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Texto da entrada (ID.1649)

Assumptos do dia

Do nosso amigo e illustre collega sr. Zacharias d’Aça, recebemos o seguinte artigo, que é um brado em favor de uma causa justa e que póde ter solução favoravel para o povo, que deseja continuar a utilisar-se das aguas do Tejo.

Banhos para o povo de Lisboa

As questões de saude publica são reconhecidamente as que de preferencia devem ser attendidas e estudadas pelos municipios e pelas auctoridades superiores, a quem está entregue a admmistração [sic]. Dil-o a razão, e a sciencia, é doutrina corrente nas escolas, determinam o as leis, exige-o o espirito de caridade e de altruismo, que caracterisa a moderna civilisação, é tão notavelmente o espirito e o coração do povo portuguez. Provam-o [sic] factos de todos os dias, e seria ocioso insistir nisto, que para todos é notorio; prova o a maneira porque foi acolhida, festejada, e abençoada a iniciativa de Sua Magestade, a Rainha, quando levantou o grito de alarme contra um inimigo, que nos rouba, aos milhares, as vidas de tantos desgraçados, victimas condemnadas fatalmente, e que não sabem, nem podem defender-se.

Ao chamamento da egregia Princeza responderam os ricos, os remediados e até os pobres; a sciencia, representada pelos seus doutores mais illustres, tomou desde logo parte nesta santa cruzada, e a imprensa com a sua alta voz, que tão longe sôa, proclamou-a desde logo, e essa voz, atravessando os mares, foi ouvida nos dois continentes! Descerraram-se as bolsas, e o oiro dos ricos, para elles fonte de gosos e de prazeres, accorreu em auxilio da desgraça, vindo combater a doença – filha da pobreza e da ignorancia – e tambem fonte, mas só de lagrimas, de dores e de infortunios! Bemdita seja sempre a caridade, que desce dos alcaçares regios e dos palacios dos opulentos, e estende a mão protectora aos desvalidos, que na loteria da vida tiveram o peior [sic] quinhão! Bemdita!

Remontando do terrivel effeito – a doença – ás causas, que a provocam e que a alimentam, o campo é vastissimo; – tem o [sic] explorado muitos, aqui e lá fóra, que o inimigo tudo invade, a ninguem perdoa, e, como orgulhoso das suas mortaes e já innumeras victorias, tenta levar tudo de assalto, e da morada dos pobres ergue o seu espectro ameaçador para a residencia dos ricos!

Como acontece nos grandes perigos nacionaes, quando a patria é ameaçada, todos correram ás armas e se aprestaram para o combate. Abundaram logo os planos e os alvitres – a batalha já se travou, e ahi onde defrontámos com o inimigo, foi elle já vencido, mas esta, infelizmente, não é das campanhas, cujo fim se possa determinar; prostrado aqui, elle reapparece além: não vem de fóra, nasce no nosso seio, nós o alimentamos, e elle contra nós se volta – a sua vida é a nossa morte!

* * *

Este mundo inferior da plebe convulsionam-o e consomem o tres inimigos da alma e do corpo – a pobresa [sic], o vicio e o crime – inimigos hereditarios, que elle encontra logo ao nascer; e por quem será fatalmente dominado. Nos casebres, sem ar e sem luz, em que elle vive uma vida quasi animal, e governada não por idéas, mas por paixões, o pão de cada dia impõe-se-lhe como um tyrano. Os fracos e os bons resignam se, trabalham e soffrem, aos outros empolga os o vicio, e d’ahi os mais energicos, desequilibrados pela falta de educação, precipitam-se no crime!... E os filhos seguem os exemplos dos paes, nesta tremenda e tragica procissão!

A educação do povo!... Outra tarefa, outra cruzada a tentar. Mas uma educação sincera, boa, inspirada pelo coração, e servida pela intelligencia. Educação e não desorientação. Não semear iras impotentes, nem ambições impossiveis, nem ideaes chimericos! Que a sciencia e o talento honrado illuminem e aqueçam a alma do povo, e com esse sol os fructos surgirão!

E para que todos nos entendam bem, completaremos o nosso pensamento, dizendo que ahi onde o povo fôr illustrado e bom não poderá jámais lançar ferro a tyrania.

Não viemos da plebe, não faremos aqui vaidosa ostentação rethorica das mãos callosas do povo. Vaidosa, injusta e odienta lisonja! Como se esse povo dos campos e da cidade, que trabalha na cultura das suas terras, e na manufactura dos seus artefactos, não fosse o execuctor do que outros inventam, desenham e compõem nos seus gabinetes, nos seus ateliers, no seus laboratorios, onde consomem a mocidade, o melhor da sua vida – toda a vida; – esses, de muitos dos quaes se pode repetir o que um grande poeta – que tambem foi um grande benemerito – Castilho, disse que

suam na vasta mina, em que Deus os tem nus,

quasi sem pão, quasi nunca sem luz!

Não viemos do povo, não, mas conhecemol-o de perto. Está ali defronte, aqui ao lado; vemol-o e ouvimol-o, e não nos é indifferente o seu viver – que nunca o espectaculo da dôr alheia nos deixou os olhos enxutos.

– Mãe, quero pão! Tenho fome!

Este grito, banal na bôca das creancinhas, descalças e semi-nuas – extranho [sic] no lar dos opulentos – temol-o ouvido muita vez, – verdadeiro, sentido, instante... E nunca o ouvimos, que elle nos não dôa no coração. E nesses momentos temos pena de não ser rico, não para lhes acudir com a esmola de occasião – remedio que mitiga e não cura – mas para abordarmos o inimigo, o mal nos seus centros d’acção, ahi onde elle tem o seu quartel general, onde organisa os seus elementos de combate, onde industria e disciplina os seus soldados, e d’onde os manda á descoberta e á pilhagem!

Nesses antros, vivem os actores e os auctores das farças [sic], das comedias e das tragedias, que cá fóra veem representar os velhos, encanecidos na crápula, e as creanças, em cujos olhos já não se lê a innocencia!.. Paes, mães, e filhos, que são muitas vezes verdadeiras trindades do vicio!

Um dia, aqui ha mezes, estava eu na livraria Bertrand sentado, conversando com um amigo, quando, ouvindo um rumor, e voltando-me, dei com os olhos numa rapariguinha, silenciosa, de joelhos, e com as mãos postas para mim! Pedia-me esmola.

Era a primeira vez que aquillo me succedia, e a novidade e a singularidade da scena impressionaram-me. A esmola estava certa.

A pequena teria seis annos, bem vestidinha. Travei dialogo com ella.

– Onde moras?

– Moro na Costa do Castello – não me lembro a rua que ella me disse.

– Tens irmãos?

– Sim, senhor, somos seis.

– E o que fazem os outros?

– Pedem tambem esmola.

– Tens mãe? E o que faz ella?

– Tenho, sim, senhor, não faz nada, está em casa.

– E o teu pae?

– Não tenho pae… – e nesta resposta houve um quasi nada de hesitação. A paternidade, para muitas d’estas miseras creancinhas, é uma especie de nebulosa, que ellas vem [sic], mas onde não distinguem o sol que lhes pertence…

Deixei-a sair e segui-a Chiado acima. Á esquina da rua Nova dos Martyres, á porta de uma loja de modas, estavam duas rapariguitas maiores, com quem ella ficou a conversar. Vinha com ellas quando entrou na livraria: eram naturalmente as irmãs, e ainda estavam melhor trajadas. Lá ficaram as tres, explorando a caridade dos que passavam.

No genero de exploradores da infancia, esta mãe-empresaria era um exemplar repugnantissimo! Ficava em casa, e todos os dias, com o coração sereno, mandava as filhas – seis creanças – correr o mar do mundo! Que alma de mulher, que coração de mãe!

Que besta fera!

É um theatro este – o da vida do povo – vastissimo, onde cabe a mesa anatomica do medico, a cathedra do professor, o laboratorio do chimico physiologista, o atelier do artista, o gabinete do pensador, do philosopho interessado nos phenomenos sociologicos, o poeta buscando os lances do drama da vida, e o romancista, finalmente, que lá encontra os seus motivos, os episodios da vida real, que vae surprehender palpitantes, umas vezes regados de lagrimas, tantas outras maculados de sangue!...

No campo da sciencia, da philosophia, da arte, do romance, da poesia, da sociologia, da religião e da moral, muito se tem pensado, dito, escripto e demonstrado, mas não bastam, para a solução de tão complexo e terrivel problema, todo complicado de causas e effeitos, que ora são activos ora passivos, verdadeiro circulo vicioso de males, todos de lenta e difficil cura, quando inveterados nos habitos e costumes, reforçando se e justificando se, por assim dizer, com a sua longa existencia – não bastam, repetimos, os escriptos, os conselhos, as predicas no pulpito, as lições nas escolas, os artigos nos jornaes: tudo isto é necessario para illustrar e preparar os que hão de combater o mal e os que d’elle soffrem, mas tudo isto é ideal, paira e labora nas regiões espirituaes, e é necessario descer à pratica, atacar o inimigo no seu terreno, de cara a cara, investil-o nos seus fortes, tomar lhe os reductos, e sacudil-o dos ultimos intrincheiramentos. E para isto se levar a effeito a lucta deve ser sem treguas, e nella devem entrar todos os elementos de acção, todas as forças constituidas, que dirigem e orientam a sociedade.

* * *

Em todas estas questões hygienico-sociaes, que entre si se ligam tão intimamente, se a hygiene das almas é importantissima, não o é menos a hygiene dos corpos. Diz-se, aconselha-se, ordena[-]se quasi ao povo que cure o seu asseio, na casa, nos vestidos, no leito, e nas pessoas; porém os pobres ficarão com o direito de nos perguntar com que farão tudo isso! Onde a agua, para se lavarem e banharem?! E têem razão, mil vezes razão.

Os nossos conselhos, e avisos, e censuras, serão inuteis e perdidos, e quasi que elle nos poderá accusar de má fé, ou de excessiva boa fé, quando lh’os damos! E tambem terá razão.

A Companhia das Aguas, que, segundo parece, as possue abundantes, não entra com a sua canalisação na maioria das casas do pobre, e então não é com a agua que elle compra, a 20 e 30 réis o barril, ou com as gottas que, ás bilhinhas, vae buscar ao chafariz, que elle ha de realisar aquelle ideal, aquelle asseio hollandez, de que lhe falam, e que lhe recommendam philanthropos, que parece nunca viram de perto a triste realidade da sua vida. Tem-a [sic] visto, e conhece-a de perto a excelsa Rainha, a quem aqui tomamos a liberdade de nos dirigirmos, pedindo-lhe, em nome dos pobres, a sua intercessão.

Na vida material do homem – em que entram tantos factores – a agua figura na alimentação e na hygiene, sob duas fórmas – a agua potavel, de que já falámos, e a agua do mar. O povo de Lisboa, como Tantalo, está perto d’ambas, mas uma não lhe abunda, com a outra não se pode banhar! Não inventamos – isto é o que se passa aos nossos olhos. É extraordinario, é quasi inverosimil!

Teve-a outr’ora, a liberdade e a possibilidade de se banhar, ha poucos annos ainda gosava d’essa regalia; mas a pouco e pouco, com os progressos da civilisação, tem-o ido despojando d’ella; teem desapparecendo as barcas de banhos, as fluctuantes, e as que estavam abicadas na praia. Ainda vimos no anno passado, por este tempo, no areal da Junqueira, umas modestas barraquinhas, frequentadas pela gente pobre d’aquelles bairros operarios, de Alcantara, das Creches, das Necessidades, de Buenos Ayres, e não só por essas, mas por outras familias, que, pelas mesmas razões, não podem ir nem a Algés, nem a Pedrouços. Estes todos, por não serem ricos, serão menos christãos, menos portuguezes, menos cidadãos de Lisboa; serão, finalmente, excluidos da humanidade? Perderam, porventura, o direito á vida e a protecção da lei e das auctoridades, e, sendo hobitantes [sic] da primeira cidade reino, serão privados d’um beneficio de que gosam os moradores da mais insignificante povoação sertaneja, assente na margem de qualquer riacho?! Porque? Em virtude de que direito allegado, de que interesses offendidos, se mandaram desarmar umas humildes barracas, em tudo e por tudo pobres, que occupavam apenas uma pequena área de poucos metros quadrados, na margem do rio, á beira da agua, e que, não prejudicando de modo algum a viação terrestre, nem a fluvial, eram remedio proficuo para tanta gente?! Ignoramos os motivos, as rasões [sic] válidas, com que se prejudicou a saude de tantas familias operarias, de tantas mães, que ali vinham buscar remedio para os padecimentos de seus filhos, doentes, anemicos, e para si um pouco de força para a labuta quotidiana da sua tão triste e attribulada vida... Mas lembramos aos que se julgam com o direito de o fazer, que mesmo em materia de direito se diz – summum jus, summa injuria! Acima d’esse direito descaroado está a suprema justiça da consciencia humana, a equidade do coração, o direito á vida, que a todos nos assiste, e que todos temos obrigação de respeitar, porque é o mais sagrado de todos os direitos!

Exposta summariamente a questão, é em nome de todos esses desvalidos da fortuna que recorro para Sua Magestade a Rainha Senhora D. Amelia, em cujo alto e generoso animo todos os infelizes encontram sempre tão carinhoso, tão cordeal acolhimento.

Senhora! No cumprimento d’um dever, para mim indeclinavel, venho aqui apellar, em publico, da ordem que negou a licença pedida, e mandou arrancar da praia da Junqueira as barracas para banhos – já ali armadas, em outros annos, em logar onde nao prejudicavam interesses publicos, nem particulares; licença, que nunca deveria ser negada, porque coisa alguma pode justificar moralmente tão dura decisão, tomada com manifesto e grave prejuizo d’uma parte da população operaria de Lisboa! E faço o, não como advogado de interesses industriaes, que o não sou, mas no legitimo uso do direito, que todos temos, de reclamar contra o que, sem razão sufficiente, nos prejudica; e é sem razão sufficiente que tantas familias ficam irremediavelmente privadas d’esse beneficio, porque, por falta de meios, não podem ir recebel-o noutro logar! Senhora! São pobres – esta palavra diz tudo!

Peço, portanto, licença a Vossa Magestade para depôr nas suas Regias mãos, em nome d’essas mães e dos seus filhos, este memorial, convencido de que Vossa Magestade, tomando os sob a sua alta protecção, mostrará mais uma vez quanto vale e pode o seu magnanimo coração.

Beija as mãos de Vossa Magestade, e espera receber mercê, o de Vossa Magestade muito reverente e agradecido servo

Zacharias d’Aça.

Lisboa, 6 de setembro de 1900.


Referência bibliográfica

Zacarias d'Aça - "ASSUMPTOS DO DIA / (...) / Banhos para o povo de Lisboa" in Diário de Notícias de 10 de Setembro de 1900, nº. 12487, p. 1 (c. 1-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1649.



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