Assumptos do dia
Assistencia Nacional aos tuberculosos
A evolução altruista que os modernos philosophos reconhecem á humanidade, não se realisa exclusivamente em antigas formas sentimentaes.
A caridade que se movia por impulsos generosos derivados, tão sómente, da impressão de emotividade, sujeita-se já, mais submissa, a intenções rasoaveis de methodos moldados segundo os problemas da moderna economia social. A philantropia, se perdeu a suavidade oriental que lhes imprimiu a poesia christã, não voltou tambem por processos atavicos ao rigor de uma selecção brutal.
Á philantropia deve-se real e unicamente attribuir a funcção de correctivo ás consequencias inevitaveis da lei das antinomias, a que a civilisação se não pode eximir.
* * *
A Assistencia, portanto, sabe muito bem que a questão social não se resolve pela esmola. Crê, até, com os publicistas modernos, que a sua solução está no aperfeiçoamento das condições do trabalho. E n’este sentido consagra todo seu esforço, – sem prejuizo da concorrencia logica de todas as outras acções applicadas na mesma orientação redemptora, – propondo-se melhorar a media da saude nacional, que sem duvida representa a principal d’essas condições.
O que valha a saude como elemento de prosperidade publica, que o diga por exemplo a Inglaterra, onde a hygiene e a educação fizeram passar a media da vida, que no começo do seculo era de 32 annos, a 51 annos, que é a de hoje.
* * *
No Congresso de Budapesth de 1894, Leyden, sem duvida o primeiro medico allemão, estabeleceu sobre estatisticas officiaes que a Allemanha perde 170:000 individuos por anno, o que representava para o imperio um effectivo permanente a 1.300:000 tuberculosos. Isto correspondia exactamente a estudos posteriores, que attribuiram ali um caso de tuberculose por cada 50 habitantes.
Ora sabendo todos que a tuberculose augmenta de frequencia do N para o S, e applicando essa proporção em Portugal, sem exagero, podemos affirmar que temos annualmente entre nós 100:000 tuberculosos, com uma mortalidade de 20:000 (Sousa Martins) – o que não deve ser exagerado, pois só Paris, o departamento do Sena, perde 15:000 tuberculosos por anno.
Detteweiller calcula que metade dos tuberculosos – na Allemanha – são pobres, facto que prova bem a importancia do contagio e deve fazer reflectir os escriptores não medicos que querem antes achar a causa da tuberculose em condições economicas. Suppondo que em Portugal dois terços dos seus tuberculosos são pobres, teremos o colossal numero de 60 a 70:000 tuberculosos que por anno clamam os soccorros da Assistencia.
Ingente empreza a que se propozesse arcar com a enormidade do mal! E que admiração surgirem protestos de incredulos, para quem esse empenho não passaria de pretenção [sic] destinada a succumbir na asphyxia do ridiculo!!
Mas não sabemos todos que a tuberculose é uma doença parasitaria, infecciosa, transmissivel por contagio, inoculavel e portanto evitavel? Que apesar de 1/6 da população da Europa civilisada morrer tisica, a tuberculose é de todas as doenças chronicas a que melhor e mais facilmente se cura?
Quando a tuberculose é evitavel, e quanto para isso concorre a Hygiene vê-se pelos seguintes factos:
Em Bruxellas os melhoramentos teem-se realisado de 1864 a 1893, pois, dividindo esses trinta annos em 3 periodos de dez annos, veremos que no 1.º morreram de tisica 7:746, no 2.º 6:914, e no 3.º 5:588. Quer dizer, que, por cada 1:000 habitantes, o coefficiente de mortalidade pela tisica, foi respectivamente nos tres períodos, de 46, – 4 – e – 3,1.
Na Prussia, de 1875 a 1886, a mortalidade pela tuberculose foi de 30 por 10:000. Estabeleceram-se medidas prophylaticas contra a propagação da doença, e no periodo de 1889 a 1893, aquella percentagem baixou a 25, o que deu uma diminuição de 70:000 mortes pela tisica, em relação á media dos annos anteriores.
Em detalhe estudou-se isso no que succedeu nas prisões e hospicios de alienados. Até 1887 por cada 10:000 individuos morriam 101 tisicos. Adoptaram-se as mais rigorosas medidas contra o contagio por meio da exportação, e em 1892 a mortalidade baixava a 81,2.
Que a tuberculose é curavel, demonstram-o as provas anatomicas, physiologicas e clinicas.
No grupo especial de doentes que é subordinavel ao tratamento dos sanatorios, a mortalidade annual média de todos os sanatorios conhecidos, é de 6,3 %.
Muelinaere mostrou que os tuberculosos tratados pelos antigos processos – os usados ainda em quasi todos os hospitaes ordinarios – dão 90 a 95 % de mortes, numero que só a peste attinge nas suas grandes devastações; e dos que se sujeitam á cura de ar, combinada ao tratamento hygienico-dietetico, apenas morrem 45 e menos 40 %.
Se a tuberculose é curavel e evitavel, é dever tratar a tuberculose dos pobres. Mas resolve [sic] a questão do tratamento de 70:000 tisicos pobres pela creacção de Sanatorios, seria uma utopia.
Cingir a [sic] actividades da Assistencia, á construcção de alguns sanatorios, que significam a crystallisação mais eloquente, e a mais cara, da hygiene applicada á lucta da mais terrivel das doenças, seria traduzir architectonicamente lições sublimes, mas nunca realisar o ideal altruista da larga philantropia; seria reduzir um grande esforço no tratamento de uma minoria insignificante.
Faria á pagina mais negra da desgraça humana uma tarja dourada, que só tornaria, pelo contrario, mais funebre a sua significação.
A Assistencia fundara sanatorios, que hoje não tem a tisiopherapia [sic] meio mais proficuo. No momento historico presente, não temos direito de illudir uma necessidade urgente com a esperança risonha de um porvir proximo, em que o sôro antibacillar especifico resolva rapida e economicamente a questão do tratamento da tuberculose.
Os sanatorios serão para um limitado numero de doentes: mas para a grande maioria, para accudir áquelles que ainda trabalham e que sã[o] amparo imprescindivel de milhares de familias pobres, a Assistencia, nas principaes cidades do paiz, fundará os seus Institutos.
* * *
O que procura realisar com o Instituto de Lisboa?
Um estabelecimento que, centralisando os serviços da Assistencia, se destine ao estudo da tuberculose, á sua prophylaxia, e ao tratamento dos doentes. Não é, pois, um dispensario especal, porque a sua complexidade altera a sua feição exclusivamente clinica.
Para o estudo da doença, além de concentrar todos os dados estatisticos do paiz que a ella se refiram, estabelecerá um laboratorio bactereologico que sirva para completar o diagnostico dos clinicos, e prometta, pela competencia de quem o dirigir, trabalhos originaes que, n’uma revelação gloriosa, arranquem o segredo a essa esphynge moderna – a cura da tisica, – e auxilie n’este periodo de indecisão os medicos, revendo todos os meios que a therapeutica proponha e que, antes de applicados aos doentes precisem de ser submettidos á sancção experimental.
Para o tratamento dos doentes será o Instituto, principalmente, uma grande escola de hygiene especial. Procurará ser para os doentes externos o que os sanatorios são para os seus internos.
A cura dos tisicos está, com effeito, na sua educação hygienica. É axiomatico, hoje, que o tratamento da tuberculose não se formule, ensine-se. E, só pela acção directa do conselho do medico sobre o doente, do appello que aquelle faz, constantemente, ao instincto de conservação, procurando interessar o egoismo de quem mais deveria implorar do que resistir, se consegue a obediencia salvadora que conduzirá o doente á saude.
Certo, nos estabelecimentos fechados ha impossibilidade de transgressão aos cuidados prescriptos, e, sendo a obediencia passivel e inevitavel, os resultados teem de ser mais lisongeiros; mas se pelo externato se não obtem tudo, póde conseguir se immenso. Utilidade que irá sempre crescendo, á medida que a divulgação esclareça o publico, porque é certissimo que os desejos da Assistencia só, de nada valerão, sem que a vontade firme do doente, esteja devidamente orientada.
* * *
Por que meios se consegue realisar a cura pela educação do tuberculoso[?]
Em primeiro logar, é bom dizer, que quanto mais precoce fôr o diagnostico, maior possibilidade haverá na cura, ou por outra, mais proficua será essa educação.
Ora o Instituto disporá de todos os meios, os mais modernos e rigorosos – incluindo a radioscopia – de diagnostico, que facilitem o apuramento das tuberculoses apenas iniciadas, procurando, ao mesmo tempo, attrahir os doentes no alvorecer da sua doença, espalhando profusamente as instrucções que indiquem como todos os enfraquecidos pódem ser já verdadeiros tuberculosos no periodo curavel.
É pelo aperfeiçoamento das funcções do pulmão, do estomago, da pelle, da circulação e do systema nervoso, que se conseguirá levantar a nutrição dos doentes, de que dependerá a sua resistencia e victoriosa lucta contra a infecção bacillar.
A funcção da respiração é, sem duvida, a mais importante para um tisico. Nos sanatorios, a cura da tisica chama-se cura de ar. Respirar bem e sempre ar livre, é a primeira das condições d’esse resultado. O ar livre das cidades tem, apezar das suas impurezas, altissimo valor. Letulle mostrou, em resultados que deu a publico, e em Paris me affirmou, que na sua enfermaria, especial do Boucicout, obtinha resultados muito analogos aos dos sanatorios. É, pois, facil ensinar aos doentes pobres como devem e pódem permanentemente, usar o ar livre.
Para as deficiencias do orgão, a gymnastica pulmonar, incluindo as praticas da aerotherapia, – para que o Instituto possuirá os melhores apparelhos, – será ministrada em galerias especiaes.
O estomago tem a maior importancia – tisico que come é tisico curado. A bromatologia tem chegado a estabelecer formulas verdadeiramente praticas e efficazes, destinadas ao tratamento das diversas doenças, incluindo a tuberculose[.] A todos os doentes se darão indicações impressas da fórma como se organisa uma ração conveniente e, dentro dos recursos da Assistencia, serão auxiliados os necessitados.
A pelle é um supplemento do pulmão, o seu vicario. No Instituto serão montadas salas de hydrotherapia, não só para procurar as modificações directas da funcção da pelle, quando aletrada, mas para, por intermedio d’ella e da grande expansão nervosa que ahi se realisa, actuar sobre a nutrição geral ou a de alguns dos orgãos profundos.
O systema nervoso e a circulação estão ligados da maneira mais intima, na influencia que exercem sobre a nutrição geral. Do seu respectivo tom depende o modo como se faz o renovamento molecular, a velocidade da integração organica. Não basta comer e digerir, é indispensavel que se equilibrem, pelo menos, os phenomenos de assimilação e desassimilação, dependentes em parte de phenomenos osmoticos, que teem como determinante a tensão arterial.
Ora todas as impressões sensoriaes, desde a simples fricção cutánea até á injecção hypodermica da mais subtil antitoxina, são razão para que se modifique a tensão vascular e se alterem, e mesmo se invertam, os phenomenos nutritivos.
Esta influencia é tão importante que, curas indubitaveis de muitas tuberculoses, que se attribuem á essencia dos liquidos injectados, são resultado apenas da sua demonstrada acção sobre a tensão arterial. As muitas curas obtidas pelos sóros organicos, as muitas relatadas pelo dr. Backer, – que emprega culturas puras de torulas, – as que já obtivemos em casos graves de infecção bacillar pelo simples sóro de Cheron, resultados tão identicos com liquidos tão differentes, só se comprehendem, referindo-os ao unico elemento commum. Todas ellas, augmentam a tensão arterial e, modificando a nutrição, estabelecem no doente novas condições de resistencia. Pois estes meios, que tantas vezes são salvadores, serão largamente empregados no Instituto.
O cerebro – essa dupla placenta que liga o organismo ao mundo exterior – é susceptivel de influencias therapeuticas de ordem moral, e de concorrer para a cura do tisico.
Desde a agua lustral que curava os doentes, meio hypnotisados sobre as pelles de carneiro, nos templos de Esculapio, até aos processos subjectivos de suggestão inaugurados como meios scientificos na Salpetrière, passando por essas praticas, ingenuamente innocentes, como as do marquez de Puysegur, que magnetisava uma grande arvore, á sombra da qual se curavam os doentes, todos esses meios tinham como fim provocar no encephalo esse erethismo especial, a que se convencionou chamar confiança. E tem tanta importancia na reacção do organismo contra as causas morbificas, que a sabedoria dos povos a traduziu na phrase expressiva: – a fé é que nos salva.
Não poderá deixar, pois, de influir poderosamente no espirito dos doentes a methodica installação do Instituto, considerado debaixo do ponto de vista do seu completo instrumental.
* * *
Na prophylaxia da tuberculose terá o Instituto a maior influencia. A todos os doentes ali tratados, que chegarão a ser milhares, serão distribuidos os escarradores de algibeira, de forma a enclausurar os 700.000:000 de bacillos que todos os dias cada tisico expelle, em media, escarradores que serão quotidianamente trocados por outros, rigorosamente desinfectados nos autoclaves que o Instituto lhes destina.
D’este modo evita-se que o doente se reinfecte, que transmitta a doença a sua familia – e que marque um traço sinistro de contagio por toda a parte por onde passe.
Esta medida, applicada a milhares de doentes, terá por si mais valor que todos os outros meios preventivos; e será a maneira mais efficaz para diminuir rapidamente a população que necessita dos serviços da Assistencia.
No capitulo de desinfecção ainda ha um detalhe importante, a que o Instituto attenderá. Todos sabem o que são as casas dos pobres, e, entrada a tisica n’uma d’ellas, como, de futuro poderão ser causa de tantas infecções. Uma senhora, minha cliente, que visita pobres, auxiliou o tratamento de um tisico, que n’um anno (até morrer) mudou nove vezes de habitação; quer dizer, deixou completamente infectadas nove casas. Quem pode prever as desgraças que originou?
Uma das difficuldades para se desinfectar a casa dos pobres, é não haver onde abrigal-os pelo espaço necessario para se realisar o operação, 24 horas em geral. Pois bem, o Instituto terá um pavilhão destinado a duas familias, que poderão ali permanecer as 24 horas precisas para a competente desinfecção, permittindo assim que durante o anno se desinfectem pelo menos 500 casas de tisicos pobres.
* * *
D’uma fórma geral, eis a que se destina o Instituto de Lisboa. Calmette, que ardentemente trabalha na descoberta de um sóro anti tuberculoso e a quem foi referido o projecto do Instituto, achou que era a verdadeira fórmula para combater a tuberculose, e que estava certo de que em breve a Europa teria de imitar a iniciativa de Lisboa.
D. ANTONIO DE LENCASTRE.
António de Lencastre - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos tuberculosos"
in Diário de Notícias
de 19 de Março de 1900, nº. 12313, p. 1 (c. 1-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1609.