Assumptos do Dia
Assistencia Nacional aos Tuberculosos
Carne e leite
Um dos meios por que se faz a transmissão do germen tuberculoso é – já o deixámos dito – pelo leite e pelas carnes de alimentação. O distincto medico portuense sr. Arantes Pereira, discreteando na Sociedade União Medica, sobre o contagio da tuberculose, que ali se discutia, e dissertando sobre a distribuição geographica d’aquelle morbo, cita, a tal respeito, o celebre trabalho de Brusch (Med. Mod. n.º 43, julho de 97) e prova, com elle, que a tuberculose augmenta, nos diversos paizes com a maior proporção de gado vaccum [sic], ou bovino, para cada habitante, e com o maior uso do leite e da carne de vacca. – Assim por exemplo: na Islandia, em condições de clima identicas ás da Dinamarca (onde a tuberculose está na relação de 2 a 3 por %), é rara esta doença: as vaccas só dão ali leite no verão e quasi se lhes não emprega a carne para a alimentação. Os kirguis das steppes russas não teem a vacca domestica e consomem, por isso, o leite da egoa e a carne de cavallo: gosam por este facto, de completa immunidade para a tuberculose, o que tambem succede aos esquimaus [sic], que domesticaram o rangifer em vez da vacca. Os esquimaus, porém, que habitam a Groenlandia [sic], especialmente os da classe media, criam vaccas, consomem-lhes o leite todo o anno, e contraem frequentemente a tisica.
Na India, onde a vacca é sagrada, usava[-]se só leite de bufalo, sendo então desconhecida ali a tuberculose; desde que, com os inglezes, foi introduzida a vacca leiteira, já em alguns pontos a tisica ceifa muitas vidas, tendendo a alastrar por toda a India. – Muitos outros exemplos se apresentam n’aquelle trabalho, comprovativos da transmissão da tuberculose pela carne e pelo leite de vacca.
Segundo a opinião auctorisada do sr. Sabino de Sousa, expressa no congresso de Coimbra, «a maioria de Portugal come carne tuberculosa e bebe leite tuberculoso.» – Isto deve ser assim, visto que, em quasi todo o paiz, a fiscalisação das rezes a abater e das vaccas leiteiras não existe, ou – o que é peior [sic] – é feita...
De uma villa sabemos nós, onde este «fiscalisação» está confiada... a quem pódem supôr os nossos benevolos leitores – se alguns temos – que foi confiada?... Je vous le donne en mille... Á mulher do calceteiro da camara!... Ha bons seis ou sete annos já nós advogámos, n’um semanario que então dirigiamos, a necessidade da fiscalisação «por veterinario» das carnes d’açougue e das vaccas de leite. Gastámos n’isso o melhor da nossa logica e da nossa erudição, que por tal fórma «assombrou» a respectiva edilidade, que ainda hoje não voltou a si, ficando, portanto, impossibilitada psychicamente de tomar as providencias, que miudamente lhe apontávamos. Ella e as que lhe succederam; tal foi o effeito intensissimo do meio que escolheramos para remediar um grande mal.
A verdade é que as camaras municipaes, na sua maioria, são constituidas por pessoas muito dignas, muito respeitaveis, mas sem a illustração bastante para comprehender a importancia d’esta e de outras questões de hygiene e de policia sanitaria. É ao governo que compete, pois, providenciar, obrigando as camaras, que o não tiverem já feito, a crear um partido de veterinario e a provel-o em pessoa idonea. A esse veterinario incumbirá a inspecção de todo o gado, que for abatido nos matadouros do municipio e a inspecção tambem das vaccas de leite.
O ordenado seria de 400 a 600 mil réis annuaes, conforme a importancia do municipio e o trabalho a desempenhar.
Por esta medida os cursos de veterinaria voltariam a ser mais frequentados e crear-se hiam assim muitos logares para serem preenchidos sem o menor gravame para o Estado. A lucta contra a tuberculose não deve só travar[-]se nos grandes centros de população; é preciso que se generalise, que se empenha em todo o paiz.
Lá fóra, na provincia, por essas miseras aldeolas e tristes logarejos, onde a hygiene é – e será – a negação completa de quanto a sciencia nos ensina, onde o typo robusto do bom aldeão e o não menos vigoroso e sadio do camponez se apresentavam, não ha muito tempo ainda, como trincheiras e baluartes, que as doenças de peito não assaltavam, nunca, vae a tuberculose – mercê do contagio pela maior facilidade das communicações com os grandes centros – devastando cruelmente, não poupando sexos, nem escolhendo idades – Pois bem: a esses infelizes desherdados, que nascem e vivem só para o trabalho rude, que para seu uso só teem de bom o que lhes não podem tirar: o ar tonificante e puro do campo e o bom sol que lhes aquece as energias, a esses eternos proletarios, quando alimentam seus filhos com leite de vacca, quando vão ao açougue buscar carne para os seus doentes – e só n’estas circumstancias [sic] lá vão – dê-se-lhes, ao menos, a certeza de que não matam os filhos com o leite que lhes fornecem e de que na carne, com que alimentam os seus doentes, não vae em vez da saude que lhes procuram – ás vezes com que sacrifício! – o germen d’outra molestia, muito mais grave ainda do que a que pretendem debellar.
Se a Assistência Nacional aos Tuberculosos conseguir dos poderes publicos este enorme beneficio para as povoações ruraes, não será elle o menor dos muitos que está promovendo, nem o menos valioso e humanitario de quantos se propõe prestar.
Alves Crespo.
Alves Crespo - "ASSUMPTOS DO DIA / Assistencia Nacional aos Tuberculosos / Carne e leite"
in Diário de Notícias
de 9 de Julho de 1900, nº. 12424, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1633.