Assumptos do dia
Os destinos das industrias e das classes trabalhadoras
A celebre phrase de Victor Hugo uma cousa matará a outra – ceci tuera cela – tem immediata applicação a todos os factos da vida humana, mas com especialidade aos que se derivam de evolução constante da sciencia e da industria.
Effectivamente é n’estes dois campos da nossa actividade, sobretudo no seculo que está a findar, que as transformações se teem operado mais rapidas, ás vezes até de um modo inesperado.
Os descobrimentos succedem se aos descobrimentos e sobre elles se baseiam as novas theorias, que substituem com mais probabilidade de certeza, as theorias que faziam o orgulho dos sabios, que primeiro as formularam.
O admiravel invento de Fulton, e a sua applicação aos meios de transporte e a todos os ramos da industria, operou uma das [m]ais extraordinarias revoluções que se conhecem, tanto sob o ponto de vista economico, como sob o ponto de vista social.
A apparição da machina a vapor assignala uma das epocas mais notaveis na historia do trabalho e ainda que a electricidade a venha a [sic] substituir vantajosamente, n’um proximo futaro [sic], nada haverá que possa fazer olvidar os relevantes serviços por ella prestados á causa do progresso.
Assim como não ha nada perfeite [sic] n’este mundo e até nos atrevemos a notar imperfeições na obra da natureza, assim a transformação que soffreu toda a sorte de machinismo pela applicação do vapor, havia de trazer alguns resultados funestos a par de grandes e incontestaveis benefícios
Em primeiro logar o machinismo a vapor deu cabo de muitas industrias caseiras, reduziu portanto o numero dos o[p]erarios n’ella empregados e produziu um desequilibrio e um mal-estar, apenas toleraveis por transitorios.
Em segundo logar a producção dos artefactos augmentou consideravelmente, dando logar a uma concorrencia temivel não só entre os fabricantes do mesmo paiz, mas entre a[s] industrias das diversas nacionalidades. Este excesso de producção concorre para a barateza dos artefactos, influindo por conseguinte para o statuo-quo ou até para a redução do salario.
D’aqui se tem originado as gréves e outras crises não menes [sic] graves, obrigando as nações de maior actividade industrial, como a Inglaterra, a Allemanha e a França, a procurar quasi sempre por meios violentos, a abertura de novos mercados, que sirvam de derivativo commercial aos enormes depositos das suas fabricas.
As condições do operariado mudaram completamente com o systema do machinismo a vapôr [sic]. Antigamente o artifice trabalhava isoladamente e ao fim da semana ia apresentar o producto do seu trabalho ao individuo que explorava aquelle ramo de industria. Era em greal nas cercanias dos grandes centros fabris que se dava este facto. O operario vivia na sua casinha campestre, onde, com auxilio da sua familia, amanhava a sua hortasinha e assim disfructava uma vida quasi patriarchal. No Porto, por exemplo, ainda se observam vigorosos vestigios d’essas tradições seculares. Em Campanhã, S. Cosme, Valbom, Avintes, ainda ha muitas familias occupadas [e]m trabalhos de marcenaria e ourivesaria e outras industrias, que tendem todavia a extinguir-se.
A concentração dos operarios nas grandes fabricas e nos logares populosos, foi a causa que mais poderosamente contribuiu para a unificação da classe, estabelecendo um quarto estado, cuja influencia nos destinos da sociedade é já sensivelmente grande, mas que por certo irá progredindo constantemente, a não ser que as condições do trabalho venham a soffrer uma transformação radical, passando por uma phase completamente inesperada.
Os processos mechanicos modernos facilitaram e moderaram o trabalho, fazendo com que o operario não seja, em grande numero de casos, um verdadeiro animal de carga. A machina nobilitou para assim dizer o homem, que precisa de adquirir em força intellectual o que perdeu em força material. A machina é como a rabeca nas mãos de um instrumentista. Para que ella funccione bem, é preciso que quem a dirige seja habil e vigilante e não um simples automato.
A mechanica, a physica, a chimica não descançam [sic] na descoberta e aperfeiçoamento das machinas e processos existentes, e por isso o industrial e o operario nunca pódem contar, n’uma absoluta segurança, com o dia de ámanhã. As oscillações são frequentemente terriveis, mas, por muito que lastimemos a sorte dos que soffrem mais directamente com essas innovações, não se póde deixar de applaudir e de acceitar tudo aquillo que traga um beneficio para a communidade. Esses abalos, ainda que profundos, são passageiros e sanaveis. Se uma industria se extingue, outra se cria que a substitue, e não será por amor á rotina e ao passado, por um sentimentalismo poetico, que havemos de levantar um grito de insurreição contra os innovadores. Que se diria de quem prégasse a guerra santa contra a vi[a]ção moderna, contra os caminhos de ferro e contra os grandes transportes maritimos, só porque elles deram cado dos almocreves e carretas antigas e arruinaram a navegação á vela?
Sem negar os beneficios do progresso, sem amaldiçoar a era nova, sem desdenhar do passado, que tinha muita coisa de util e de bom, que não deveriamos despresar [sic], antes deviamos conservar religiosamente, quer nos parecer todavia que tudo se poderia conciliar sem agravo e sem prejuizo para ninguem. No espirito do operariado e dos donos de fabricas deve fixar-se o convencimento de que nada é estavel n’este mundo e que tudo se póde modificar de um momento para o outro. Convém portanto estar prevenido para essas eventualidades, dispondo antecipadamente os meios de obstar ás oscillações violentas, preparando as coisas para uma transição suave. Assim como nos caminhos de ferro ha os freios automaticos e os apparelhos para moderar os choques violentos, assim no mundo da industria haja os apparelhos moraes destinados a prevenir e a reparar as oscillações bruscas e os abalos profundos.
N’este pensamento commum se devem ligar os patrões e os operarios, como membros da mesma familia, e não como rivaes que teem aspirações oppostas.
E o Estado, cuja missão é de caracter paternal, não póde ficar tambem indifferente, e deve pelo seu lado concorrer para evitar as crises do trabalho, pois n’isso vae o seu interesse, que é o mesmo que dizer o interesse da sociedade, cuja guarda suprema lhe está confiada.
[n.d.] - "ASSUMPTOS DO DIA / Os destinos das industrias e das classes trabalhadoras"
in Diário de Notícias
de 24 de Agosto de 1900, nº. 12470, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1646.