O que falta a Lisboa
Lisboa, cidade de marmore e de granito, rainha do oceano, tu es a mais bella entre as cidades do mundo… Assim começava Alexandre Herculano, em linguagem biblica, o seu pamphleto intitulado A voz do Propheta.
Descontada a emphase propria d’um escripto de similhante natureza, dictado pela paixão e filho de enthusiasmo, não se póde deixar de dar razão ao auctor da Harpa do Crente, cuja imaginação via sempre as cousas, ainda as mais tristes atravez d’uma lente poetica.
Effectivamente Lisboa, considerada no seu conjuncto e no seu aspecto geral, pela sua posição ao mesmo tempo donairosa e pittoresca, remirando-se como sultana do occidente, na face crystalina do Tejo, se não é a mais bella cidade do mundo, é pelo menos uma das mais famosas.
Examinada, porém, mais de perto, comparada com outras capitaes tanto do velho como do novo mundo, Lisboa perde muito seus encantos theatraes e casos ha em que se lhe pode applicar perfeitamente o dictado – por fóra cordas de viola; por dentro pão bolorento.
Seria injustiça, que tocaria as raias do absurdo o querer negar os melhoramentos, sobretudo em viação, que ha vinte annos se tem operado em Lisboa, mas isso ainda é incompleto e está longe de satisfazer as mais modestas exigencias, o que é prova de que por muito tempo se havia ficado estacionario, sem curar dos verdadeiros interesses da cidade.
Por muitos annos e com a mais louvavel das monomanias um apaixonado de Lisboa, o engenheiro Miguel Paes, encetou aqui, nas colunnas d’esta folha, uma fervorosa propaganda para converter Lisboa n’um dos mais attrahentes e confortaveis pontos de reunião do mundo. Gosando dos favores da natureza, favores quasi excepcionaes, entristecia-se aquelle bom homem ao vêr que os não sabiamos apreciar e quasi os desprezavamos e inutilisavamos.
Muitos dos alvitres que elle propunha eram talvez utopias; outros, embora praticaveis, não obedeciam por ventura ás regras do mais puro bom gosto, mas entre as suas indicações muita coisa havia de aproveitavel e que não lançada totalmente ao abondono. No entanto, se elle voltasse a este mundo havia de ficar pezaroso por vêr o pouco que temos adiantado e o muito que nos falta fazer, e, com magoa misturada de azedume, havia de perguntar – onde está o edificio do correio, minha preoccupação constante? onde está o palacio da justiça? onde está o lyceu?
Antes de Miguel Paes, tres seculos anteriormente já um outro benemerito, artista de inquestionavel talento, Francisco de Hollanda, havia escripto um livro intitulado da fabrica que fallece á cidade de Lisboa, como quem diz dos monumentos que ella precisa erigir, e ahi apresentava o traçado de algumas construcções que a deviam embellezar, entre as quaes uma fonte monumental, uns paços reaes, etc.
Os nossos recursos economicos e a situação do nosso thesoiro não permittem que mettamos hombros a emprezas grandiosas e seria por certo loucura que tentassemos, por exemplo, construir um palacio de justiça como o de Bruxellas. Longe de nós o advogar o adorno ostentoso, o que é sem duvida condemnavel luxo, mas não podemos deixar de apontar aquillo que é verdadeiramente indispensavel, de genuina utilidade publica. Até á commodidade e até á decencia ainda podemos chegar. Pobresinhos sim, mas pobreza com aceio, com ordem e com regularidade. Una casinha de pescador, bem arejada, bem assoalhada, branca de cal por fóra, um brinquinho por dentro, vale bem mais que um palacio de architectura nobre, desmantelado, em ruina.
As repartições de fazenda, as recebedorias, as administrações dos bairros e as conservatorias nem teem casas proprias nem apropriadas, mal alojadas, em edificios de pequena capacidade e alguns até das mais duvidosas condições hygienicas. Hoje aqui, amanhã acolá, vagabundas como o judeu errante. Algumas das recebedorias são em segundos andares, sendo já a subida um grande incommodo e quando se chega lá vê-se a gente n’um recinto apertado, quasi nauseabundo, tendo muitas vezes de se ir esperar para a escada. E o contribuinte, ao ver este aspecto miseravel, pergunta com surpreza dolorida – e então é para isto, que eu trago aqui o meu dinheiro que tanto me custa a ganhar?
Á camara municipal, de accordo com o governo, incumbiria, pois, tratar de construir edificios, onde se alojassem com limpeza, com commodidade, e sobretudo com segurança, as administrações dos bairros e repartições congeneres. Em Paris as mairies são palacetes elegantes, mas nós não nos atrevemos a pedir tanto, contentamo-nos com uma cousa singela, mas decente. Ai! de nós se requeressemos e aconselhassemos cousa de maior monta e de mais apparato! Sabemos de sobra por que preço ficam entre nós as obras publicas, e, como se não bastasse a carestia, ficam quasi sempre incompletas. Por quantas centenas de contas [sic] não está já o Lyceu? E todavia o que é que se vê á flôr da terra? Pouco mais que os alicerces.
Não é a primeira vez que tratamos aqui d’este assumpto, mas achamos que não é demais avivar a lembrança. Falamos em nome da utilidade publica. Ninguem nos ouvira!