Assumptos do dia
Os medicamentos secretos
Não é por falta de leis que Portugal anda fóra dos eixos, antes é a superabundancia d’ellas que desnorteia. Effectivamente nunca a gente sabe a quantas anda, porque é difficil ter a certeza da lei em que vive, tantas são as novidades que se introduzem todos os dias. Ainda uma lei não principiou a pôr se em pratica, não se chegando a verificar se os seus resultados são beneficos ou prejudiciaes, e já apparece outra que a modifica e refunde. Haja vista a lei do sello que até os proprios ministros que a referendam commettem erros quando são obrigados, para uso particular, a fazer uso d’ella.
Todos falam em liberdade, mas ninguem pensa em a respeitar e distribuir equitativamente. Liberdade para nós; arrocho para os outros. Parece que cada um de nós nasceu para dictador e que não morremos tranquillos emquanto não impomos o nosso capricho. Se a lei é imperfeita, ninguem trata de a interpretar sensatamente e os regulamentos que a explanam aca[ba]m por corôar a obra.
Acodem nos agora ao bico da penna estas ponderações ao termos noticia de um regulamento elaborado pelo conselho superior de saude e hygiene e que, segundo corre, vae ser brevemente promulgado. Este regulamento diz respeito aos medicamentos secretos, cuja venda, como se sabe, está prohibida.
Innegavelmente foram dois os fins que determinaram esta prohibição: o primeiro salvaguardar a salubridade publica, o segundo defender os interesses da classe pharmaceutica, altamente prejudicada pela concorrencia estrangeira.
Que um individuo que descobriu uma formula qualquer, que a medicina experimentou vantajosamente, tenha direito á recompensa do seu trabalho e gose o premio do seu invento, nada mais justo e natural, mas que os charlatães especulem com a ingenuidade do publico, abusando dos rotulos mirabolantes, é que se não póde tolerar e por isso achamos justa a interdição de remedios cuja composição seja ignorada dos homens de sciencia.
Como é bem de suppor, esta lei não se cumpre com um rigor impeccavel, commettendo-se abusos que a policia medica não corrige devidamente, mas ainda que esta fosse mais zelosa e efficaz no cumprimento dos seus deveres, sempre alguma cousa havia de escapar pela malha, assim como o contrabandista illude os cem olhos do argus fiscal.
Com o fim de apertar a tarraxa e de tornar mais efficiente a lei elaborou-se um regulamento, que, á sombra d’uma cousa, alveja todavia outros propositos, de modo que, longe de cohibir a introducção dos remedios secretos, não se faz senão offender a liberdade e os justos interesses da industria pharmaceutica, atacando ao mesmo tempo a bolsa do contribuinte, e do contribuinte mais digno de lastima, o contribuinte enfermo. Uma enfermidade tudo isto!
Não vimos ainda o projecto do regulamento e curamos por informações de pessoas fidedignas, que nos merecem todo o credito. Se por ventura nos demonstrarem que estamos em erro e que os nossos reparos são mal cabidos por motivo de exageradas apprehensões, não duvidaremos em rectificar promptamente qualquer facto ou considerando menos exacto ou menos proprio.
Segundo o novo regulamento exige se aos pharmaceuticos para a venda de qualquer especialidade estrangeira um deposito de 75 mil réis e para a venda de qualquer especialidade nacional um deposito de 30 mil réis. Ora isto é o aniquilamento de qualquer pharmacia, pois se em Lisboa ha duas ou tres que podessem resistir a esta imposição que as obrigava a immobilisar um capital de bastantes contos de réis, para as demais seria a ruina, um verdadeiro mandado de despejo.
Para se mostrar a vantagem e conveniencia de similhante determinação basta citar um facto. O pharmaceutico pode, por exemplo, vender centenas de kilos de citrato de potassa granulada, mas se enfrascar uma pequena quantidade n’um vidro e lhe pozer um rotulo, já o não poderá fazer sem a tal licença.
Mas isto ainda não é tudo, porque se obriga a pôr um sello em cada frasco. Este novo imposto, como se fosse um sello no bilhete de casa de espectaculo, ainda se poderia tolerar, mas o peior [sic] é o vexame e incommodo permanente a que fica sujeito o pharmaceutico pelas visitas constantes dos inspectores do sello que devem necessariamente ser pessoas habilitadas com conhecimentos technicos.
Uma duvida nos ocorre e é se o conselho de saude póde fazer o papel de poder legislativo, impondo tributos especiaes. É possivel que se recorra ao subterfugio de dizer que na lei do sello ou em outra qualquer existem determinações que auctorisam similhante procedimento, mas a materia parece-nos tão grave que suppomos que não haverá nenhum ministro que subscreva o regulamento sem previamente o ter meditado.
Não temos duvida em confessar que o conselho superior de saude é composto de individuos de alta capacidade scientifica, que nos merecem toda a confiança, mas as pessoas mais illustradas e de maior competencia technica tambem estão sujeitas a enganar se, mórmente em cousas de caracter perfeitamente pratico.
A classe pharmaceutica está immensamente sobresaltada [sic] com esta ameaça e segundo nos consta vae empregar todos os esforços para evitar que se realise o que ella considera uma iniquidade. Ha muitos annos que ella pede o aperfeiçoamento do ensino de pharmacia, a elevação do nivel scientifico e moral do pharmaceutico, e o despacho em que deferem ao seu requerimento não póde ser mais desconsolador.
Respeitamos muito e temos na maior consideração os interesses da classe pharmaceutica, que assim se julga tão cruelmente offendida, mas estamos certos que ella falará bem alto da sua justiça e que a sua voz não se perderá no deserto. Pela nossa parte é que não podemos deixar de protestar tambem em nome da humanidade enferma. O sello nos frascos das especialidades pharmaceuticas acarreta fatalmente o sello nas receitas medicas, e lançar esta innovação, que é um novo imposto, no momento em que tanto se trata de averiguar as causas que contribuem para fomentar a tuberculose, é pelo menos innopportuno e d’uma inopportunidade que impressionará profundamente o animo do publico.
Que se reflicta, pois, emquanto é tempo, antes de reconsiderar tardiamente.