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Texto da entrada (ID.1460)

Assumptos do Dia

Assistencia Nacional aos Tuberculosos

O casamento dos tuberculosos

Está provado que a tuberculose é, em regra, curavel quando repellida nas primeiras investidas; mas está egualmente demonstrado que o contagio é o modo de propagação d’esse terrivel flagello da humanidade. Evital-o por todas as maneiras deve ser, pois, a estrategia preferida na guerra de exterminio declarada pelas nações civilisadas ao inimigo implacavel que lhes ameaça o vigor e a existencia. De facto, as providencias prophylaticas universalmente recommendadas obedecem todas a este criterio.

Não é mister consultar as estatisticas para concluirmos que deve ser frequente o contagio entre marido e mulher, e o d’estes para os filhos; basta ponderarmos no contacto inevitavel no convivio intimo da familia sob o mesmo tecto, para á priori affirmarmos o que os algarismos corroboram.

Cada enlace de tuberculosos, – e basta que uma das partes o seja, – representa, portanto, um reforço valioso em auxilio do inimigo. Porque motivo, até hoje, ninguem, que me conste, insistiu com afinco n’este ponto capital?

O tuberculoso não deve casar. E, quando digo casar, não me refiro unicamente á união abençoada pela egreja ou sanccionada pelas leis civis.

A consciencia, o amor do próximo, a justiça, impõem-lhe essa abstenção. Se a doença ainda não se entrincheirou n’uma area d’onde seja impossivel desalojal-a, trate de a vencer, recupere a saude, proceda como os atacados de outras enfermidades cujas consequencias se reflectem no conjuge são ou na prole, e pense então no matrimonio. Se o mal é incuravel, resigne-se, conforte se com a idéa de que está praticando um acto digno e meritorio. Muitos teem arriscado a vida pela salvação da patria, de amigos leaes, de parentes queridos. Esses são heroes. Ao tuberculoso sem remedio, não se exige um rasgo de heroismo, não se impõe que sacrifique a vida, porque a sua má estrella já o condemnou descareavel; pede-se, implora se a caridade de não arrastar na queda os corações dedicados cujo único delicto foi o amor cego ou a comprehensão errada do dever.

Se é cruel o celibato forçado, e tanto mais que a provida natureza instiga energicamente o tuberculoso a preencher a lacuna que a morte ameaçadora está prestes a abrir, – só punge a alma o renunciar para sempre ás caricias d’um consorte amante, ao enlevo dos filhinhos estremecidos; mais dilacerante será o contaminar no verdor dos annos uma creatura cheia de vida que a paixão vendada uniu ao nosso triste destino, e dar o ser a pobres innocentes condemnados ao soffrimento ainda no seio materno, victimas imbelles d’um delirio momentaneo do egoismo, da vaidade, da ambição, ás vezes até d’um mero capricho, d’uma conveniencia mesquinha ou d’um desejo grosseiro.

«Affirma a sciencia que a tisica só em rarissimos casos é hereditaria» – objectarão os tuberculosos resolvidos a crear familia, para quem a transmissão quasi certa, da fatal doença ao conjuge sadio é consideração de pouca monta. Affirma, sim; mas tambem nos ensina que os descendentes d’esses organismos depauperados são, por debeis, optimo campo de cultura para o bacillo de Koch; e como estão em permanente e intimo contacto com elle, desde a primeira inspiração que lhes dilata os pulmões, a sementeira raras vezes deixará de germinar e de medrar rapidamente.

Os individuos abastados, os pobres e os que suppõem sel-o, consideram obrigação o deixar herdeiros dos seus haveres ou dos seus pergaminhos; ricos, pobres, fidalgos, plebeus, todos, quasi sem excepção, se preoccupam com a conservação da especie, receando que o homem desappareça da superficie do globo, como succedeu com outros humanos nos tempos primitivos. D’ahi a sua obediencia ao crescite et multiplicatem, sem pensar que os rachiticos e os organismos depositarios de virus que tarde ou cedo hão de exercer influencia nefasta na descendencia, multiplicam-se, sem duvida, mas só por acaso verão resultado o crescite; nascem, mas não logram perpetuar a especie.

Haverá mais requintada perversidade que procrear premeditadamente um ser imperfeito, debil, trazel-o ao mundo só para a dôr, para assistir gemendo ás alegrias, aos prazeres do seu similhante, para vel-o rir enquanto elle chora, para desejar anciosamente a morte breve, que ponha termo ao seu padecer constante, enquanto os outros, os fortes, os sãos, rogam a prolongação da vida, desejosos de multiplicar os gosos?

Se á fraqueza physica vem alliada a robustez intellectual, o vigor do genio, que magoa acerba, que martyrio para os paes, assistirem ao doloroso anniquillamento d’aquelle que iria abrilhantar as glorias de seus antepassados, honrar as tradições da familia, ou formar o tronco d’uma geração illustre!

Deixarei de escurecer o quadro insistindo nos casos, aliás vulgares, de paes e filhos tuberculosos, luctando com a miseria, exhaustos de recursos e de forças para os adquirir contagiando parentes e amigos caridosos que os não desamparam nos ultimos transes, e caindo finalmente a um e um, sem que a morte d’hoje dê tempo a enxugar as lagrimas carpidas sobre o que hontem baixou á valla comum.

Consideremos a excepção, – o caso em que a creança é robusta e sã.

Como descrever o sobresalto [sic], o temor constante do pae tuberculoso, o seu tormento, condemnado a não poder, sequer, acariciar nem beijar ternamente o filho da sua alma, com receio de que esse beijo envolva o germen traiçoeiro e o transmita ao innocente?!

É inutil insistir. A necessidade de evitar este contagio tão facil e productivo é de si tão evidente, impõe-se com tal soberania que dispensa mais commentarios.

Longe de mim o approvar a barbaridade dos espartanos ou recommendar as theorias de Malthus.

Afigura-se me, porém, que a castidade dos tuberculosos, se por um lado dá o resultado de um leve decrescimento da população, – decrescimento temporario, note-se, – evita, por outro, que pese sobre os individuos validos uma cohorte de infelizes nascidos unicamente para seu tormento e o dos que os rodeiam; e contribuindo para a extincção d’um elemento que atrophia e destroe os organismos mais robustos, coopera indirectamente na regeneração physica das raças e na prosperidade das nações.

J. DE FREITAS BRANCO.


Referência bibliográfica

J. de Freitas Branco - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos Tuberculosos / O casamento dos tuberculosos" in Diário de Notícias de 23 de Abril de 1900, nº. 12347, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1460.



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