Assistencia Nacional aos Tuberculosos
Alvitres
Como em todas as questões, cuja solução se apresenta ao espirito atravez os [sic] nimbos da incerteza, o methodo se torna a vereda unica por onde seguir, e a fé a bussola que, por entre baixios, vae indicando o norte, inalteravel – assim n’esta lucta que, tenaz, começa de se emprehender contra a tuberculose, serão tudo para a victoria a fé e o methodo.
Complexa entre as mais complexas, esta questão comparte d’um infinito de causas que, depois de haver cahido no dominio das sciencias naturaes, depois de ter prendido a attenção da anthropologia e da physiologia, – passa, com grande numero de suas incognitas pendentes de solução, para o vasto mundo da sciencia social. O homem, objectivo d’esta sciencia, como ser moral e intelligente, torna-se o ponto de observação do sociologo que o estuda nas suas evoluções religiosas, politicas, economicas, nas suas relações de trabalho, na sua constituição de familia; mas este objecto de estudo, no dominio d’esta sciencia, transitara já do ambito das sciencias naturaes com todas as suas degenerecencias [sic], taras hereditarias, lassa constituição, sangue depauperado... E assim, na resultante dos trabalhos do homem em sociedade, haverá sempre a encontrar o coefficiente do homem sob o ponto de vista physico.
Não é triste apanagio da nossa civilisação esse estado em que elle se encontra, principalmente nos grandes centros; e se o reflexo de tal situação nas suas relações sociaes, em outros paizes, não se manifesta com tanta eloquencia como em o nosso, causas multiplas determinam o facto: – a grandeza territorial, os vastos recursos economicos e financeiros, a instrucção scientifica e profissional, as bem ordenadas correntes de migração e emigração, o caracter progressivo das leis, etc., etc. É indubitavel, porém, que o definhamento da raça latina vem já de longe accentuando-se; e que, n’um crescendo de desfallecimentos, ella que avassalou o mundo, que pelas armas, sciencias, artes e letras se lhe impoz, está a pique de perder a sua hegemonia. E caso será para meditar se em seus paroxismos estará espalhando por todo o mundo, por todas as raças, os principios morbidos que a contaminam e depauperam.
É sem duvida, entre esses morbidos germens, a tuberculose aquelle que faz maior numero de victimas, e levanta, a gráu assustador, o nivel da mortalidade na estatistica da Europa e America.
O que o bacillo de Kock produz entre nós está sobejamente conhecido. São 20:000 por anno as pessoas que não resistem á sua invasão, e, além do luto, das lagrimas, da faminia orphandade e viuvez em que deixam immersos os que lhes foram caros, determinam uma perda assás importante no organismo social sob o aspecto de um valor economico.
Impõe-se a lucta; mas, como a ligeiro traço acabamos de vêr, sendo profundas e tão fasciculadas as raizes d’esse mal, é mister iniciar o combate com uma ardentissima fé na victoria e um ordenado methodo que bem equivalha á mais logica estrategia. Fé tão intensa como a dos cavalleiros que se batiam pela Cruz, estrategia tão bem meditada que, no decurso de alguns annos, não haja brecha que dê fuga ao inimigo.
Como acontece com a observação dos phenomenos naturaes, será necessario n’este caso ascender, por gráus, do exame do simples ao composto, do abstracto ao concreto. No organismo social, que é synthese de todas as forças da natureza, esse exame terá de obedecer ao mesmo principio. E o leme que dirija, que ensine a róta ao timoneiro em tão obumbrada [sic] vastidão será, parece-nos, o preceito medico, que é quasi um axioma: a hygiene evita a tuberculose.
* * *
Ascender do simples ao composto importa labor insano que farão a espaços quebrantar difficuldades de toda a ordem. Em o nosso meio, eivado de preconceitos, falho de ideal, pobre de numerario e de iniciativa, rotineiro ou imitador inconsciente, quanto e quão tenaz será o esforço necessario para vencer! Ah! mas a Fé produz milagres!
Pela expressão – simples – designaremos, tomando para campo de observação a população de Lisboa, a apresentação e estudo de questões que tão intimamente se prendem com o desenvolvimento da tuberculose; e pela palavra – composto – as formulas praticas de resolver essas questões, dados os seus multiplos aspectos: politicos, sociaes, economicos e financeiros.
A hygiene evita a tuberculose eis o norte. Pois entre aquellas questões, uma se nos apresenta que reputamos capital: a da habitação das classes menos abastadas.
Quando, em 1891, escreviamos o livro – Habitação do operario – não querendo que a phantasia desregrasse a penna na descripção dos bairros pobres de Lisboa, fomos visital-os demoradamentre, e a impressão recebida já então foi concludente para o nosso espirito: – ali morre-se!
Quem não observou esses bairros, com as suas ruas em torcicolo, estreitas, sujas, nauseantes, com os seus predios esguios e negros, com o labyrinto de travessas e bêcos, não formará uma idéa clara da Lisboa pobre.
Os medicos tem [sic] a palavra no assumpto, principalmente os clinicos das associações de soccorro mutuo. Elles conhecem essas ruas e esses predios por dentro. Transpõem quantas vezes os humbraes das lojas, portas que dão ingresso a subterraneos, e ali, á luz fôsca e bruxoleante do azeite, sobre o desconfortavel catre, no quarto unico, de paredes viscosas e humidas, escutam o raio pneumonico do tuberculoso, tomam-lhe o pulso, emquanto [sic] na inconsciencia pueril, creancinhas, ás tres, ás quatro se rebolam pelo chão, olhar amortecido, esqueleticas, pallidas… esfomeadas!
Incontestavelmente o primeiro reducto a atacar será este: – o da habitação.
Mas quantas difficuldades se entolham para a realisação pratica do problema que lhe diz respeito: – a construcção de casas modestas em novos bairros especialmente a ellas destinados.
No citado livro mencionamos a formula pratica de, sem onus, poder o estado ir ao encontro d’esse problema; e passados quasi nove annos, embora sejam hoje diversas as condições financeiras do paiz, ainda, porém, suppomos realisavel a ideia de ceder o Estado a empresas constructoras, solidas, bem garantidas e com as clausulas que n’esse trabalho citamos, os terrenos das cêrcas dos conventos extinctos que ha em Lisboa, e por todo o reino.
Pois não é verdade que o preço do terreno, nos maiores centros de população, incide sempre nas edificações, encarecendo-as? Pelos calculos desenvolvidos no referido trabalho, optimos seriam os resultados obtidos por essas emprezas [sic], cujos capitaes representados em propriedade, ficariam bem consolidados; e sob o ponto de vista da hygiene cem mil organismos, ou talvez mais, soffreriam um saneamento que os havia de reconstituir.
Utopia? Mas de fosse possivel concilicar as exigencias do capital e a sua segurança com a hygiene dos principaes centros de população, evitando-se, por essa fórma, que de anno para anno cresça a mortalidade pela tuberculose, victimando pobres e ricos; se isto fôsse possivel mereceria a ideia uma tal denominação?
Depois, como ficariam n’esse terreno das cêrcas dos extinctos mosteiros, bem collocadas as pequenas e asseiadas [sic] cazinhas [sic] onde vivesse o operario, o pequeno empregado, com a sua familia, sem promiscuidades pouco moraes, aspirando bom ar, aquecendo se a bom sol vendo crescer os seus filhos, de faces córadas, de riso nos labios e de olhar alegre! Como ficariam bem situadas essas casinhas brancas, ali no chão, que as sandalias das piedosas virgens pisaram outr’ora, rogando a Deus por todos os que soffrem!
* * *
Tambem entre as muitas questões que se relacionam com a tuberculose, a uma d’ellas consagrámos actualmente a nossa attenção, porque se liga com o assumpto – estudo e exame da situação das associações de soccorro mutuo de Lisboa que officialmente nos foi commettido. Accusa a estatistica, quasi concluida, referente ao anno de 1898, a mortalidade superior a 1:000 individuos n’uma morbilidade superior a 23:000. Não é possivel deduzir com precisão quanto, n’essa morbilidade, manifesta a tuberculose; todavia deve ser alto o numero, porque tal designação, entre as causas das doença, n’esse anno é bastante repetida.
Uma pergunta: o socio da associação de soccorro mutuo enfermo de tuberculose, dada a força contagiosa d’esta doença, deve ser tratado no proprio domicilio? Parece que não, porque tal facto importaria o derramamento do mal, não só entre a familia do socio, como tambem entre os inquilinos do predio.
Nem tal cura nunca se poderia effectuar. Só nos especiaes sanatorios é que o enfermo poderia alcançar o indispensavel tratamento.
Afigura-se-nos haver achado a formula practica que, realisada, evitará o contagio da doença e o onus que ella está trazendo a essas utilissimas instituições, (tão grande que occasionará talvez a vida attribulada de algumas d’ellas) e ao mesmo tempo contribuirá sobre maneira para fazer decrescer o numero dos que são invadidos pelo terrivel bacillo. E convencidos estamos de que tal formula não cairá nos dominios da utopia.
* * *
A fé, a fé ardente de que n’este acerrimo combate não tardarão a ouvir-se os hymnos da victoria é do que mais necessita o espirito immerso no cogitar d’este assumpto. E como que a representar a Fé paira o vulto gracil d’uma princeza cujo coração amantissimo sangra á vista de tanta dôr, de tanto luto que vão por esse paiz; symbolisa-a a Rainha de Portugal que, sem distincção, appella para todas as classes, a todas rogando obulos de espirito e mealhas que levem a bom termo a sua cruzada santa! Abençoada seja!
Guilherme de Santa Rita.
[NOTA - Este artigo de opinião foi primeiramente publicado na edição n.º 12412 do Diário de Notícias, de 27 de Junho (p. 1. c- 1-2). Em virtude de uma reclamação do seu autor, apontando erros e gralhas, em carta publicada no mesmo periódico a 28 de Junho, a redacção decidiu repetir a sua publicação, em texto corrigido, o que aqui se transcreve]
Guilherme de Santa Rita - "Assistencia Nacional aos Tuberculosos / Alvitres"
in Diário de Notícias
de 29 de Junho de 1900, nº. 12414, p. 1-2 (c. 12-c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1629.