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Texto da entrada (ID.1520)

Assistencia Nacional aos Tuberculosos

O sanatorio do Outão

A Assistencia Nacional aos Tuberculosos acaba de dar cumprimento a um dos numeros do seu bello e vastissimo programma inaugurando no Outão o primeiro sanatorio maritimo para 36 creanças debeis e escrofulosas. Por singelo que este facto se possa afigurar aos raros a quem porventura tenha passado despercebido que se tratou apenas de uma installação provisoria, é certo que elle representa, no fundo, a realisação de uma idéa ha mais de onze annos afagada pelo espirito superior e altruista de Quem [sic] é ao mesmo tempo a Rainha da Caridade e a Rainha de Portugal. Significa o principio de uma obra grandiosa que a Assistencia se propõe desenvolver gradualmente com passo que terá de medir talvez pela lentidão toda a segurança do seu caminhar e todo o brilhante exito do seu enormissimo projecto.

Nada mais vasto do que o problema da tuberculose encarado por todos os aspectos pelo qual o visam as modernas sciencias medicas e sociologicas. Está dito e redito que tratar do tuberculoso, não é sómente uma questão de philantropia e de sentimentalismo. Á sociedade importa que se defenda tanto quanto possivel a vida humana em beneficio da communidade da qual o homem constitue a primeira riqueza. E hoje, que se alcançou o dado seguro de que a tuberculose é curavel e que é sobretudo evitavel, todos os esforços têem de convergir para as linhas de ataque aconselhadas pela sciencia no combate d’esta enfermidade, que deve seguramente o seu maior e mais rapido alastramento á descrença na sua curabilidade e ao completo desprezo dos meios de prophilaxia.

Sob o patronato de Sua Magestade a Rainha, a quem cabem inteiras glorias de uma iniciativa exclusivamente sua, é de confiar que a Assistencia Nacional aos Tuberculosos procure resolver uma a uma todas as grandes questões referentes á defesa da tuberculose no nosso paiz, qualquer que seja a face por onde tenham de ser estudadas. Por agora a fundação do sanatorio provisorio. Dentro de um anno, ou pouco mais o sanatorio definitivo. Mais tarde o hospital para tuberculosos adultos. Depois ainda o instituto central, abrangendo uma grande serie de serviços, taes como a consulta domiciliaria, a desinfecção de doentes e das casas, o albergamento temporario de familias durante o tempo necessario para a beneficiação das moradias, etc. Virão ainda naturalmente os laboratorios de estudo, uns destinados á clinica, outros affectos a investigações scentificas quer no campo da pathologia pura, quer no da therapeutica e da hygiene.

E por ultimo, – por ultimo apenas na ordem crescente do seu valor, não decerto na ordem chronologica, – os trabalhos de mais largo folego e da mais elevada importancia hygienica, qual o da attenuação possivel das causas de má alimentação das classes menos protegidas, o dos cuidados á primeira infancia pobre e o da remodelação do systema de habitação, em regra pessima na maioria das cidades, villas e aldeias de Portugal.

Principiando-se pelo sanatorio provisorio teve-se em mira não perder tempo, approveitando-se desde já das incontestadas vantagens da atmosphera maritima para arrancar á tuberculose muitas creanças lymphaticas e escrophulosas que vivendo em más condições de hygiene ameaçavam entisicar. Segundo as previsões dos mais auctorisados e respeitaveis engenheiros da capital será preciso pouco mais de um anno para se effectuar a construcção do sanatorio definitivo.

O projecto, que já está elaborado, deve entrar brevemente em execução. Será um edificio vasto de 110 metros de comprido erecto sobre a grande bateria da torre. A fachada principal, voltada para o sul deita para o mar, do qual dista de alguns metros; a face opposta é abrigada dos ventos do norte por toda a encosta da Serra da Arrabida.

Foi calculado para alojar 128 creanças de ambos os sexos, em serviços completamente separados. Na sua maior extensão o edificio terá apenas dois pavimentos: um terreo onde serão installados os refeitorios, as casas de estudo e as salas de recreio, e um primeiro andar todo destinado a camaratas. A meio da construcção projectou[-]se um segundo andar onde se installarão duas camaratas eguaes em dimensões ás camaratas do primeiro andar. Ao todo as camaratas serão oito comportando cada uma 16 camas.

A cubagem de cada camarata será de 480m3 cabendo a cada leito uma cubagem espaço de 30m3. Esta cubagem é verdadeiramente typica e vae talvez além da que é exigida para as construcções hospitalares. A grande proximidade do mar e a pureza do ar bem como o systema de ventilação, augmentam ainda as magnificas condições d’esta cubagem, que poderia até ser tomada como luxuosa se se [sic] não tratasse de um estabelecimento de cura pelo ar, onde é preciso acima de tudo que a respiração não soffra o menor entrave, pela accumulação, ainda mesmo ligeira, de gazes e productos irrespiraveis.

A area de cada camarata é de 100m2,80 cabendo a cada leito de creança a superficie de 6m2,30.

O guarnecimento interno será apenas o indispensavel, de modo a cercear o menos possivel a capacidade superficial e cubica dos dormitorios.

A fachada principal do sanatorio terá 74 janellas e a fachada posterior 51. D’este modo não só o arejamento será abundante, mas a superficie de illuminação será magnifica. Havendo por cada dormitorio 7 janellas de 1 metro de largo por 2,70 de alto, a superficie de illuminação será de 18m2,90.

Annexos a cada dormitorio dispozeram-se [sic] todos os serviços dependentes: lavatorios, casas de banho, sumidouros de roupa suja, water-closets, deposito de banheiras, moveis; etc. Todos estes serviços estão installados em pequenos corpos de edificio separados do edificio principal e ligados a elle unicamente por uma passagem. Ao meio de cada grupo de duas camaratas fica o quarto da velante, que terá a seu cargo a vigilancia das creanças durante a noite.

Para a hypothese possivel, embora não provavel, de um incendio, dividiu-se o sanatorio em tres corpos distinctos separados por paredes mestras e guarda fogos. De um para outro corpo a communicação será accidentalmente possivel por meio de uma pequena porta aberta nas paredes isoladoras. A separação, com vista ao incendio, não deixará no emtanto [sic] de existir por quanto estas portas ficarão fechadas por chapas de ferro.

Á frente da edificação as explanadas e as baterias do castello servirão de logar de recreio para as creanças em occasião de bom tempo. Ainda n’estas occasiões as creanças poderão descer á praia e passar ali um grande numero de horas do dia. Em cima e em baixo podem com facilidade armar-se toldos para se evitar os maiores rigores do sol de verão.

Durante o tempo chuvoso ou de muito vento os pequenos albergados passarão as suas horas de recreio n’um vasto espaço ao norte da torre, se pensa onde construir um como que jardim de inverno. Ahi serão provavelmente collocados alguns apparelhos de gymnastica e certos jogos proprios para o desenvolvimento physico.

A par d’isto existem as salas de recreio e de estudo onde será ministrada sem esforço e sem cansaço uma pequena instrucção, a que for compativel com o temperamento, aptidão e tempo de estada das creanças no sanatorio.

A cozinha e em geral todos os serviçao annexos ficam separados e collocados em logar onde não incommodem pelo cheiro ou pelo ruido. N’uma pequena casa propria será in[s]tallado um gerador de vapor que fornecerá ao mesmo tempo vapor sobreaquecido para a cozinha, para a camara de desinfecção e para o motor electrico.

Toda a illuminação do de edificio será electrica, o que será não só a vantagem de constituir uma garantia contra o incendio, mas ainda a de não inquinar a atmosphera das camaratas com productos de combustão e vapores oleosos, como succederia inevitavelmente se fosse empregado o petroleo ou outra substancia congenere.

N’um sanatorio e principalmente n’um sanatorio para creanças o leite de vacca tem de entrar em farta quantidade no consumo diario. Por isso se projectaram estabulos e as dependencias necessarias para tratadores, etc. Tambem, porque é indispensavel manter relações frequentes e diarias com os logares de abastecimento mais proximos, principalmente com Setubal, que dista de Outão 7 kilometros, foi preciso pensar-se no arranjo de cavallariças, cocheiras, e palheiros.

Á entrada da torre deve construir se um pequeno lazareto. Este lazareto será o ponto obrigado de passagem das creanças admittidas de novo no intuito de se evitar o desenvolvimento de alguma epidemia entre as creanças albergadas, por contagio de doença trazida em incubação por alguma das recemchegadas [sic]. D’este modo o sarampo, a diphteria, a variola, a escarlatina, devem ser absolutamente desconhecidas dentro do sanatorio. Para as doenças não contagiosas, que por ventura appareçam dentro do sanatorio, haverá uma enfermaria especial, como haverá tambem uma enfermaria isolada para o caso, que é de esperar que se não dê, de apparecer alguma doença que precise de isolamento.

Não é possivel, no limitado espaço de um artigo, dar nota minuciosa de todos os pormenores do plano geral do novo sanatorio de Outão. Apontando o que ha de principal e só nos grandes delineamentos, resta accrescentar que do confronto com os estabelecimentpos congeneres em outros paizes nasce-me a convicção de que o futuro sanatorio hade ser mais um titulo de justificado orgulho para a engenharia portugueza.

* * *

Contra o que suppõem muitos, o sanatorio do Outão não é um sanatorio para tuberculosos, embora seja um sanatorio contra a tuberculose. Trata-se de prevenir a doença pela acção do ar, da luz e da boa alimentação.

Como se sabe no nosso paiz abunda o lymphatismo que é terreno de primeira ordem para a cultura do microbio da tisica e por outro lado as pessimas condições de habitação e de limpeza em determinadas classes facilita de maneira extraordinaria a diffusão do contagio tuberculoso. Se existissem unicamente os fracos, mas desapparecessem os bacillos, a tuberculose não seria de receiar [sic] como tambem não seria de temer, se havendo embora bacillos em barda não hovesse [sic] organismos capazes de lhes dar abrigo. É a eterna questão da semente e do terreno que uma e outro carecem de certas condições que lhes permittam casar-se de modo a fornecerem uma boa vegetação. Quem desconhece os mil artificios de que se servem os agricultores para adaptar a terra a determinadas culturas que seriam absolutamente impossiveis sem um longo e trabalhoso preparo? Em um terreno improprio o bacillo não vinga. Ha d’isto a prova real no facto de se encontrarem estes bacillos nas primeiras vias respiratorias de muitos individuos, sem que n’elles se manifeste o menor signal de tuberculose. É que os microbios morrem a breve trecho sem lograr fazer casa.

Mas que em virtude de um longo preparo esses individuos depauperem o seu organismo, immediatamente os bacillos tomam conta do bom terreno e exgotam-no [sic] até á morte.

As creanças são faceis de ser influenciadas pelo meio, quer no sentido do definhamento pela má hygiene, quer no sentido do robustecimento pela melhoria da mesma hygiene. Algumas, que desde a origem veem fracas e enfesadas são mais dificeis de melhorar pelas beneficiações ulteriores. Para estas a hygiene deveria ter começado antes do nascimento, cercando-se as mães de cuidados e confortos que nas classes pobres são por completo abandonados. Quantas creanças deverão a sua tuberculose ás detestaveis condições da gestação e quantas máes [sic] terão concorrido para victimar de futuro os seus filhos por absoluta carencia de meios para cuidar de si no periodo em que mais precisavam de cuidados? Deve se contar por milheiros o numero d’estas creanças, se se attender a que no nosso paiz a protecção á primeira infancia é quasi theorica e a protecção a mulher gravida nem theorica é.

Orientar o desenvolvimento da creança no sentido de tornar o seu organismo improprio para a vida dos bacillos é um dos fins a que se propõem os sanatorios, e será esta a missão do sanatorio do Outão: recolher os fracos, os abatidos, os lymphaticos, todos aquelles que ameacem tuberculisar se á primeira visita do contagio, infelizmente muito espalhado para ser facil fugir-lhe, e retemperar-lhes o organismo de modo a tornal-os fortes contra o bacillo.

E isto hade conseguir-se com a soberba atmosphera maritima do Outão, com toda a pujança da luz solar que innunda o sanatorio, com a alimentação boa, sã e bem dirigida. Para ser completo, o novo sanatorio deveria ter um parque onde o exercicio physico podésse entrar em farto quinhão no robustecimento dos albergados. Ha de fazer-lhe as vezes, talvez com vantagem, a imponente encosta da serra da Arrabida, quando terminada a construcção da parte urbana do sanatorio se lhe aggregarem os terrenos que ficam juntos.

Então poderá tirar-se da encosta todo o partido para a gymnastica pulmonar dos pequeninos, promovendo passeios pela serra em ascensões utilissimas. Então poderá o paiz ufanar-se de possuir um sanatorio dos de melhor quilate. E a Rainha, a Presidente e Iniciadora de toda esta obra de assistencia, apenas começada, terá de receber a gratissima commoção de lêr atravez das lagrimas de agradecimento que hâo [sic] borbulhar nos olhos de centenares de mães, o sincero e justissimo reconhecimento de que deveram a vida dos seus filhos á Rainha de Portugal, á Rainha da caridade.

ALFREDO DA COSTA.


Referência bibliográfica

Alfredo da Costa - "ASSISTENCIA NACIONAL AOS TUBERCULOSOS / O SANATORIO DO OUTÃO" in Diário de Notícias de 11 de Junho de 1900, nº. 12396, p. 1 (c. 1-7). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1520.



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