Assumptos do dia
Assistencia Nacional aos Tuberculosos
Estatistica e estudo da tuberculose
A missão com que se nobilita a Assistencia aos Tuberculosos é attinente não só a evitar a doença mas tambem a curar aquelles a quem o mal já corroe o organismo debilitado.
Fecunda deve ser a sua funcção social porque amplamente humanitario é o seu fim.
Com tal intuito, porém, não basta boa vontade, é indispensavel um plano de trabalho, uma organisação methodica de forças.
É absolutamente necessario, sem duvida, ter recursos pecuniarios valiosos, mas é preciso saber empregal-os com proveito.
Porque assim è, notavelmente complexos se tornam os trabalhos da Assistencia, sendo questão capital reconhecer no paiz a extensão que o mal atinge, as formas pelas quaes se revelam os seus perniciosos effeitos e os meios de que podemos dispôr no intuito de evitar, ou pelo menos sanar, as suas deleterias consequencias,
Á commissão de estudo da tuberculose incumbe tudo isto.
Vasto e melindroso é o programma e seguramente só poderá ser realisado com o dedicado e esclarecido concurso de todos e muito especialmente de quantos no paiz se entregam á cultura apaixonada da sciencia medica.
Para desventura nossa os materiaes que existem são muito defficientes e de tal sorte que nem com segurança podemos ao menos apurar a quanto ascende a mortalidade geral pela tuberculose que, todavia, deve ser, pela presumpção que alguns dados permittem, assombrosa.
Não deve affastar-se sensivelmente de 20:000 o numero d’aquelles a quem a doença, por anno, cruelmente victima.
E se no capitulo da mortalidade graves são as lacunas, maior será a difficuldade no apuramento rigoroso da morbilidade e sobretudo em destrinçar as variadissimas fórmas que a doença bacillar protheicamente reveste.
E, todavia, indispensavel é não só que tal apuramento cuidadosamente se realise, mas ainda que seja elucidativo o estudo das condições mesologicas que nas differentes regiões do paiz se conjugam, facilitando ou empecendo o apparecimento da tuberculose.
É urgente analysar a quota parte com que o exercito, os hospitaes, as escolas, as officinas, as fabricas, todas as grandes agglomerações profissionaes, emfim, contribuem na cifra aterradora com que a doença bacillosa figura no obituario geral; e averiguar os motivos que determinam a grande percentagem com que entre nós luctuosamente collaboram, sendo para crer que, além das causas geraes deprimentes do organismo, muitas outras existirão, contra as quaes a acção benefica d’uma policia sanitaria se poderia fazer sentir, reprimindo especialmente essa fatal incuria de não evitar, e tão facilmente se póde conseguir, o contagio.
Dir-se-hia, tal é o desleixo, que vivemos ainda n’esses tempos já idos em que se contestava o poder contagiante da tuberculose e, consequentemente, se desconheciam os effeitos nocivos que da existencia descuidosa d’um tuberculoso, no seio d’uma grande agglomeração humana, pódem advir.
N’este campo pode ser, e ha de ser valiosissima a interferencia de quantos generosamente se agrupam n’esta cruzada contra a doença devastadora, e altamente proficua é preciso que se manifeste tambem a acção dos governos e das corporações locaes.
Não está, é certo, nas funcções dos governos dar saude a todos os seus administrados mas é obrigação sua, que religiosamente deverão cumprir, evitar-lhes quanto possivel a doença.
E maravilhosos são os resultados que n’este sentido podem colher-se, não devendo hesitar-se ante o que se imponha necessario fazer com este fim.
A questão financeira, perfunctoriamente encarada, supplanta em geral a de saude publica; erro lamentavel porquanto não é apenas acto de acrisolada philantropia curar dos males que affligem um povo, mas ainda se denuncia como util orientação de rasgada politica vista na sua mais nobre e elevada accepção, pelos surprehendentes effeitos economicos que d’ahi advêem, poupando a vida d’aquelles que são os poderosos factores da riqueza publica.
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Se, indubitavelmente, deverá ser fertil em esclarecimentos a estatistica geral da tuberculose, tanto em relação á morbilidade com á mortalidade, e a especial quanto ás fórmas, idade, sexo e profissão d’aquelles a quem a doença mina, bem como o estudo das condições proprias a cada região e as particulares a cada individuo, em parte resultantes da sua posição social, util será egualmente quanto respeita á cura da tuberculose, capitulo entre nós ainda muito nebuloso.
Não vão muito distanciados os tempos em que a tuberculose era considerada doença fatalmente mortal, correspondendo a esta crença a mentira piedosa com que se disfarçava ao paciente a realidade do mal que o torturava.
Fraude misericordiosa então mas que hoje seria altamente censuravel: o tuberculoso deve conhecer a doença que o afflige, não só para evitar quanto possa contribuir para disseminar em volta de si o mal que o feriu, mas ainda para que, sabedor da qualidade do processo morbido que d’elle se apossou, envide todos os esforços no intuito, tantas vezes venturosamente realisado, da cura.
Em passadas eras em que se ignorava qual o agente determinante da doença, a predisposição para a contrahir e a sua nefasta acção contagiante, e absolutamente se desconhecia o numero d’aquelles a quem a tuberculose offende e conseguem, todavia, sair victoriosos da lucta; em que a tuberculose e a tysica eram confundidas, não se apercebendo que aquella nem sempre arrasta a esse estado de envenenamento do sangue, dos tecidos e dos orgãos e de profunda e commovente consumpção que de tysica se appellida; em que as tuberculoses locaes, como os tumores brancos, os abcessos frios e outros, eram consideradas doenças essenciaes, quando não são mais do que formas e localisações especiaes d’uma unica doença; n’esses tempos já idos d’uma sciencia confusa poderia desculpar-se e até louvar a pia intenção que ao segredo do diagnostico presidia.
Hoje seria motivo para acres censuras o procedimento do medico que, no intuito de evitar uma forte impressão moral ao doente tuberculoso, lhe ocultasse a doença que o destroe.
Cumpre-lhe dizer ao paciente a qualidade do seu soffrimento; mentir-lhe seria uma falta imperdoavel: seria animal-o a não se cuidar activamente, permitir-lhe desregramentos de vida ou de regimen que tão facilmente precipitam a marcha das lesões tuberculosas e ao mesmo tempo d’ahi lhe adviriam graves responsabilidades pelos novos casos de contagio, desenvolvidos á mingua dos cuidados necessarios.
A mentira só poderá ser louvavel quando dita ao tysico a que nenhum remedio efficaz seja applicavel, e ainda assim devera ser informada a familia da qualidade da doença e instruida cautelosamente das precauções a tomar.
A tuberculose cura-se sem duvida alguma e extraordinario é o numero dos que conseguem vencer a doença.
A sexta parte da população do globo morre victimada pela tuberculose: tal é a affirmação torturante que as estatisticas negramente accusam.
No emtanto [sic], se a tuberculose não fosse frequentemente curavel, não seria essa a percentagem, mas 80 % ou mais, aquella com que entraria no obituario geral.
Curavel no inicio, é de regra mortal nas phases mais avançadas.
É indispensavel que esta verdade seja propagada afim de impressionar o espirito d’aquelles que tantas vezes não creem nas affirmações dos medicos e assim descuram a boa opportunidade do seu efficaz tratamento.
Que as mães, especialmente, se compenetrem d’este facto e que, e longe de se aterrarem ao ser-lhes apontada a tuberculose que se inicia nos entes que estremecem, se convençam de que é facil anniquillar a doença no seu lugubre alvorecer desde que realisam os principios da boa hygiene.
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Ar puro, repouso physico, intellectual e moral e alimentação fortificante, taes são, e serão sempre, os principios fundamentaes do tratamento dos tuberculosos, obtenha-se ou não o suspirado agente anti-bacillar.
Varias são as fórmas da tuberculose e, embora puro sempre, differente poderá ser a composição do ar mais apropriado a cada uma d’ellas, sendo certo que, afóra a pureza do ar, muitas outras circumstancias se pódem reunir, tornando uma região mais favoravel do que outras.
Uma asserção é util fazer, porém: não existem, relativamente ao tratamento da tuberculose, climas especificos mas simplesmente regiões que pela sua situação geographica, pela composição do seu terreno, pela sua exposição a outros factores climatericos, são mais propicias do que outras ao tratamento da doença.
Entre nós não é arrojado dizer-se que temos o que é preciso para a cura quer pelos climas d‘altitude, quer pelos maritimos; resta apenas fazer a sua selecção, classificar, segundo o seu valor relativo, as differentes estações congeneres.
Este estudo, tão perfeito quanto possivel, é absolutamente necessario ao estabelecimento dos sanatorios em que a cura devera operar-se.
Com effeito, para se effectuar uma cura d’altitude não basta manter-se a uma determinada altura n’uma montanha qualquer.
Regiões ha que estão constantemente recobertas de nevoeiros, muitas em que os ventos são frequentes, as variações de temperatura muito bruscas e perigosas, etc.
N’estas condições seriam antes nocivas do que uteis no tratamento das fórmas da tuberculose em que está indicada a cura de altitude.
Entre nós pode affoutamente affirmar-se que não será difficil crear estações d’altitude admiraveis pela sua exposição, pelo sol que as illumina e aquece, pelos seus maravilhosos panoramas e bem mais faceis de se attingirem, sem grande incommodo, do que as celebres estações da Suissa, Davos e Leysiad, que são na Europa as mais frequentadas durante o inverno.
E tanto mais se pode affirmar isto quanto está demonstrado não serem precisas alturas de 1:800, 1:600 e 1:400 metros para se alcançar a benefica influencia dos climas de altitude: brilhantes são os resultados colhidos em Falkenstein que tem apenas 400 metros d’altura.
Realmente ás estações maritimas, valiosissimas em algumas fórmas da tuberculose, e entre nós muitas são, a mais d’um titulo, deliciosas, muito ha para estudar, particularmente no tocante ás differenças climatericas que accusam quer em relação aos ventos a que estão expostas, á temperatura, luminosidade, estado hygrometrico, etc.
Sanatorios ha-os já por quasi toda a parte: na Europa, na America, no Cabo, nas Indias.
Os seus effeitos poderosos não carecem de demonstração: impõem-se á luz das bellas estatisticas que lá se conseguem.
O que é para lamentar é que nós, tão lesados pela tuberculose, ainda os não tenhamos implantados [sic], não só com fim humanitario mas tambem com intuito industrial, e bem remunerador é esse emprego de capital como succede em Inglaterra e na Allemanha.
Entre nós ha sol, não soffremos, como aquelles paizes, nevoeiros e humidade; poderiamos conseguir resultados excellentes e chamar aqui os estrangeiros que viriam gosar os beneficios da nossa excepcional situação geographica e adoravel clima e ao mesmo tempo enriquecer a nação.
Doloroso contraste: desprezamos tão notaveis condições e em numero avultado vamos ao estrangeiro, menos favorecido pela natureza, buscar aos seus sanatorios a saude que nos fallece.
É sempre e em tudo a mesma revelação de incuria imperdoavel e de indifferença magoante pelo que possuimos.
Dedicar, no capitulo do tratamento, desvelada attenção á bondade dos nossos climas de altitude e maritimos e procurar eleger aquelles que mais aprimoradamente se destaquem, não significa que a commissão do estudo da tuberculose ponha de parte todos os diversos meios therapeuticos empregados contra a tuberculose, no paiz e lá fóra (pharmacologicos propriamente ditos, bacteriotherapicos, toxinotherapicos, sòrotherapicos e organotherapicos), muitos dos quaes se podem até alliviar efficazmente na lucta contra a doença.
Todos elles farão parte do seu estudo bem extenso e extremamente complexo.
Delineadas assim a largos traços as questões principaes em que de principio precisa exercitar-se a activa dedicação dos que formam a commissão do estudo da tuberculose, a que tenho a honra penhorantissima de presidir, deduz-se quão ardua é a tarefa a cumprir e tambem quão proveitosos deverão ser os fructos, se valioso fôr, como de animos portuguezes é d’esperar, o concurso d’aquelles a quem terá de ser pedida a humanitaria coadjuvação.
MOREIRA JUNIOR.
Moreira Júnior - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos Tuberculosos / Estatistica e estudo da tuberculose"
in Diário de Notícias
de 2 de Abril de 1900, nº. 12327, p. 1 (c. 1-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1454.