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Chronica Scientifica

Os rios – As inundações – Cheias periodicas e acidentaes – As causas e os effeitos – As invasões do Mar – A defeza e os meios de previsão

A vida exhuberante dos rios de todos os tempos feriu a imaginação dos povos que, na sua rudeza primitiva lhes deram uma personalidade e lhes distribuiram um papel activo nas mythologias. Durante seculos atribuiram-lhes uma origem mysteriosa. As cheias do Nilo provocaram a superstição dos antigos, dando origem ás explicações mais phantasistas. Acreditou-se durante muito tempo que os rios provinham de montanhas elevadas ou tinham communicação com o Oceano. Póde-se dizer que o estudo propriamente scientifico dos rios é de nossos dias e depende do adiantamento de sciencias, como a physica, a geographia, a geologia, a meteorologia e outros ramos ligados a estas e que só nos tempos modernos se acham a ponto de fornecerem ou subsidiarem theorias satisfatorias sobre o regime das aguas correntes. Pelas suas aventuras tragicas são por demais crédores da admiração e do espanto, assim como pelos seus temiveis desmandos solicitam uma atenção demorada, com o fim de procurar reconhecer a causa de taes desordens e a maneira de prevenil-as.

Se uns teem como que um temperamento, afectam uma regularidade nos seus acidentes, são beneficos ou inofensivos, outros lançam-se em transportes brutaes e imprevistos, engrossam e escoam-se repentinamente. Os grandes rios das regiões equatoriaes são, por assim dizer, grandes individualidades bem equilibradas, largas no gesto, mas ponderadas na sua acção, emquanto [sic] as torrentes que descem da montanha, os rios deserticos, não teem regime, mudam de leito, são creaturas desordenadas e caprichosas, sujeitas á influencia das causas ocasionaes.

A vida do homem, como diz o professor Maztonne, de Lião, está numa dependencia tão proxima da existencia dos rios, que se comprehende bem que aquelle siga com interesse todos os movimentos destes. Se elles formam excellentes vias de communicação, se as suas cheias, abundantes e regulares, como no Nilo, fertilizam um extenso paiz e ahi fazem florescer civilizações importantes, como no Egypto, outras vezes, pela violencia deshabitual [sic] das suas arremettidas, causam estragos de vulto, destroem pessoas e haveres entre as povoações ribeirinhas.

Tal sucedeu ha pouco em alguns rios do norte de Portugal, principalmente no Douro, pela fórma devastadora que as folhas jornalisticas consignam em paginas descritivas e lutuosas.

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Não são obra de acaso, no dizer vulgar da palavra, isto é, de causas indeterminadas, as inundações que alagaram quasi todo o paiz.

Alguma cousa se conhece hoje sobre a maneira como se produzem esses phenomenos, que modificam de uma hora para a outra o aspecto de uma região.

Numerosos factores entram em actividade para modificarem o regime dos rios. São estes geralmente os agentes atmosphericos, a inclinação do leito dos rios, a permeabilidade do solo, o seu relevo, a vegetação, etc.

De um modo geral, as cheias estão relacionadas com o clima e obedecem ás leis meteorologicas do lugar em que se dão. Por isso nas regiões tropicaes, onde as chuvas são regulares e de duração constante, as cheias são periodicas.

Nos climas temperados as chuvas caem principalmente no inverno, primavera e parte do estio (latitudes norte) emquanto na zona mediterranea se sucedem em dezembro e janeiro.

O degelo junta-se nos rios alpinos ás chuvas de verão para originar as cheias, que atingem o seu maximo no estio.

Como é sabido, a principal alimentação fluvial é a agua da chuva. A agua que cae na bacia de um rio e aumenta por esse facto a sua caudal, fal-o trasbordar quando a sua quantidade excede certos limites. Esta agua comporta-se de diferente maneira, conforme encontra terrenos permeaveis ou impermeaveis.

No primeiro caso, embebe o solo, enfiltra-se [sic] nos terrenos, até ás camadas impermeaveis, onde forma as toalhas aquiferas, as fontes e os ribeiros. No segundo caso escorre superficialmente e forma cheias torrenciaes que inundam as margens, alem de certa medida. São particularmente as chuvas tempestuosas que ajudam mais este processo de alagamento. Esse regime é condicionado pela variação annual da pluviosidade e da temperatura. As precipitações de agua atmospherica produzem-se exclusivamente sob a forma pluvial nos climas temperados e quentes e teem portanto o seu maximo no inverno. As torrentes de proveniencia glaciaria aumentam justamente na estação calida.

O relevo do solo, muito variavel para o mesmo clima, determina condições diversas da corrente fluvial. Se a inclinação é grande, o escoamento é mais rapido, reduzindo a infiltração. Os materiaes arrancados pela corrente á montanha obstruem o leito dos rios e modificam o seu regime, como acontece no Rodano, no Loire e no Garonne, obrigando a trabalhos de regularização do seu curso.

A qualidade dos terrenos que são atravessados pela agua corrente tem ainda uma influencia consideravel sobre o seu feitio. Os estudos hydrologicos vieram, desde o começo do seculo passado e mercê da maior atenção aos achados da geologia, esclarecer este ponto. Ha uma diferença profunda entre os rios que percorrem terrenos permeaveis, e os que transitam por terrenos impermeaveis. Os primeiros apresentam maior regularidade, emquanto os segundos adquirem uma fórma torrencial.

Esta diferença de regime póde-se ver no Tejo em relação ao Douro; emquanto aquelle deslisa em terrenos de alluvião, este precipita-se entre escarpas e gargantas, ao passo que o primeiro se espraia lentamente, o segundo encachoa e corre tumultuariamente em alguns pontos, com uma velocidade pasmosa, ocasionando as scenas de destruição ultimamente presenciadas.

A vegetação exerce uma acção importantissima sobre os rios. A presença ou ausencia de bosques determina tambem diferenças no seu curso.

A existencia de arvores, impedindo a precipitação imediata da chuva no solo, torna o ravinamento menos activo. Assim a camada superficial resiste á erosão, mesmo em inclinações consideraveis e retem as aguas pluviaes, que a sombra das folhas impede de se evaporarem.

Por isso são mais providas de fontes as montanhas verdejantes e as que o não são ou deixam de o ser trazem a geração ou transformação de torrentes. Além disso, a vegetação das vertentes, impedindo a formação destas, evita que os materiaes arrancados á montanha, venham obstruir o leito dos rios e perturbar-lhe o regime. Eis porque a reconstituição do revestimento florestal é, desde muito tempo, preconizado pelos engenheiros e especialmente pelos hydrologistas, como meio de impedir ou atenuar as inundações, poupando os trabalhos hydraulicos e as despezas concernentes.

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Os rios das regiões frias cobrem-se no inverno de uma espessa camada do gelo que, no tempo do degelo se quebra em fragmentos muito grandes, os quaes são arrastados pela corrente, dividindo-se e constituindo diques á passagem desta, sobretudo nas sinuosidades. Os pedaços de gelo amontoam-se, batem d’encontro ás margens e muitas vezes abrem passagem ás aguas, que trasbordam.

Os factores principaes das inundações separam-se naturalmente em quatro divisões: as chuvas, a fusão da neve, a rotura dos diques dos lagos de montanha e o degelo. Os dois primeiros são os mais communs e os que causam as mais das vezes as inundações maiores.

A sua importancia é porém relativa; elles não operam exclusivamente; a sua acção combinada multiplica os seus effeitos, em certas epocas terriveis. O que contribue [sic] sobretudo para dar a qualidade de catastrophe a estes phenomenos naturaes é a natureza dos terrenos que as aguas atravessam.

Se são permeaveis, pode-se esperar que as aguas fluviaes ou de diversa proveniencia se espalhem e se embebam em uma vastidão territorial, sem perigo de destruição. Se são impermeaveis, as aguas tendem a reunirem-se num sitio, com a rapidez proporcional á inclinação do seu leito rochoso, desviando-se pouco no caminho e engrossando em torrentes, cuja potencia devastadora é quasi irresistivel.

As invasões do mar merecem tambem ser encaradas ao lado destes phenomenos.

Ellas são egualmente sujeitas a leis da natureza e sucedem-se em casos acidentaes. Estes dão-se em consequencia dos ventos tempestuosos, que impellem as vagas e as obrigam a exceder o limite das mais elevadas marés e a extrasavarem-se sobre as terras ordinariamente ao abrigo deste genero de devastação. A par destas inundações produzidas pelo mar, menciona-se a penetração lenta deste pelo litoral, deformando-o e arruinando-o, até ao seu desaparecimento, facto notado em muitos pontos das costas da Europa e de que a Flandres e a Hollanda fornecem exemplos classicos e historicos.

Estas formidaveis irrupções sucedidas nos seculos XII e XIII mudaram por completo a physionomia desses paises e fizeram um numero incalculavel de victimas. A ellas se deve a formação do Zuyderzee. Seria longa e triste a enumeração dos desastres, que são os crimes do mar, sofridos por aquelles paises e que aconteceram nos seculos seguintes. Ainda no seculo passado se repetiram, mas a engenharia moderna, endurecida nestas rudes experiencias, sabe opôr-lhe diques, que são considerados como obras maravilhosas de defesa e de resistencia sobrehumana. Como o Japão é para a variedade dos sismos, a Hollanda é ainda hoje o exemplo grandioso do que pode a tenacidade e o engenho do homem nesta luta titanica com o mar. Efectivamente as suas construcções hydraulicas, fortalecidas, ininterruptamente vigiadas e consolidadas, são conhecidas como modelos do genero.

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Na epoca presente o adiantamento das diferentes sciencias que dizem respeito aos phenomenos naturaes permittem conhecer com suficiente precisão as causas das inundações. D’ahi uma orientação mais segura nos systemas de protecção contra a furia dos elementos.

Além disso, a organisação dos serviços meteorologicos entra por uma grande parte no pano de defesa geral. A multiplicação dos postos no continente, nas ilhas e nas montanhas leva a uma previsão mais exacta das alterações atmosphericas e portanto ao emprego a tempo das medidas de segurança contra a invasão das aguas.

Para o mesmo fim contribuem tambem os estudos de pluviometria, isto é, da quantidade de chuva que cae sobre uma determinada localidade. A indicação desta quantidade e o conhecimento dos terrenos dão aos engenheiros a noção da rapidez provavel com que as aguas veem engrossar um rio como o Sena, por exemplo, e os seus afluentes e qual a altura a que aquelle deve chegar em um dado ponto. Este serviço de previsão funciona desde muitos annos em todos os rios importantes da França, dando excelentes resultados.

Os observatorios da montanha cumprem analoga missão, avisando principalmente da fusão da neve e do começo do engrossamento dos rios, o que hoje a telegraphia transmitte facilmente ás povoações interessadas, pelas suas complicadas redes.

A reunião e a comparação destes elementos de observação, repetida durante annos, em diversos pontos, o aproveitamento dos meios de estudo e de transmissão, traduzem-se emfim [sic] por uma sciencia mais completa dos phenomenos pluviaes e do regime dos rios. A aplicação sensata destes differentes meios de advertencia e de saber especial conduz naturalmente a usar com eficacia das previdencias necessarias contra as grandes cheias e os seus desastrosos efeitos.

J. BETHENCOURT FERREIRA.


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica Scientifica / Os rios – As inundações – Cheias periodicas e acidentaes – As causas e os effeitos – As invasões do Mar – A defeza e os meios de previsão" in Diário de Notícias de 14 de Janeiro de 1910, nº. 15865, p. 1 (c. 5-6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1535.



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