Questões medico-sociaes
LXXXXI
As culpas são todas para os medicos…
Nós os medicos, temos feito tudo quanto é possivel para sermos socialmente uteis, bem como, para agradar ás familias. Não temos sido, nem queremos ser, o assalariado profissional apenas. Estudamos sempre, não tornamos transcendente a nossa aliaz elevada funcção social, não esquecemos o caracter altruista e humanitario da nossa profissão, e procuramos ser em tudo dignos da estima, respeito e gratidão das familias. (…).
Note-se que nos estamos referindo exclusivamente ao medico clinico, pondo de lado a contribuição scientifica de primeira ordem que a medicina com os seus factores physiologicos e pathologicos, em todos os tempos, tem levado á evolução das sciencias, penetrando por todas ellas, fazendo em roda de si fulgida luz, e provando á sua parte egualmente que não ha fronteiras que as separem, nem estudos que as apartem, dirigindo-se todos os conhecimentos para a unidade da sciencia. Voltemos, porém, ao nosso ponto restricto.
Quando nos não affrontam, esses muito ingratos, fazem mofa de nós. A seringa, aquelle instrumento cuja descoberta se attribue a Gatenaria, de Pavia, e que é invento que deve causar ciume aos outros paizes e aos outros medicos privados da gloria de o ter produzido, tem sido manejada largamente para nos confundir e escarnecer. Bem fez o professor Lasègue, encarregando-se, em uma das suas modernas lições, de solemnisar a apotheose do clyster nos seguintes termos: «Entre as medicações topicas do intestino, deve rehabilitar-se uma dellas, cuja sorte infesta e revezes somente se podem attribuir a ser applicada por uma porta bastarda e recatada. Refiro-me ao clyster de uso tão antigo e tão generalisado, fazendo o seu elogio e a sua glorificação, que só lhe são contestadas, á sua modestia e á sua grande utilidade, por um estolido sentimento de pejo. Pois, esse remedio, hoje tão desconsiderado, é singelamente uma medicina… de se lhe tirar o chapeu».
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A linguagem medica tem egualmente procurado euphemismos sem conta nem medida, a fim de nos fazermos entender, sem inquietar as familias e os doentes, em muitos casos de doença grave, ou sómente para não sermos desamaveis para os nossos clientes. De modo que a gotta, tida nos tempos passados com o producto de uma vida irregular, foi baptisada com o nome de arthritismo; os portadores de affecções pulmonares, muitas vezes, já entrados na tuberculose, são apenas candidatos á tuberculose; os alcoolicos são simplesmente pessoas que não aborrecem o etylo; de numerosas molestias, se diz serem fluxação, ulceração ou lesão e mais nada, que são expressões dubias e incertas, e, á ultima hora, inventaram-se umas certas avarioses para significar estados varios que devem ficar desconhecidos ou disfarçados para muita gente, inclusivè ou não, o proprio doente. Deus me livre de censurar estes melindres para com os enfermos e as familias; mas não ha duvida que são requintes de amabilidade e de interesse que, poucas vezes, encontram o justo retorno na gratidão dos doentes ou das pessoas que o cercam.
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G. ENNES.
G. Enes - "Questões medico-sociaes / LXXXXI / As culpas são todas para os medicos…"
in Diário de Notícias
de 17 de Janeiro de 1910, nº. 15868, p. 2 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1659.