Os neurasthenicos
A neurasthenia reveste cambiantes e modalidades, cuja gemma complexa desafia a sciencia e competencia dos mais insignes clinicos. O aphorismo de Chomel «a medicina cura em alguns casos, allivia muitas vezes e consola sempre» falha na sua essencia quando visa a neurasthenia, a mais desoladora das nevroses!
Citemos um exemplo: a scisão nitida que existe entre o neurasthenico do campo e o da cidade, bem comparaveis aos dois ratos da célebre fabula de La Fontaine. O primeiro immobilisa o pensamento perante a perspectiva monotona da paizagem, que lhe irrita e aguilhoa os nervos, por mais bella que seja a thebaida onde a sua dolorida sensibilidade se estiola; o neurasthenico campesino é, em regra geral, mystico e contemplativo, o que se traduz por uma reacção hypotensiva que o deprime e anniquilla.
Apathico e indifferente perante o deslumbramento da Natureza, basta muitas vezes o contraste buliçoso da capital que o fascina, para que a melancholia e dyspepsia concomitante entrem na penumbra.
Quão differente é o neurasthenico «blasé» da cidade, empolgado pela nevrose que o corroe, algemado a mil preconceitos e desdenhoso pela magia do isolamento e remanso campestre!
Com efeito, esses doentes abordam o campo com um sorriso ironico, em breve refundido n’uma situação de mau humor intoleravel. Conheci um neurasthenico de uma requintada intelligencia e aprimorado trato, para quem o gorgeio de um rouxinol nas balseiras, custa acredital-o, era a origem de uma crise irritavel.
Não deve parecer estranho tal phenomeno bizarro, porquanto as perversões da esphera sensorial, attingem frequentemente na neurasthenia as raias da incoherencia absurda. Esses psychopatas resvalam de escalão em escalão, sobretudo se a riqueza que os favorece esgotou os seus artificios perniciosos de prazer e conforto, até aos confins da melancholia depressiva, que afinal constitue o preludio da loucura! O seu psychismo torna-se nebuloso e incomprehensivel, com raras centelhas de criterio e bom senso, o que a linguagem popular denomina e com justa razão «telha»[.]
Abordemos agora um ponto capital: os neurasthenicos supportam bem o clima maritimo? Difficil se torna responder com precisão a esta interrogação, a qual tem sido alvo da mais acalorada discussão. Segundo a nossa opinião, baseada na clinica, os neurasthenicos deprimidos melhoram consideravelmente com o ar marítimo, por excellencia tonico e estimulante; em compensação, nos neurasthenicos vibrateis e irritaveis, a nevrose reveste assomos aggressivos. A escolha da praia, o abrigo dos ventos, a topographia da habitação, bem como os divertimentos e o meio social que os cerca, contribuem poderosamente para a melhoria ou aggravamento da sua nevrose paradoxal.
A intrincada psychologia do neurasthenico ostenta-se então em toda a sua pujança; ha doentes, a quem o bulicio de um casino fascina e o ambiente emotivo de uma sala de jogo distrae; outros porém, almejam pelo repouso, isolamento e meditação que os deleita sobremaneira!
Recorda-me um doente, a quem a principio aconselhei a permanencia n’uma praia tranquilla, onde apenas contemplasse a espuma prateada do oceano!... Foi para mim uma desillusão completa, pois a breve trecho revoltou-se contra a familia, eivado de pensamentos lugubres; no anno seguinte, por iniciativa propria, debandou para uma praia luxuosa e movimentada do estrangeiro e no regresso, nedio e anafado, retalhou com um gilvaz ironico a minha primitiva indicação: «Meu amigo, não nasci para monge!...»[.]
Relembro egualmente alguns doentes, a quem aconselhei as estações climatericas da Suissa, julgando que o matiz variado da paizagem alliado ao repouso e ar ozonisado da montanha, trouxessem as mais beneficas consequencias. Puro engano! Lucraram mais durante a sua permanencia em Paris e alguns que na Suissa eram incapazes de digerir um simples caldo de farinha de aveia, iurgurgitavam [sic] com voracidade magnifica digestão consecutiva, as mixordias com que a Cidade-Luz os [m]imoseava…
É preciso entretanto não forcejar [a] nota faceciosa [sic] e tudo se baseia, como acima disse, na trajectoria que descreve a imaginação doentia do neurasthenico.
A mulher sobretudo, quando nova e neurasthenisada, enverga de prompto a mascara caracteristica das nevroses complexas e bizarras. Se porventura qualquer paixão contrariada, serve de traço de união á neurasthenia, sob o impulso d’esta associação perniciosa, torna-se um mytho insondavel que escarnece da therapeutica.
No aconchego e mimo da família, acalentam-lhe os nervos doentios e a doente constitue o enlevo e objectivo dos entes queridos; a passos agigantados, deslisa [sic] sobre o trilho nefasto da melancholia com todo o cortejo das suas graves consequencias. Chega o medico, ausculta-a com minuciosa, inquire o seu passado pathologico, franze o sobrecenho e exclama para a familia que o escuta anciosamente [sic]: esta senhora precisa ir para o mar... e caso não colha o resultado desejado, então transfiram-na para o campo.
A paciente esboça um sorriso ironico perante a indicação do douto Esculapio, porém a familia acolhe a idéa salutar com enthusiasmo. Installam-se confortavelmente n’uma praia, sorvendo as emanações [sic] iodadas, mas a donzella definha progressivamente na contemplação muda do oceano que a irrita, sem que o mar lhe evoque os versos sublimes de Goethe:
Não vês banhar-se o sol, o sol amado,
E a lua na maritima frescura?
E o rosto d’ambos uma vez molhados
Não surge com dobrada formosura?
O azul do ceu, se n’agua se derrama
Não te seduz, humido e transparente?
E a tua propria imagem não te chama
Para a vaga que a espuma eternamente
(Traducção de Eugenio de Castro).
A familia desolada, espia o desfallecimento da doente e resolve mudal-a para o campo, afim de ensaiar a cura promettida. Ironia pungente do destino! A donzella aguça a sua sensibilidade morbida, perante o idyllio campestre e scismadora, fita melancolicamente o poente illuminado...; a anorexia empolga-a, as insomnias deprimem-na e o olhar mortiço turva-se laivado de bilis.
Voltam para a capital desilludidos e resolvem casal-a com o seu apaixonado peralta: eis que se opera a transformação mais radical da sua profunda neurasthenia! Rejuvenesce-lhe o semblante e desabrocha a alegria e, quando pensa no mar ou no campo, é para segredar furtivamente ao noivo que possue uma esthetica «raffinée»... que só a alma comprehende!
Em resumo, perante a intrincada psycologia [sic] do neurasthenico, quantas vezes a therapeutica sossobra em subtis escolhos! É caso para rememorar a sarcastica phrase de Voltaire: a therapeutica consiste em administrar drogas que se não conhecem, a doentes que ainda se conhecem menos…
Dr. Jayme Ferreira.