Base de Dados CIUHCT

Divulgação Científica em Jornais



Texto da entrada (ID.1629)

Assistencia Nacional aos Tuberculosos

Alvitres

Como em todas as questões, cuja solução se apresenta ao espirito atravez os [sic] nimbos da incerteza, o methodo se torna a vereda unica por onde seguir, e a fé a bussola que, por entre baixios, vae indicando o norte, inalteravel – assim n’esta lucta que, tenaz, começa de se emprehender contra a tuberculose, serão tudo para a victoria a fé e o methodo.

Complexa entre as mais complexas, esta questão comparte d’um infinito de causas que, depois de haver cahido no dominio das sciencias naturaes, depois de ter prendido a attenção da anthropologia e da physiologia, – passa, com grande numero de suas incognitas pendentes de solução, para o vasto mundo da sciencia social. O homem, objectivo d’esta sciencia, como ser moral e intelligente, torna-se o ponto de observação do sociologo que o estuda nas suas evoluções religiosas, politicas, economicas, nas suas relações de trabalho, na sua constituição de familia; mas este objecto de estudo, no dominio d’esta sciencia, transitara já do ambito das sciencias naturaes com todas as suas degenerecencias [sic], taras hereditarias, lassa constituição, sangue depauperado... E assim, na resultante dos trabalhos do homem em sociedade, haverá sempre a encontrar o coefficiente do homem sob o ponto de vista physico.

Não é triste apanagio da nossa civilisação esse estado em que elle se encontra, principalmente nos grandes centros; e se o reflexo de tal situação nas suas relações sociaes, em outros paizes, não se manifesta com tanta eloquencia como em o nosso, causas multiplas determinam o facto: – a grandeza territorial, os vastos recursos economicos e financeiros, a instrucção scientifica e profissional, as bem ordenadas correntes de migração e emigração, o caracter progressivo das leis, etc., etc. É indubitavel, porém, que o definhamento da raça latina vem já de longe accentuando-se; e que, n’um crescendo de desfallecimentos, ella que avassalou o mundo, que pelas armas, sciencias, artes e letras se lhe impoz, está a pique de perder a sua hegemonia. E caso será para meditar se em seus paroxismos estará espalhando por todo o mundo, por todas as raças, os principios morbidos que a contaminam e depauperam.

É sem duvida, entre esses morbidos germens, a tuberculose aquelle que faz maior numero de victimas, e levanta, a gráu assustador, o nivel da mortalidade na estatistica da Europa e America.

O que o bacillo de Kock produz entre nós está sobejamente conhecido. São 20:000 por anno as pessoas que não resistem á sua invasão, e, além do luto, das lagrimas, da faminia orphandade e viuvez em que deixam immersos os que lhes foram caros, determinam uma perda assás importante no organismo social sob o aspecto de um valor economico.

Impõe-se a lucta; mas, como a ligeiro traço acabamos de vêr, sendo profundas e tão fasciculadas as raizes d’esse mal, é mister iniciar o combate com uma ardentissima fé na victoria e um ordenado methodo que bem equivalha á mais logica estrategia. Fé tão intensa como a dos cavalleiros que se batiam pela Cruz, estrategia tão bem meditada que, no decurso de alguns annos, não haja brecha que dê fuga ao inimigo.

Como acontece com a observação dos phenomenos naturaes, será necessario n’este caso ascender, por gráus, do exame do simples ao composto, do abstracto ao concreto. No organismo social, que é synthese de todas as forças da natureza, esse exame terá de obedecer ao mesmo principio. E o leme que dirija, que ensine a róta ao timoneiro em tão obumbrada [sic] vastidão será, parece-nos, o preceito medico, que é quasi um axioma: a hygiene evita a tuberculose.

* * *

Ascender do simples ao composto importa labor insano que farão a espaços quebrantar difficuldades de toda a ordem. Em o nosso meio, eivado de preconceitos, falho de ideal, pobre de numerario e de iniciativa, rotineiro ou imitador inconsciente, quanto e quão tenaz será o esforço necessario para vencer! Ah! mas a Fé produz milagres!

Pela expressão – simples – designaremos, tomando para campo de observação a população de Lisboa, a apresentação e estudo de questões que tão intimamente se prendem com o desenvolvimento da tuberculose; e pela palavra – composto – as formulas praticas de resolver essas questões, dados os seus multiplos aspectos: politicos, sociaes, economicos e financeiros.

A hygiene evita a tuberculose eis o norte. Pois entre aquellas questões, uma se nos apresenta que reputamos capital: a da habitação das classes menos abastadas.

Quando, em 1891, escreviamos o livro – Habitação do operario – não querendo que a phantasia desregrasse a penna na descripção dos bairros pobres de Lisboa, fomos visital-os demoradamentre, e a impressão recebida já então foi concludente para o nosso espirito: – ali morre-se!

Quem não observou esses bairros, com as suas ruas em torcicolo, estreitas, sujas, nauseantes, com os seus predios esguios e negros, com o labyrinto de travessas e bêcos, não formará uma idéa clara da Lisboa pobre.

Os medicos tem [sic] a palavra no assumpto, principalmente os clinicos das associações de soccorro mutuo. Elles conhecem essas ruas e esses predios por dentro. Transpõem quantas vezes os humbraes das lojas, portas que dão ingresso a subterraneos, e ali, á luz fôsca e bruxoleante do azeite, sobre o desconfortavel catre, no quarto unico, de paredes viscosas e humidas, escutam o raio pneumonico do tuberculoso, tomam-lhe o pulso, emquanto [sic] na inconsciencia pueril, creancinhas, ás tres, ás quatro se rebolam pelo chão, olhar amortecido, esqueleticas, pallidas… esfomeadas!

Incontestavelmente o primeiro reducto a atacar será este: – o da habitação.

Mas quantas difficuldades se entolham para a realisação pratica do problema que lhe diz respeito: – a construcção de casas modestas em novos bairros especialmente a ellas destinados.

No citado livro mencionamos a formula pratica de, sem onus, poder o estado ir ao encontro d’esse problema; e passados quasi nove annos, embora sejam hoje diversas as condições financeiras do paiz, ainda, porém, suppomos realisavel a ideia de ceder o Estado a empresas constructoras, solidas, bem garantidas e com as clausulas que n’esse trabalho citamos, os terrenos das cêrcas dos conventos extinctos que ha em Lisboa, e por todo o reino.

Pois não é verdade que o preço do terreno, nos maiores centros de população, incide sempre nas edificações, encarecendo-as? Pelos calculos desenvolvidos no referido trabalho, optimos seriam os resultados obtidos por essas emprezas [sic], cujos capitaes representados em propriedade, ficariam bem consolidados; e sob o ponto de vista da hygiene cem mil organismos, ou talvez mais, soffreriam um saneamento que os havia de reconstituir.

Utopia? Mas de fosse possivel concilicar as exigencias do capital e a sua segurança com a hygiene dos principaes centros de população, evitando-se, por essa fórma, que de anno para anno cresça a mortalidade pela tuberculose, victimando pobres e ricos; se isto fôsse possivel mereceria a ideia uma tal denominação?

Depois, como ficariam n’esse terreno das cêrcas dos extinctos mosteiros, bem collocadas as pequenas e asseiadas [sic] cazinhas [sic] onde vivesse o operario, o pequeno empregado, com a sua familia, sem promiscuidades pouco moraes, aspirando bom ar, aquecendo se a bom sol vendo crescer os seus filhos, de faces córadas, de riso nos labios e de olhar alegre! Como ficariam bem situadas essas casinhas brancas, ali no chão, que as sandalias das piedosas virgens pisaram outr’ora, rogando a Deus por todos os que soffrem!

* * *

Tambem entre as muitas questões que se relacionam com a tuberculose, a uma d’ellas consagrámos actualmente a nossa attenção, porque se liga com o assumpto – estudo e exame da situação das associações de soccorro mutuo de Lisboa que officialmente nos foi commettido. Accusa a estatistica, quasi concluida, referente ao anno de 1898, a mortalidade superior a 1:000 individuos n’uma morbilidade superior a 23:000. Não é possivel deduzir com precisão quanto, n’essa morbilidade, manifesta a tuberculose; todavia deve ser alto o numero, porque tal designação, entre as causas das doença, n’esse anno é bastante repetida.

Uma pergunta: o socio da associação de soccorro mutuo enfermo de tuberculose, dada a força contagiosa d’esta doença, deve ser tratado no proprio domicilio? Parece que não, porque tal facto importaria o derramamento do mal, não só entre a familia do socio, como tambem entre os inquilinos do predio.

Nem tal cura nunca se poderia effectuar. Só nos especiaes sanatorios é que o enfermo poderia alcançar o indispensavel tratamento.

Afigura-se-nos haver achado a formula practica que, realisada, evitará o contagio da doença e o onus que ella está trazendo a essas utilissimas instituições, (tão grande que occasionará talvez a vida attribulada de algumas d’ellas) e ao mesmo tempo contribuirá sobre maneira para fazer decrescer o numero dos que são invadidos pelo terrivel bacillo. E convencidos estamos de que tal formula não cairá nos dominios da utopia.

* * *

A fé, a fé ardente de que n’este acerrimo combate não tardarão a ouvir-se os hymnos da victoria é do que mais necessita o espirito immerso no cogitar d’este assumpto. E como que a representar a Fé paira o vulto gracil d’uma princeza cujo coração amantissimo sangra á vista de tanta dôr, de tanto luto que vão por esse paiz; symbolisa-a a Rainha de Portugal que, sem distincção, appella para todas as classes, a todas rogando obulos de espirito e mealhas que levem a bom termo a sua cruzada santa! Abençoada seja!

Guilherme de Santa Rita.

 

[NOTA - Este artigo de opinião foi primeiramente publicado na edição n.º 12412 do Diário de Notícias, de 27 de Junho (p. 1. c- 1-2). Em virtude de uma reclamação do seu autor, apontando erros e gralhas, em carta publicada no mesmo periódico a 28 de Junho, a redacção decidiu repetir a sua publicação, em texto corrigido, o que aqui se transcreve]


Referência bibliográfica

Guilherme de Santa Rita - "Assistencia Nacional aos Tuberculosos / Alvitres" in Diário de Notícias de 29 de Junho de 1900, nº. 12414, p. 1-2 (c. 12-c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1629.



Detalhes


Nome do Jornal


Mostrar detalhes do Jornal

Número

Ano Mês Dia Semana


Título(s) do Artigo


Título

Género de Artigo
Opinião

Nome do Autor Tipo de Autor


Página(s) Localização do Artigo na(s) página(s)


Tema

Associação/Sociedade
Educação Cientifica
Outros
Palavras Chave


Notícia