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Texto da entrada (ID.1612)

Assumptos do Dia

Assistencia Nacional aos Tuberculosos

(Considerações geraes)

É indispensavel que a propaganda não esmoreça e que dia a dia, hora a hora, com a tenacidade d’uma preoccupação, os que teem logar d’honra na vanguarda d’este philantropico movimento se mantenham resolutos e firmes nos seus postos de combate.

Porque a guerra é formidavel e sem treguas, a maior e a mais renhida que póde travar-se no campo largo dos destinos humanos. É a batalha eterna entre a vida e a morte, que nunca terá fim, a soffrega e implacavel lucta pela existencia, em que o forte aniquila o fraco nas infinitas renovações do universo.

Ataca-nos o inimigo em legiões invisiveis, numerosas como as estrellas do ceu ou como as areias do mar, fluctuando na atmosphera livre ou no ambiente recatado da habitação humana, de maneira que muitas vezes, sem ninguem dar por isso, a beijar uma creança ou a cheirar uma flor, até mesmo na plenitude da força ou nas expansões da alegria, se póde aspirar essa traiçoeira semente da morte, que germinará rapidamente nos recessos do organismo, desenvolvendo-se n’uma pavorosa ramificação de soffrimentos e agonias.

O inimigo avança sempre por toda a parte; e agora mesmo, emquanto [sic] organisamos a defeza e nos aprestamos para a resistencia, tombam em volta de nós, na arena ensanguentada, milhares de creaturas mortalmente feridas, que se esphacelam e morrem sob uma chuva de lagrimas, entre as lamentações e os soluços dos que muito as amaram sem lhes poderem valer.

Os algarismos aterradores das estatisticas mortuarias é conveniente que se patenteiem e divulguem na lição proveitosa das suas oscillações, para que todos e cada um escutem na consciencia o rebate d’um perigo imminente e portanto a necessidade imperiosa de se acautellarem e precaverem contra elle.

A sub commissão de divulgação, a que tenho a honra de pretencer e que reclama o meu pequeno e desluzido contingente de publicidade, é uma das mais importantes de quantas se incorpora na propaganda da Assistencia e cabem-lhe grandes responsabilidades; basta a vulgarisação das noções scientificas sobre a tuberculose e o incitamento á observancia dos preceitos hygienicos, para bem se medir e ponderar o alcance da sua difficil mas essencialissima missão.

Consiste essa missão principalmente em acordar o egoismo individual ou collectivo, isto é, em mergulhar bem fundo na alma popular e accender bem clara a convicção de que se torna urgente e inaddiavel que cada um varra a sua testada, defendendo-se contra a invasão imperceptivel do mal pela observancia rigorosa dos conselhos clinicos.

O egoismo é o motor natural das acções humanas e póde, sabiamente orientado, transformar-se na maxima força anulladora do microbio homicida. Para o conseguir affigura-se-me imprescindivel a cultura permanente, em todas as camadas do desdobramento social, de duas plantas delicadas e sensiveis: «a esperança e o medo» o medo da morte, a esperança da cura.

Que os medicos, com a sua auctoridade profissional, preguem bem alto e insinuem bem fundo o dogma consolador da curabilidade da tuberculose; que todos se convençam de que, auxiliada a natureza pela pratica dos mandamentos scientificos, pode reconstituir se a mais abalada saude, e a esperança brilhará com [sic] um pharol por entre a cerração tempestuosa das agonias e dos desalentos e junto de cada lar, como sentinella vigilante, o medo evitará que o pharol se apague. Esses dois sentimentos, convictamente radicados na alma humana, são sempre capazes de derrubar montanhas e de praticar prodigios!

Todas as forças vivas do paiz estão interessadas n’esta obra de verdadeira reconstituição, porque é na sua medulla, na saude do individuo, que o vampiro vae silenciosamente sugando as riquezas do sangue e as energias da raça.

Fortalecer o individuo tornando-o apto e saudavel, é o mesmo que purificar as nascentes fecundas do trabalho, engrossando-lhe os mananciaes em todos os ramos da actividade productiva. A somma cresce na rasão [sic] directa do valor das parcellas; se as moleculas da sociedade se congregarem e adherirem viciadas na sua origem, haverá no bem geral uma depressão manifesta, que historicamente se póde affirmar ter sido a causa de todas as decadencias.

É, portanto, junto dos poderes publicos que a Assistencia necessita de valorisar os seus esforços de cada momento, para que as condições economicas do paiz se melhorem constantemente. A alimentação tem encarecido de maneira que chega a ser humanitario evitar que os generos de primeira necessidade continuem a tantalisar a faminta miseria dos pardieiros infectos bastas vezes sem ar, sem agua e sem luz.

O povo em geral não se lava, porque não percebe nem reconhece a necessidade da limpeza e tambem porque a lavagem da pelle, incomprehendida nos costumes populares, seria difficil, senão impossivel, para os que vivem agglomerados em cubiculos e mansardas nauseabundas, com agua cara, sem lavatorios ou piscinas adequadas, precisando dos ultimos cinco réis para matar a fome e a sede que os devora.

E, sob este ponto de vista da hygiene publica, forçoso é confessar o nosso retrocesso em relação aos velhos tempos da humanidade civilisada, quando a lavagem do corpo constituia uma das primeiras necessidades da vida. Desde os tempos biblicos em que as filhas de Pharaó, ricas de plastica e perturbadoras de sensualidade, se banhavam rindo nas correntes do Nilo, ou d’essas epocas heroicas, em que os homens corriam a depurar-se nas aguas crystalllinas dos rios, dos quaes emergiam á luz do sol, alegres e fortes, para a faina rude do trabalho agricola ou das luctas guerreiras, aos grandes esplendores da Grecia e de Roma, póde affirmar-se documentalmente que a humanidade atravessou um periodo aureo de hygiene e de força, que mal póde ser comprehendido, quanto mais imitado, pelos depauperados e mesquinhos seres, que chafurdam na lama das agglomerações modernas.

Os banhos são actualmente um apanagio exclusivo dos mimosos da fortuna. Em geral a lavagem do povo não passa das mãos e da cara, porque não ha tempo nem dinheiro para a limpeza da porção de animal coberta pelo vestuario e, portanto, privada da influencia directa e beneficiadora do ar e do sol.

Á proporção que se desce a escala social, das culminancias do privilegio á base larga do pauperismo, observa-se, com segurança de criterio e sobresaltos [sic] de coração, a densidade progressiva da immundicie a envenenar os ambientes, em que respira a massa anonyma dos desprotegios da sorte.

É nos bairros da probreza que o inimigo assenta de preferencia os pavorosos arraiaes. Passa a gente pelas ruas estreitas e insalubres da velha Lisboa, onde vive em montões de lixo a miseria palpitante e soffredora e comprehende que derivem d’ali as enxurradas da morte, que vão sumir-se nos esgotos absorventes das vallas communs.

Homens magros, de cabellos incultos, a praguejarem no fundo dos botequins ou á porta dos bordeis, mulheres derrancadas e macilentas, meretrizes ou mães de familia a tossirem cobertas de farrapos, n’um movimento saccudido de claviculas e nas soleiras das portas ou em cima com as cabecitas encostadas ás grades poeirentas das janellas, creanças semi-nuas, os ventres inchados, as caritas desfeitas e pallidas, os pescoços esguios, a chorarem n’um choro arrastado e somnolento, ou silenciosas e tristes a olharem vagamente, com os olhos amortecidos…

É pois necessario, para que não sejam de todo o ponto inuteis os esforços da Assistencia, que os governos, as camaras municipaes e emfim [sic] todas as estações de saude publica a acompanhem, procurando satisfazer as necessidades imperiosas da alimentação, reformando e melhorando os serviços da hygiene, de modo que o ar e a agua corram profusamente nas camadas inferiores da sociedade portugueza, varrendo os miasmas, lavando os corpos e consolando as almas.

Não vão os tempos azados para a creação de maravilhas que espantem o mundo, nem a situação financeira do paiz se compadece com largos e inuteis dispendios. Não aconselho, portanto, que se fundem em Portugal as thermas romanas de Caracalla, nas quaes, ao mesmo tempo, podiam banhar-se tres mil pessoas em amplas piscinas de marmore e de porphyro, sob arcarias e porticos sumptuosos; mas entendo que deve facilitar-se ao povo, tanto quanto possivel, em institutos apropriados ou nos mesmos domicilios, os meios de limpeza e desinfecção, de maneira que em cada lar possa arvorar-se a bandeira branca e immaculada da mais rigorosa hygiene.

Na epidemia de cholera, que devastou em 1832 a cidade de Paris, affirma o illustre professor Bonchardat que a mortalidade nos bairros da riqueza não excedeu oito por mil, emquanto esse numero se elevou a cincoenta e dois por mil em certas zonas habitadas por gente pobre.

Força e hygiene, pão e asseio, eis os factores imprescindiveis para a resolução de este [sic] momentoso problema de pathologia social. E a Assistencia, que tem no vertice da sua propaganda a bella e generosa rainha, cujo coração, para sentir as desgraças do seu paiz, desceu a palpitar alvoroçado e commovido aos antros da miseria e da fome, póde contar com o prestigio d’um patronato excepcional junto do throno e dos governos.

A Assistencia é o seu sonho e será a sua obra, porque a rainha, sempre expansiva de delicadas abnegações, n’um momento de inspiração, teve olhos que viram a chaga cancerosa que nos vae corroendo as entranhas e tem alma para comprehender o que é urgente e indispensavel conseguir para não serem vãs, como o fumo inutil que se dissipa nos ares, as enternecidas palavras que floriram, ha pouco menos de um anno, na sua formosissima boca de mulher, deixando no espirito de quantos a escutaram um indelevel perfume de piedade e de admiração.

É pois em volta da rainha que todas as energias de valor se devem congregar, para que a propaganda não esmoreça e cada um se mantenha firme e resoluto no seu posto de combate.

CONDE DE MONSARAZ.


Referência bibliográfica

Conde de Monsaraz - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos Tuberculosos / (Considerações geraes)" in Diário de Notícias de 20 de Abril de 1900, nº. 12344, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1612.



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