Chronica Scientifica
Os cometas – Reaparição do cometa d’Halley – A previsão da sua volta – Factos historicos – A descoberta do astro pela photographia no Observatorio d’Heidelberg – Receios infundados e inocuidade dos cometas
A fatalidade da nossa ocupação de chronista obriga-nos hoje a dirigir a atenção dos nossos leitores sobre o assunto em voga – os cometas. Não pretendemos dar novidade sobre estes mysteriosos corpos celestes, cuja historia é geralmente conhecida e que em dados momentos enchem de curiosidade e indeciso temor os espiritos, mas apenas contribuir com alguns elementos para pôr ao corrente aquelles que nos quizerem seguir, em rapida leitura, sobre a anunciada viagem do peregrino astro, diligenciando sobretudo dissipar as aprehensões a que a sua aproximação tenha dado origem no animo dos mais timoratos.
Cometas ha muitos e se a notoriedade não é egual apanagio de todos, para os observadores elles constituem sempre estimulantes pontos de interrogação para as suas indagações.
Ha cometas simples, duplos, multiplos, de cauda e de cabelleira, conforme o estado do nucleo e do caprichoso feitio da nebulosidade que os acompanha. Por exemplo, a do cometa de 1843 estendia-se sobre um arco de de [sic] 40.º a uma distancia de 60 milhões de leguas! Outros apresentam muitas caudas. Descrevem no espaço interplanetario curvas muito alongadas e bem poucos se avistam, com os meios de que de ordinario dispomos.
D’entre mil só a 18 ou 20 se reconhece o periodismo, isto é, a probabilidade de reaparição em determinadas epocas. É deste numero o cometa que ora nos preocupa, cuja volta anunciada ha muito pelos astronomos é um phenomeno interessante, que permittirá talvez a verificação ou informação de certas hypotheses e a penetração do mysterio que tem envolvido esses enigmaticos viajantes sidereos.
A reaparição do cometa d’Halley, anunciada pelo professor Wolf, de Heidelberg, despertou portanto um grande interesse, como em geral incita sempre a vinda de um desses astros, mas a deste com justificada razão, pela historia que se lhe liga, no seu reconhecimento astronomico e pela importancia de factos historicos a que pretenderam os antigos ligar a presença d’elle.
A sua existencia prende-se com descobertas scientificas de enorme alcance e na determinação da sua orbita brilham nomes celebres dos astronomos, a começar pelo de Halley, que o observou, assim como Newton, em 1682, epoca em que elle apareceu com a sua maior fulgencia. Edmundo Halley era amigo intimo do auctor da descoberta da gravitação universal e contribuiu mais do que nenhum outro para a propagação desta memoravel descoberta.
Foi elle que computou primeiro os elementos da orbita do astro a que foi posto commemorativamente o seu nome e, pela comparação com a de antigos cometas, reconheceu que este era o mesmo que fôra admirado em 1531 e em 1607 e predisse a sua volta em 1759, completando o seu periodo habitual de 70 e tantos annos. Sabendo que este longo decurso não cabia já na sua vida, communicou o seu patriotico pensamento em um escrito que deixou e no qual se lê que, se mais tarde a volta do astro fosse verificada, a posteridade não recusaria acreditar que ella havia sido descoberta por um inglês.
De facto, no ano de 1758, o astronomo francês Clairaut calculou as perturbações experimentadas pelo cometa, que se achava retardado pela proximidade dos planetas, sob cuja influencia vinha a cair internando-se no nosso systema solar e comunicou á Academia de Sciencias de Paris que elle reapareceria no fim daquelle anno, o que sucedeu efectivamente, senão nessa ocasião descoberto por Palitach, a 25 de dezembro de 1758, justificando a conjectura de Halley.
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Antes da era christã, este astro errante já tinha aparecido muitas vezes, o que pôde ser apreciado pelos repositorios astronomicos da China e tinha sido a causa de emocionantes terrores, envolvido pela velha superstição em tantissimos acontecimenros da historia da humanidade. Faz-se demonstrar ao reinado de Luis o Bom a primeira das suas aparições registadas na historia (837).
Foi visto de novo em 1066, por occasião da Inglaterra ser invadida por Guilherme o conquistador e pelos seus normandos, que prontamente fizeram delle uma corôa de gloria para o vencedor, aproveitando a coincidencia e interpretando-a conforme as suas crenças.
Um poeta daquelle tempo, de certo impressionado pelo aspecto do astro, similhando uma vistosa cabelladura de luz, teve, ao que se conta, este lisonjeiro conceito, aludindo ao diadema de Inglaterra cingido pelo conquistador dizendo «que o cometa fôra mais propicio a Guilherme do que a natureza a Cesar porque este não tinha cabelleira e aquelle recebera uma do cometa».
Segundo todas as probabilidades é este que se vê representado na ingenuidade primitiva da celebre tapeçaria de Bayeux, um dos primeiros documentos figurados que se referem a estes astros e atribuido á rainha Mathilde, esposa de Guilherme I.
Similhantemente em 1455, quando os turcos cercaram Constantinopla e o papa Calixto III fulminava ao mesmo tempo com uma formidavel bula os sitiantes e o visitante celeste, de certo impassivel assistente ao desenrolar dessas sangrentas lutas entre christãos e musulmanos [sic].
Varias são as fórmas sob que elle se tem mostrado á humanidade atonita, que da sua presença tem inferido a causa de mil perigos e desastres e de que tira augurios os mais extravagantes. Sobre as suas lentas transformações ainda muito tem que resolver a sciencia.
A volta de cada um destes astros oferece sérias dificuldades para a sua predição, dadas as perturbações exercidas pelos planetas, que fazem errar este calculo aos astronomos. A este respeito vemos que o cometa d’Halley não é a imagem da pontualidade, por isso que o seu periodo, dentro de uma certa regularidade, pode diferir entre 79 e 74 annos. Desta vez, estando previsto o seu regresso em epoca mais próxima, elle apressa-se a mostrar-se desde setembro do anno passado, epoca em que o notavel professor Nolf [sic] de Heidelberg, devassando o ceu noites e noites, conseguiu photographal-o, quando era ainda impossivel descobri-lo á vista desarmada.
Este facto significa um adiantamento muito apreciavel para a moderna astronomia physica e tambem quanto pode a dedicação scientifica, que uma sociedade realmente ilustrada e de uma elevada cultura demonstra, encitando [sic] esta e outras investigações e associando-se intellectual e materialmente a ellas.
Queremos referir-nos ao facto de os principaes instrumentos daquelle observatorio serem devidos á generosidade de varios amigos da sciencia, particularmente da Astronomia, entre os quaes se contam Miss Bruce, uma americana e e Mme. Weiss (de Meidelberg) fazendo deste estabelecimento um dos melhores da Europa, e permittindo aquellas ou outras observações rigorosas.
Este é o periodo mais curto que tem sido assignalado ao cometa d’Halley um pouco menos de 75 annos, pois que elle tinha sido avistado em 1835. O calculo desta volta é uma maravilha de precisão mathematica, contando com as dificuldades e causas de erros a que está sujeito. Deve-se principalmente a Pontécoulant a previsão de que o perhielio se efectuaria a 10 de maio de 1910, resultado que obtivera a confirmação de outros astronomos, com a possibilidade entrevista da sua reaparição mais cedo.
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A prespectiva [sic] de um cometa está longe de ser o Brilhante horror de que falava Byron no Manfredo. Ainda ha muita gente que acredita no mau pressagio significado por estes astros e que se arreceia da possibilidade de um encontro da terra com qualquer delles. Nada prova porém que a sua influencia seja nefasta, como acreditaram os povos da antiguidade. A sua leveza, a sua tenuidade é tal que, dada a hypothese de um choque com o nosso planeta, nem seria presentido [sic].
Outr’ora disse-se que elles eram nadas visiveis, pedaços de materia cosmica luminiscente, irradiantes, que vagueiam pelo espaço interplanetario á mercê da força da atração universal.
Babinet, calculando para um caso destes, chegou á conclusão de que um cometa tocando a terra lhe faria menos mal do que uma andorinha a uma locomotiva a toda a velocidade. O perigo seria pois inverosímil, se é verdade o que os sabios teem afirmado a este respeito e d’ahi a inanidade de similhantes receios. A sua densidade é de tal modo insignifcante, que apesar dos seus milhões de leguas de comprimento, o seu peso se reduz a alguns grammas. A rarefação [sic] dos gazes de que é composto, segundo a analyse espectral, é tão grande que as mais pequenas estrellas transparecem atravez da sua pequena massa. Alem disso a rapidez da sua mutação de forma testemunha da ligeireza da matéria de que são constituidos.
Uma vez, um cometa atravessou com a extraordinaria velocidade com que similhantes corpos são dotados o systema de Jupiter. Por momentos o planeta e os seus satellites ficaram envolvidos pela substancia do cometa e ao serem abandonados por este não tinham sofrido o minimo desvio, nem qualquer mudança de aspecto. A caracteristica destes astros reside pois na enorme extensão do seu percurso, na duração por vezes incalculavel das suas trajectorias e cosmopolitismo, para assim dizer, que os faz exceptuar na aparencia dentre os systemas planetarios. Pertencem ainda ao numero dos mysterios sideraes, que a astronomia não consegue desvendar de pronto.
A sua distancia de alguns centos de milhões de leguas em relação ao nosso orbe permitte um legitimo descanço [sic] aos mais timoratos.
J. Bettencourt Ferreira
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica Scientifica / Os cometas – Reaparição do cometa d’Halley – A previsão da sua volta – Factos historicos – A descoberta do astro pela photographia no Observatorio d’Heidelberg – Receios infundados e inocuidade dos cometas"
in Diário de Notícias
de 25 de Janeiro de 1910, nº. 15876, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1545.