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Texto da entrada (ID.1457)

Assumptos do Dia

Assistencia Nacional aos Tuberculosos

Contagio e herança da tuberculose

Nenhuma duvida ha hoje na sciencia sobre ser a tuberculose uma doença contagiosa.

Não nasce ella espontanea no corpo humano, como se fôra resultado d’um desequilibrio nos actos que constituem a vida normal do organismo.

A sua origem está fóra de nós.

De fora a recebem os que adoecem, nos seus orgãos se desenvolve, para fóra de si a expellem, disseminando a entre os sãos, que por seu turno a absorvem na mais completa inconsciencia.

N’este ciclo constante se perpetua.

Essa origem é um ser minimo que a vista mais aguda só pode descobrir com o auxilio do microscopio. Contam se apenas por pouquissimos milessimos [sic] de milimetro as suas dimensões. Por isso ninguem o vê ou presente [sic] sequer. Levanta-se na atmosfera, fixado n’um qualquer dos insignificantes detrictos que constituem a poeira que vemos em continuada agitação quando olhamos para um feixe da luz solar que entre no nosso quarto pela janella. Fixa-se nos nossos alimentos porque essa poeira sobre elles tenha cahido ou as moscas e outros insectos ahi o tenham depositado. Transportou se para cima das nossas feridas e para os nossos orgãos sobre todos os objectos que tenham sido maculados pela expectoração do doente, que é o grande vehiculo que conduz o germen da doença para fóra do organismo que lhe é berço.

Bacillo se chama em geral a esse germen da doença; – bacillo de Koch, por ter sido o celebre bactereologista Koch quem primeiro o descobriu e assignalou o seu papel no desenvolvimento da tisica.

Bacillo que é um vegetal, membro vil da familia botanica menos nobre – a das algas – que nos mares formam flórestas e prados de que se alimentam os peixes herbivoros e nas costas, matisando a negrura dos rochedos, nos offerecem principios medicamentosos; – que nos lagos de agua dôce se nos mostram com a sua côr verde a avisar-nos de que com tal agua se bebe a doença.

Esta outra alga, que em nós vem determinar a tisica esconde-se na sombra do quasi nada de sua organisação para nos ferir traiçoeiramente. Ainda se ella tingisse os vehiculos a que se prende, como outros membros da sua familia tingem as aguas do Mar Vermelho ou avermelham as neves nos Alpes, davam-nos aviso da sua presença para que nos defendessemos. Mas não. Na sua obra damninha a sua acção é pelo contrario descorante, comendo a côr ás faces coradas da nossa mocidade.

Trabalhadora da sombra, só na profundidade dos nossos tecidos a vida se lhe torna luxuriante e completa, que o grande ar e a grande luz, nossa alegria e boa parte da nossa vida, não lhe consentem que se desenvolva nem que se multiplique.

E n’estas precarias condições, se não oppomos barreiras á sua disseminação no ar, e nos alimentos e em tudo com que tenhamos de entreter contacto, ha-de forçosamente entrar no nosso corpo esse infimo ser, formado de particulas venenosas, porque forçosamente havemos de respirar e de comer, e havemos de sustentar relações com os nossos similhantes para se installar como parasita que é em todo o rigor da palavra – realisando-se assim mais uma vez ser a aggressão tanto mais traiçoeira quanto mais insignificante é o aggressor.

Estes bacillos, germens da doença, constituem o principio contagioso.

A sua passagem do doente para os são [sic] levados nos vehiculos que referi é o contagio.

Tudo isto é hoje sabido com uma certeza absoluta e o seu conhecimento é por tal fórma vulgar entre os versados no assumpto que bem podem elles accusar-me de escrever banalidades se para si tomam a direcção do escripto.

Com egual certeza é conhecid[o] que uma vez fixados nos nossos orgãos os bacillos determinam duas ordens d’effeitos:

No ponto em que se fixam são como o espinho que se crava na nossa pelle que desafia em torno de si uma inflammação, tornando-se os tecidos vermelhos, volumosos e duros, chegando ás vezes a suppurar. Assim se formam nos nossos orgãos pequenos nodulos ou granulações com o aspecto de pequenos tuberculos e por ser tal forma de lesão constante a doença se ficou chamando tuberculose.

Porque os bacillos lançam de [s]i venenos (toxinas) e chegam a romper os tuberculos que lhes eram clausura, esses venenos espalham-se no organismo e accendem febres que denunciam a infecção geral que nos consome e chega a matar.

E inoculando em animaes os bacillos saídos na expectoração do homem assim doente, a doença vae mostrar-se integralmente reproduzida n’esses animaes.

E analysando bem a observação dos doentes, não é diffícil encontrar a confirmação dos factos experimentaes de transmissão feita pelos contactos entre sãos e doentes.

Por tudo isso, não pode ser hoje materia sujeita aos vaevens da opinião, a contagiosidade da tisica tuberculosa: – é irrecusavel ser ella transmissivel por contagio, ser uma doença que se pega aos sãos, como se diz vulgarmente.

Assim se confirma a crença trazida desde a Grecia antiga até aos fins do seculo passado, de sér a tisica virulenta e directamente transmissivel, tradição ainda viva nas pessoas mais idosas da nossa geração que ao vêr adoecer de peito alguem de sua casa não faltam perguntar a seu medico se devem separar as louças, as roupas e os objectos de uso dos doentes.

E todavia vemos em abandono o rigor da proveitosa medida preventiva, porque muitos se preoccupam em pensar e em proclamar que a doença é essencialmente hereditária, e por isso é superior aos nossos recursos evitar a fatal transmissão e oppôr-lhe remedio efficaz.

Com difficuldade será comprehendido como é que depois de ser tão temido o contagio que medicos dos mais distinctos deixaram de fazer autopsias e estudos nos cadaveres de tísicos, com receio de se inocularem da sua virulencia, a doença passasse a ser considerada como reproduzida pela herança, para hoje ser attribuida de novo ao contagio quasi exclusivamente.

É que no mercado da pratica o fundo das opiniões soffre altas e baixas, porque se opte pelas opiniões extremas para fundar crenças muitas vezes prematuras.

A sciencia, mais exigente, busca na analyse dos pormenores a verdade do conjuncto e procurando as provas do contagio não as achou irrefutaveis até á descoberta de Koch. O bacillo furtava-se á vista e desnorteava os investigadores com a preguiça dos seus movimentos: gastando muito tempo a desenvolver-se depois da [sic] aninhado dentro de nós, dando longa incubação á doença, torna diffícil senão impossivel, no momento em que os seus effeitos se patenteiam, poder encontrar a cadeia que liga o individuo affectado ao que foi origem da sua infecção.

Por outro lado a observação de familias apparentemente condemnadas á tuberculose na successão das suas gerações, defrontada com a de outras familias na apparencia immunes, fez pensar que nos mysterios de fecundação estaria a subtil passagem do principio gerador da tisica.

E assim no mercado de pratica se depreciou o valor do contagio até ao ponto de ser negado e subiu o valor da triste herança até lhe darem o exclusivismo da interpretação, apesar dos protestos da mesma observação, persistente em mostrar que nem todos os filhos de paes tisicos saem tisicos e que dos tisicos alguns se curam, mostrando mais ainda que entre os tisicos se encontram muitos oriundos de ascendentes sãos, o que não permittia que se mantivesse firme a alta cotação a que foi levada a herança.

O dissipar das sombras que encobriam a realidade custou dilatados annos de trabalho e de lucubrações nos laboratorios da experimentação, até que fosse revelado o invisivel agente morbido, não com a luz do sol, ou com a penetração do raio X, mas com uma luz mais do que elle invisivel, – a luz do pensamento, que, faiscando no cerebro de Koch, creou novos e infalliveis processos de analyse.

Conhecido o agente do contagio, facil foi conhecer os vehiculos em que se transporta e cotejados esses conhecimentos com muitos outros trabalhos experimentaes chegou a sciencia a firmar a verdadeira cotação para o contagio e para a herança da tuberculose, que se resume em breve synthese:

O contagio é o modo universal da propagação da tisica tuberculosa; a herança é muito excepcional, se se encara como meio de transmissão directa e muito preponderante se se encara como meio de predisposição para tornar effectivos os contágios, – podendo inferir-se de quanto se conhece do assumpto que os filhos de tuberculosos, sem trazerem em si a tuberculose, venham eivados de especial vicio organico, que além de banal predisposição resultante da debilidade congenita para adquirirem indistinctamente qualquer doença, lhes dá predisposição especial para contrahirem os tuberculos, ou, como se diz em linguagem mais vulgar, são terreno especialmente preparado para a boa germinação da semente que veem encontrar no mundo exterior.

E assim é que nós os medicos temos de aconselhar ás familias medidas de rigor, em relação aos seus tuberculosos, sem que este conselho deva assustar ou indignar alguem.

Não é caso para pensar em isolamento de doentes; todo o rigor, mercê dos maravilhosos progressos da sciencia, é para isolar e destruir a materia contagiosa, e esta é essencialment a expectoração que lhes sae pela boca, e nos dá a praga microbiana que pretendemos combater.

É simples e sem vexames a pratica. Podessem assim exterminar-se outras pragas que tanto nos ferem.

Evitando esta principal fonte de contagios, o doente deixa de ser um individuo perigoso no seio da família, porque o seu halito, o ar que expira é opticamente puro e bactereologicamente esteril.

CURRY CABRAL.


Referência bibliográfica

Curry Cabral - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos Tuberculosos / Contagio e herança da tuberculose" in Diário de Notícias de 16 de Abril de 1900, nº. 12340, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1457.



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