Não falle n’isso, que me faz saudades.
- E olhe que me não esqueço do entalão (textual), de que você me livrou, aconselhando-me a ir falar com o ministro do reino.
Desculpem os leitores a narração demasiado longa, mas que demonstra como o Pestana recordava sem ostentação as lutas que tivera no inicio da sua gloriosa carreira.
Como prova de que não esquecia a pobreza do seu berço, é o culto que prestava á memoria do pae, e o amor, a idolatria pela mãe. As palavras que proferiu o seu grande mestre, o immortal Pasteur, defronte do lar paterno, quando, n’uma visita á terra em que nasceu, foi recebido pela municipalidade d’Arbois, podia o Pes[t]ana proferir tambem, se visitasse a ilha da Madeira, porque nutria no seu peito o sentimento que ellas traduziam: «Ó meu pae e minha mãe, que tão modestamente vivestes n’esta pequena casa, é a vós a quem devo tudo. Os teus enthusiasmos, valorosa mãe, transfundiste-os em mim! Se associei constantemente a grandeza da sciencia á grandeza da patria, é porque estou impregnado dos sentimentos que me inspiraste. E tu, querido pae, cuja vida foi tão rude, como a tua rude profissão, tu mostrate-me [sic] o que póde fazer a paciencia nos longos esforços. A ti devo a tenacidade no labor quotidiano… Tambem tinhas a admiração pelos grandes homens e pelas grandes coisas. Olhar para cima, procurar subir sempre, eis o que me ensinaste…».
Além de ser um simples, Camara Pestana era um bom. Não era d’aquella bondade molle, facil, como podem ter as naturezas vulgares… Ria pouco, fallava pouco, mas sorria e falava amavelmente á juventude laboriosa, aos discipulos, aos amigos, aos companheiros do laboratorio, interessando-os nas suas investigações, associando-os aos seus trabalhos. Desconhecia completamente o [ilegível], o orgulho ciumento de [ilegível] outros, que não podendo prescindir de collaboradores, desejam tirar-lhes toda a fama. O Pestana apregoava bem alto os meritos dos seus auxiliares e adjuntos, e dar-se-hia por tão feliz se algum d’elles fizesse uma descoberta, como se elle proprio Pestana a houvesse feito. Ah! como é rara no mundo esta comprehensão nitida da justiça!
No seu laboratorio cultivava os bacillos, não a gloria; por isso mais queria ser amado do que admirado, e ao ruido vão da celebridade antepunha os affectos seguros e as doces alegrias da familia. No seio d’esta, sim; no meio d’esta é que elle descansava um pouco, respirava, e, livre de preoccupações, era filho respeitador e dedicado, era pae amantissimo, louco, era um baboso.
O fim d’este sabio, d’este homem simples e bom, n’uma cama de hospital, curtindo dores acerbas, vendo o mal irremediavel, de minuto a minuto, rasgar-lhe as portas da eternidade, apparece-nos com um caracter dramatico singular: drama todo moral, que reside não nas dores e no sangue, mas no estranho, no sublime da propria situação.
Camara Pestana tinha iniciado um combate grandioso, á maneira dos heroes de Homero, com o bacillo de Yersin, afim de surprehender-lhe as emboscadas, os assaltos, os processos de exterminio, e disputar-lhe as presas, desarmal-o, neutralisando-lhe a acção destruidora, evitando que elle chegasse a dar batalha; mas uma vez que esta se empenhasse, determinando os meios de o debellar.
Partiu para o Porto, e durante tres mezes compridos, eil-o a toda a hora, a todo o instante, na brecha mais arriscada, esquecido dos seus e de si proprio, e certo de que, não obstante ser um só contra myriades de myriades, havia de fazer triumphar tão justa causa, como fosse a da sciencia e da humanidade!
Quantos casos de peste se averiguavam, tantos observava, seguindo a marcha da doença, fazendo injecções hypodermicas e intra-venosas, colhendo apontamentos sobre o sexo, a idade, a profissão, as condições de vida, o temperamento dos enfermos. Quantas pessoas succumbiam, tantas autopsiava; e nas autopsias revelava tamanha ancia de saber, que ao vel-o levantar com as unhas a pelle dos cadaveres; ao vel-o mirar e remirar o sangue, mexer e remexer nas visceras, dir-se-hia que a sua alma candida e profunda acreditava, como a de Luiz Pasteur, de quem tinha tambem o nome baptismal, no perfeito accordo da sciencia e da fé, e que não podendo limitar a vida ás paredes do laboratorio sem olhar para as regiões de além tumulo, prostrava-se ante o Incognoscivel, amava a Deus na sua manifestação mais pura e levantada – a Sciencia – e tinha fervores de ser martyr de uma doutrina, de que já era apostolo e confessor.
E foi. A peste não perdoou ao homem ousado mais que quantos
No mundo commetteram grandes cousas
não perdoou ao sabio que pretendia desvendar os segredos escondidos da natureza. Sem as imprecauções e ameaças do gigante fabulado, o microbio verdadeiro fez
……. a improviso tal castigo,
Que foi maior o damno que o perigo.
Pestana foi accommettido da peste. Diagnosticou logo a doença, mandou chamar o dr. Silva Carvalho, que confirmou o diagnostico, e antes de lhes ser imposto, declarou que ia para o hospital dos pestiferos em Arroyos, Deu lá entrada pelas 10 ½ da noite de 10 do corrente, hora a que principiou a desenrolar-se uma das tragedias mais tocantes e respeitáveis de que ha memoria.
Sim; aquella morte a um tempo natural e extraordinaria, tranquilla e terrivel; aquella morte em pleno combate, cujos lances elle ia acompanhando; aquella morte precedida de um prefacio tão nobre, é o fim verdadeiramente tragico de um homem de grande coração. As qualidades de Camara Pestana, a sua simplicidade, a sua bondade, a sua dedicação á familia e aos companheiros de trabalho, a sua intrepida coragem ante o problema aterrador do ser e do não ser e, como cumulo de tantas virtudes, o seu amor entranhavel á sciencia, todas essas qualidades transbordaram pulchras, heroicas, refulgentes por cima do seu leito de morte.
Vendo formar-se o bubão sob a clavicula e tendo observado no Porto que elle pronuncia quasi sempre o desenlace fatal, disse aos dois collegas, que foram seus verdadeiros irmãos de caridade:
- Sei que estou condemnado.
Redobrou então de cuidados com os outros.
- Não te chegues muito – observou ao dr. Lobo Alves. No estado em que estou, o meu halito é perigoso.
Depois chamou o dr. Bello de Moraes. Dictou uma carta para sua magestade a rainha, que sempre o recebera com extremos de benignidade, não pedindo protecção para a mãe e para a filha, não solicitando qualquer coisa que pudesse perpetuar o seu nome, mas collocando sob o patrocinio da excelsa princeza e bonissima senhora os socios e companheiros da sua faina de laboratorio. Tão sublime rasgo de gratidão e amizade apenas se refere, não se commenta.
Ao mesmo dr. Bello de Moraes recommendou as cautelas que devia tomar e de repente observou:
- Se eu pudesse urinar! Que enorme serviço para a sciencia fazer a analyse. Até hoje, ainda não se conseguiu que um pestifero, na agonia, deixasse esse elemento para uma analyse rigorosa.
E capaz de dar á sciencia o coração, como Orestes deu o seu aos inimigos da patria para que o devorassem, conseguiu em um supremo esforço que o seu corpo agonisante pudesse servir á mesma verdade, pela qual o seu espírito combatera sempre.
- Agora analysa e envia o resultado ao dr. Roux, do Instituto Pasteur.
Annunciaram-lhe que tinha chegado o dr. Ricardo Jorge.
- Digam ao Ricardo que entre, se tem coragem para assistir a uma das scenas mais tristes que elle deve ter presenciado.
Despediu-se dos medicos, dos enfermeiros, de todas as pessoas presentes; e bem como a ave de alto vôo, que para dar o surto e remontar-se ás nuvens, firma-se na velha arvore carcomida e deixa-a com risco de a carpir em breve, assim o dr. Pestana não quiz que o seu espírito altivolo erguesse o voo para as regiões celestes sem despedir-se de sua santa velhinha, sem firmar as ancoras e amarras da esperança no lacrimoso rosto da «mater dolorosa».
A infeliz senhora dirigiu-se ao quarto do filho sem transpôr a porta, que lh’o não consentiram os medicos. Imagine a scena quem quizer, que a minha penna é impotente para a descrever. Só direi que com o pranto a deslisar lhe pelas faces, Camara Pestana disse á mãe o derradeiro adeus, e convertido em espectaculo de dôr e de espanto para todos, pediu-lhe que sempre velasse por outro ente, que era o seu refrigerio, o seu enlevo, a carne da sua carne, o sangue da sua alma, a sua querida filha.
Caiu depois em delirio, dizem os medicos.
Não sei se era delirio pestoso ou extasis comtemplativo. O que sei é que depois de se despedir dos que deixava no mundo, e que eram os seus mais propinquos em sangue e amizade, alheiou-se de tudo o que é terreno, e com os olhos erguidos para o céu começou a fazer em lingua franceza uma exposição scientifica da sua enfermidade, como se desejasse comparecer ante a Divina Sciencia sem limite recitando um psalmo da Biblia da sciencia humana, restricta e limitada.
Um Eschylo ou um Shakespeare não teria mais do que dobrar-se um pouco para levantar do chão, aos punhados, scenas e scenas de uma intensidade dramatica, que faz empallidecer muitas das que mais commovem na serie numerosa das suas tragedias.
José Antonio de Freitas - "O que vae por ahi / (Chronica lisbonense) "
in Diário de Notícias
de 14 de Janeiro de 1900, nº. 12250, p. 1 (c. 9-11). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1419.