Assumptos do dia
As causas da mortalidade em Portugal
Entre as propostas do sr. ministro da fazenda encontra-se uma que t[e]m por fim realisar um inquerito sobre as causas da mortalidade em Portugal.
Que o governo se preoccupe com este assumpto, que é de grande alcance, nada mais natural e nada mais louvavel, sendo apenas todavia para extranhar que a proposta fosse da iniciativa do ministerio da fazenda, quando incumbia, pela competente repartição de saude, ao ministerio do reino. Parece que o fisco quiz reconhecer assim, tacitamente, que era elle um dos factores que mais essencialmente concorriam para aggravar as estatisticas da mortalidade portugueza.
E com effeito assim é.
Quer-no[s] parecer, salvo melhor juizo, que similhante [sic] inquerito não trará nenhum resultado pratico nem influirá para que se produza uma remodelação benefica nas leis tributarias, afim de alliviar o contribuinte, favorecendo-lhe as condições da vida, que é o mesmo que difficultar a propaganda da miseria e as causas da morte.
Na situação angustiosa do thesouro deve-se evitar cautelosamente e escrupulosamente toda e qualquer despeza, que não seja efficazmente reproductiva. E n’este caso se nos afigura estar a que se fizer com similhante inquerito, que reputamos sup[e]rfluo.
As causas da mortalidade são variadas, e geralmente bem conhecidas, entrando desde logo em linha de conta as condições climatericas. Ha pontos no paiz sasonaticos e doentios e conviria melhoral-os, já fazendo obras que a pratica e a sciencia aconselham, já modificando o systema de culturas.
Estes casos todavia quasi se pódem considerar excepcionaes, porque em geral o clima é excellente e são os homens que estragam a natureza. A hygiene na maior parte das povoações deixa muito a desejar e ninguem ignora quanto é fatal a inobservancia dos mais rudimentares preceitos hygienicos.
As epidemias, sobre tudo as pestilenciaes, eram outr’ora frequentissimas e ha cerca de meio seculo a esta parte que teem diminuido consideravelmente. E porque? Porque se adoptaram algumas providencias energicas, sobresaindo [sic] entre todas a suppressão dos enterramentos nas egrejas – um dos fócos mais perniciosos que se podia imaginar.
Focos identicos, não menos perigosos e fataes, ficaram subsistindo nos centros das grandes povoações. O andaço, como delicadamente denominaram a peste bubonica, deu ensejo a verificar se mais uma vez quanto a habitabilidade no Porto tem todos os encantos e attractivos da pocilga. As ilhas são como os cemiterios das egrejas; catacumbas de vivos. E os pateos, em Lisboa, não lhes podem dizer – tira-te de lá certã, que me enferrujas!
Uma das causas que mais concorrem para o bem estar material de uma cidade é sem duvida o abastecimento das aguas, que nem sempre são abundantes e de boa qualidade. Lisboa, sob este ponto de vista, pode dar graças aos deuses, e se houvesse mais um bocadinho de zelo municipa[l], o beneficio poder-se[-]hia considerar completo, sobretudo pela edificação de casas de banhos ao alcance das classes populares.
Se a habitabilidade tanto contribue para a saude do corpo e até para a alegria, que é a saude do espirito, que diremos nós da alimentação? Quem percorre as ruas de Lisboa, não nas horas do luxo e da elegancia, mas á noite, quando se fecham as officinas e as lojas, nota com magua [sic] que grande parte dos habitantes apresentam caracteres de definhamento, na pallidez do rosto, no atrophiamento dos orgãos, na diminuição da estatura. Parece que vae passando uma raça de pygmeus e de degenerados.
É que esses infelizes, em lucta com mil contrariedades na mesquinhez dos salarios e na carestia dos generos, nutrem-se escassamente, tendo ainda de cercear a minguada ração para satisfazer umas certas apparencias sociaes.
Innegavelmente os generos de primeira necessidade subiram a um preço que em alguns casos os torna inattingiveis. Em nenhuma capital da Europa, talvez em nenhuma capital do mundo, se coma pão tão caro como em Lisboa. Caro e mau. Ora não é fazendo cruzes na boca que uma pessoa se sustenta, que o organismo se vigorisa, que a raça se conserva robusta e se aperfeiçôa.
A estas causas de ordem physica accrescem outras de ordem moral, a que as leis parecem estranhas, mas que afinal se conjugam, sendo umas dependentes das outras. Desde o momento em que os encargos da vida commum são cada vez mais pesados, os laços da familia vão afrouxando de dia para dia e a libertinagem campeia, no despreso das mais santas e das mais justas responsabilidades. Assim se explica, sem grande esforço de investigação, a assustadora percentagem da infancia nas estatisticas mortuarias. É que n’um elemento social d’esta ordem, o affecto material vae-se apagando e dissolvendo para dar logar á cynica indifferença dos que só pensam em aligeirar o fardo da vida.
Ora este estado de cousas presenceia-o toda a gente e os poderes publicos não hão de ser tão cegos que o não vejam tambem.
Facilitae os meios de vida, e tereis assim injectado no organismo social o sôro indispensavel para resistir triumphantemente ás principaes causas de mortalidade.
[n.d.] - "ASSUMPTOS DO DIA / As causas da mortalidade em Portugal"
in Diário de Notícias
de 24 de Março de 1900, nº. 12318, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1611.