Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
XC
Os novos navios do ar
Quando se aconselha a um doente uma estação de aguas medicinaes ou o tratamento em uma praia com ou sem banhos, pensa-se, é certo, nos factores caracteristicos que recommendam uma determinada qualidade e mineralisação da agua medicinal, ou nos que asseguram na praia escolhida a acção sedativa ou excitante do grande mar e dos vapores salinos que se evolvem das suas ondas, batidas pelos ventos e pelos temporaes que as levantam em serras de agua; mas, deve-se necessariamente attender a alguma cousa mais. Esse outro factor, é a salubridade da região. Se a estação onde se vae tomar aguas ou se a praia onde se vae procurar a cura maritima, não tiverem boas condições hygienicas e climatericas, o tratamento ficara em enganosa illusão, será infructifero ou será mesmo prejudicial. Ora a pureza bacteriologica do ar e a sua pureza chimica dependem ao mesmo tempo da altitude e da não agglomeração de seres vivos na localidade. Este ideal absoluto somente poderá ser attingido pela cura em balão. Nas altitudes de 1000 ou mais metros, não ha microbios no ar, não ha poeiras vegetaes ou mineraes, não ha vida agglomerada, antes pelo contrario. Hoje, que se estão multiplicando os vehiculos que nos hão de transportar no ar – balão, aeroplano, monoplano, biplano – e que este problema pretende entrar no campo pratico, começa a ser interessante estudar-se como os seres humanos se encontrarão nesse meio alborotado e interminavel a que não estão habituados, e se haverá indicações e contra-indicações nesse clima nativo para algumas das suas enfermidades.
Parece que lá em cima se sente uma quietação, um doce alento, e uma despreoccupação de um ineffavel encanto. E, de tal impressão attractiva, se tirou já o corollario de que a navegação pelo ar, de qualquer modo que seja, deve constituir uma boa panacêa para os nevroticos em geral, e um especialissimo remedio para os neurasthenicos. A neurasthenia está para sempre destroçada com este heroico remedio, e não mais se morrerá d’ella, para suavemente se morrer de um enorme trambolhão ou de uma explosão terrivel! A tuberculose, a implacavel tuberculose, do mesmo modo; não é ella uma affecção que requer muito ar e ar muito puro?
Já Flammarion exclamou em tempo, com bastante graça: «Não tardará muito que os sabios da Faculdade enviem os seus doentes para os grandes banhos de ar, em logar de os mandarem para Trouville ou Biarritz. Sómente é para se ter algumas duvidas sobre o que mais lhes agradará, se o silencio immenso dos ares, se a jogatina e os divertimentos dos seus festivos casinos das estações de aguas mineraes ou de praias. Temos cidades de aguas, vamos agora organisar colonias celestes na Allemanha e Italia, e fundar as novas cidades do ar».
Sempre se teve o ar como um inimigo dos que n’elle querem navegar, agora, porém, parece que está a caminho de ser enfreado e governado, e não só por aquelles que em balão sulcam o oceano aereo, egualmente, pelos homens-aves que se lançam a voar no espaço, realisando essa façanha de fazer fluctuar e mover-se no ar: o mais pesado do que o ar. Pois, não estamos quasi na hora victoriosa do triumpho famoso da aviação?
Depois, podem graduar-se as altitudes conforme esteja indicado para as diversas affecções e applical-as em doses variadas a cada grupo, segundo se tenham reconhecido mais ou menos uteis.
Outra vantagem ainda é a de que estando, em muitos dias, envolvidos em vaporoso nevoeiro os mais afamados sanatorios da Suissa e Allemanha, podemos collocar os doentes fora desse elemento perturbador das suas melhoras levando-os para o ar leve e dourado, por cima das fumosas nuvens. De forma que é um tratamento verdadeiramente néphelibatha.
Ha até quem tenha já organisado o formulario todo para validade das prescripções medicas. Arranja-se um balão captivo que suba mais alto do que é costume e com uma galeria suspensa para um certo numero de doentes. Só funccionará de dia, que é a hora que as plantas exhalam o oxigénio vivificante, devendo acceitar-se todos os tuberculosos não muito adeantados, os doentes de outras affecções pulmonares não hemoptoicos e os de affecções occulares. Pelo contrario, os cardiacos e os doentes que soffram de arterio-esclerose, mesmo no seu inicio, deverão fugir do tratamento pela aeronautica. E, graças a esta therapeutica, não mais haverá rachiticos, escorbuticos, palustres, hydropicos e sobretudo melancholicos. Parece que nas excursões aereas a gente se põe logo a rir assim que attinge uma certa altura, e mesmo sem causa risivel ou sem que alguem nos excite o riso. O que nos não dizem os enthusiastas do tratamento aereo em balão é em que se ha de entreter, recrear e distrair o espirito do doente nas longas horas em que o globo estiver suspenso sobre o solo. E, este ponto não é indifferente, sobretudo na cura dos estados de neurasthenicos mais ou menos profundos.
Actualmente, porém, os aerostatos estão dando menos que falar de si e o aeroplano, pelo contrario, avança para a sua solemne apotheose. Talvez que para isso contribua o espirito da novidade, que é dono absoluto de todos nós, e tambem o longo martyrologio dos ultimos annos occorrido nos adeptos da aeronautica.
Bem lembrados devem estar ainda do fim tragico de Bradsky, da catastrophe que poz fim á vida do mallogrado Severo do perigo que ia custando a existencia a Santos Dumont, e até da viagem aerea do pobre Belchior e seus dois companheiros do Porto, de que não voltaram mais! O aeroplano triumpha então, assenta já em principios scientificos, e põe ao presente a questão no ponto restricto da victoria do monoplano do sr. Bleriot ou do biplano do sr. Henrique Farman. Qual é o mais aligero, mais dirigivel, mais pratico emfim [sic], é o verdadeiro estado do problema actual da aviação. E, não será esta, do mesmo modo, para utilisar no campo medico? A apostar que sim, para mil coisas. Todavia, não se julgue que tudo isto é novissimo e da ultima colheita. Ha mais de cem annos, um estudante de medicina, de Montpellier, Duché, escreveu uma these – obra de um entendimento algum tanto maniatico – sobre o aproveitamento dos balões na arte de curar. Passou-se isto não muito longe das primeiras experiencias dos irmãos Montgolfliers que se realisaram em 1783! Alguns annos depois, o medico de Nimes, Granier, publicou tambem uma memoria sobre as vantagens dos aerostatos no tratamento das affecções chronicas. De modo que a cura pelo balão, e os possiveis beneficios medicos que a moderna aviação nos ha de trazer, contra o que seria para esperar, estão muito longe de constituir uma therapeutica arte nova. Tem até a fronte arrugada e as veneraveis cãs dos longos annos.
Pela minha parte, se para recuperar a saude, me aconselharem a uma viajata pelos ares, em balão ou dando á aza – não confundir com arrastar aza – descomponho o medico, deito a fugir, e vou para as pilulas Pink ou para o cinturão electrico.
G. ENNES.
[NOTA - Na edição n.º 15861 do Diário de Notícias, de 10 de Janeiro (p. 1, c. 3), publicou-se uma carta de um leitor, em reacção a este artigo de 7 de Janeiro]
G. Ennes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / XC / Os novos navios do ar"
in Diário de Notícias
de 7 de Janeiro de 1910, nº. 15858, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1529.