Assumptos do Dia
Assistencia Nacional aos Tuberculosos
A santa d’agora
Nas primeiras edades de Portugal, quando os leprosos, os feridos de fogo selvagem, como lhes chamava Affonso X, corriam em manadas pelas charnecas desertas, furtando o corpo chaguento á fereza dos cães e ás pedradas dos homens, algumas doces e luminosas figuras de rainha se ergueram em defeza dos lazaros, e despindo os seus pannos de sirgo e ouro, todas as riquezas mortaes de que se vestiam, amontoando teixes e joias, bradaram em meio do egoismo humano: «dae aos leprosos, levantae gafarias onde se alberguem, matae-lhes a fome, guardae-os do frio, porque essas creaturas desamparadas teem coração como nós outros.» E logo com as rainhas Santa Thereza e Santa Sancha se ergueu em Coimbra a primeira gafaria, seguindo se-lhe, ao depois, com Santa Isabel, as de Leiria, Obidos e Odivellas. O brado de compaixão partiu das rainhas. Os leprosos tiveram onde esconder se dos homens que os apedrejavam, do sol que lhes espreitava as chagas, e espantados de tanto bem choraram de contentamento.
Mas a piedade d’esses tempos mediévos não tinha ainda, nem podia ter, esse ar simples e reflectido, desinteressado e sereno, que caracterisa a verdadeira caridade.
As santas rainhas, obsuidas [sic] da idéa do milagre, descendo a lavar por suas mãos as chagas dos leprosos e cuidando que entre os dedos se lhe mudavam em rosas, faziam o bem, mais por enlevo mystico do que por lastima do soffrimento humano. A lepra era a escada de ouro por onde as suas lindas almas humilhadas deviam de subir ao seio de Deus. Foi o mal do tempo. A cada passo, nos documentos coevos, se nota a preoccupação mystica do contraste que tão bem caracterisa a santa antiga. Quem, por achegado a velharias, folheou alguma vez o testamento de Isabel de Aragão, lá viu, por certo, a colorida e preciosa nota de que a santa vestia de seda os seus leprosos. «Item mando que os pannos de sirgo (seda) do meu vestir, que se acharem á minha morte, os façam em vestimentas para os gafos da minha gafaria de Odivelas». Assim resa o testamento. É a idéa fixa da humildade derivando no engrandecimento dos humildes, a caridade decorativa do tempo dada sob a fórma symbolica d’um lazaro vestido de seda, é, finalmente, se me perdôam a expressão, um pouco de theatro para Deus.
A obsessão do milagre, tão profundamente mediéva, e as respectivas allucinações sensoriaes que o milagre traduz, os pretendidos entendimentos secretos com o divino, o delirio de grandezas dado sob a fórma negativa de humildade, a tendencia para o symbolo, emfim [sic] tudo nos affirma que essa grande e luminosa caridade antiga, cheia de lirismo e de esplendor moral, se poderia estudar, a frio, como um feixe de casos de paranoia ambiciosa.
Correram seculos e hoje, de novo, uma Rainha portugueza se ergue a combater, não já o mal biblico, mas outro mal, proximo parente do primeiro, outro mal que faz lazaros tão miseraveis como os lazaros antigos, o desespero maior de toda a humanidade, – a tuberculose. É a santa das primeiras idades de Portugal que resurge [sic], não com o ar gothico e illuminado das santas de altar, olhos no céu, corôa real a resplandecer sobre o oral de seda, regaço florido de rosas que se mudam em ouro, – mas com o ar sereno, pratico, activo e reflectido que caracterisa a santa d’hoje, a santa d’agora, a que exerce a caridade pela caridade, procedendo systemathicamente e intelligentemente, a santa acção, a santa-pensamento. Não é já a piedade lendaria que lava leprosos e muda chagas em rosas; é outra piedade mais util, mas meditada, mais complexa, mais grave.
Entre a fundação das gafarias pelas rainhas santas de outro tempo e a fundação dos sanatorios por esta santa rainha d’agora, obras de egual grandeza, obras de egual santidade, uma só differença existe: a uma, presidiu a Caridade-milagre; á outra, a Caridade-sciencia. No resto, a similhança é perfeita: duas rainhas que, em dois seculos affastados, erguem o primeiro brado de compaixão em face a dois flagellos irmãos. Dir-se-hia que Santa Isabel, a mais linda santa portugueza, inspirou esta nova santa sua filha. A Assistencia Nacional aos Tuberculosos está fundada. Mas a horda barbara do povo indifferente só cuidará no enorme beneficio que deve á Rainha, quando os filhos, porventura, lhe cahirem uma a um, feridos do pavoroso mal, a Ella, nas suas mãos de prata, os fôr amparando misericordiosamente. Então, sim, que os portuguezes verão, em sua magestade a Rainha D. Amelia, a santa advogada do maior mal e do mais pungente flagello humano, – a tuberculose.
JULIO DANTAS.
Júlio Dantas - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos Tuberculosos / A santa d’agora"
in Diário de Notícias
de 15 de Junho de 1900, nº. 12400, p. 1 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1627.