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Texto da entrada (ID.1687)

Chronica Scientifica

O frio artificial e as suas aplicações – Industria frigorifica

Estamos habituados, mais por superstição do que de um modo racional, a considerar o frio como um inimigo comum e a aproximal-o da idéa da morte enquanto atribuimos só ao calor a idéa de vida, de força, de actividade normal.

Symboliza-se o inverno sob as mais tristonhas figuras e celebram-se as estações quentes sob motivos alegres e brilhantes cores.

O frio tem contudo o seu lado benefico e pratico e não oferece duvida que os invernos teem tambem as suus [sic] belezas cantadas pelos poetas, descritas pelos estylistas. A sciencia moderna apossou-se delle, como da electricidade e não se contenta com o natural: fabrica-o para usos e proveitos industriaes. O frio é conservador por excelencia, como o calor intenso é desorganizador. Rabelais, na sua desregrada mas espirituosa phantasia, supunha-o capaz de prender a cousa mais mobil deste mundo – a palavra!

Nos seculos passados o frio artificial só muito imperfeitamente servia para refrescar a habitação e as bebidas no tempo quente.

Na actualidade é uma grande força á disposição do homem, domesticada por elle; é um agente industrial de um sem numero de aplicações. Se viessem perguntar-nos para que serve o frio, diriamos prontamente: serve para tudo. Durante certo tempo acreditou-se que só o aquecimento punha as machinas a trabalhar; na grande escala da actividade humana, é hoje a refrigeração um processo usual de produzir trabalho mecanico. O seu valor economico e social é já consideravel e por isso nos ocuparemos delle, ainda que em traços muito geraes.

Data de 1850 a disposição de mechanismos para a produção do frio. Veiu [sic] primeiro a machina de Newton e Gorrie, na qual se aproveitava a dilatação subita do ar, depois de comprimido a umas poucas de atmospheras. Esta invenção promettedora foi completada pela de Giffard e ainda pelos apparelhos [sic] de Carré e Tellier (1857-1869). Este ultimo demonstrou experimentalmente entre 1868 e 1874 a possibilidade de uma prolongada conservação da carne em camaras frias, experiencia renovada no primeiro navio empregado para este efeito no transporte entre o Havre e Buenos Aires (1877). Não passou o facto despercebido aos americanos, que o aproveitaram para alargar os rendimentos da sua industria pecuaria. Em vez de se contentar com a venda das pelles dos seus bois e dos seus carneiros, a Republica Argentina já em 1880 exportava a carne fresca de 400 bois. Em 1907 esta exportação elevava-se a 211 milhões de kilos, ao mesmo tempo que da Australia saiam 116 milhões de kilos e 125 milhões de kilos dos Estados Unidos.

Era a previsão de Tellier extraordinariamente amplificada, com a diferença porém que estes carregamentos não circularam sob a bandeira francesa, como elle havia sonhado.

Comprehende-se facilmente a vantagem para a alimentação publica, proveniente da industrialização deste processo. É sobretudo a Inglaterra que tira o melhor partido desta invenção. Nos seus mercados encontram-se conservados pelo frio artificial os principaes generos alimentares de paises distantes, como os ovos frescos da Australia, as lagostas pescadas nas costas de Marrocos e o salmão do Canadá. Nas carnes congeladas de vaca da Argentina e no carneiro australiano não se fala, por demasiado [b]anaes. Identico systema aplicado á conservação do peixe proveniente de mares distantes abastece actualmente grande numero de povoações urbanas, embora não esteja ainda suficientemente aperfeiçoado, permitindo que muitas cidades interiores, servidas pelas vias ferreas que vão ter aos principaes portos, apresentem na mesa dos seus hoteis e das suas casas abastadas o peixe fresco do Baltico ou do Adriatico.

Uma outra aplicação não menos notavel do frio industrial é a conserva dos frutos, cujo aroma e sabor ficam inalteraveis pela congelação durante meses, mesmo tratando-se de frutos delicados como as cerejas e as uvas. É uma vantagem especial para as frutuarias da California, cujos productos se vão distribuir ao longe, a cerca de 4:000 kilometros, para serem saboreados em Chicago e Nova York.

As aplicações do frio á conservação dos diferentes generos alimentares não se fazem sob a inspiração de um empirismo brutal; a refrigeração methodica é uma sciencia e não se julgue por este termo, que esta afirmação encerra alguma cousa de pretencioso. O emprego dos frigorificos depende, para seu perfeito exito, de estudos regulares e delicadas experiencias, para a graduação exacta da temperatura e da humidade, sem o que a fermentação e a decomposição prejudicariam todo o trabalho.

A captação do frio para refrescar as atmosphera[s] sobreaquecidas, tanto nos climas quentes como na estação calmosa no nosso clima suave, seria certo de um grande alcance e porviria juntar ao conforto que requer a habitação moderna. Uma casa bem posta comprehende uma instalação frigorifica, como ha pouco ainda era uma novidade o aquecimento pelas canalizações de ar quente ou de vapor, ou pelos aparelhos portateis, a que a electricidade faculta um meio elegante e inofensivo, é verdade que ainda pouco economico para a maior parte dos cidadãos.

Mais de um processo se evoca para dar solução áquelle problema. Mais geralmente obtem-se a refrigeração do ar por meio da evaporação rapida de certas quantidades de agua. A passagem da agua do estado liquido ao estado gasoso faz-se com abaixamento de temperatura, tanto maior quanto mais depressa essa transformação se executa. Um litro de agua ao evaporar-se absorve mais de 600 calorias, enquanto a fusão de 1 k[g] de gelo produz apenas 79 frigorias.

É pois esta vaporisação da agua, por meio de ventiladores apropriados, que se reduz a temperatura de vastas quadras, maneira empregada nas fabricas, theatros, restaurantes, na Europa e na America, no tempo quente.

O progresso fica por aqui? Vae até canalizar o frio, enviando-os aos domicilios como se faz ao gas da iluminação e á energia electrica. Nalgumas cidades americanas existem estações frigorificas, que fornecem e distribuem o frio pelas tubagens, tal qual como se pratica na distribuição de ar quente ou de vapor. Usa-se para esse fim o amoniaco volatilizado ou um liquido incongelavel resfriado em excesso.

Já aqui nos referimos a um emprego muito engenhoso das baixas temperaturas na producção de flores fóra da sua epoca propria. Vem a proposito lembrar este progresso industrial, que dá á vida moderna, em alguns centros luxuosos, toques de prodigio e ensejo a maravilhosas exhibições de gosto.

A disposição de camaras frias, para a forçagem de certas plantas cujas inflorescencias são apreciadas, como o lilás, as rosas, o lirio convalle, é um systema que permitte ao horticultor apresentar em pleno inverno as primicias primaveris da vegetação, com o seu perfume e graça apetecidos. O processo consiste em arrecadar as plantas e os bolbos, no periodo de descanso invernal da vegetação, conservando-os em caixas fechadas, a uma temperatura de gelo, até ao outomno [sic] ou inverno seguintes, em que se fazem desabrochar sob o incitamento de uma cultura de estufa. Por uma maneira analoga se consegue obter plantas em diversas phases de crescimento e se preservam muito tempo de murchar as flores cortadas, mantendo-se durante semanas com o mesmo viço e aroma.

Não se faz idéa das multiplas aplicações industriaes e domesticas que o frio artificial póde ter e torna-se mesmo difficil mencionar em curto espaço muitas dellas, aliás muito importantes. Não nos referiremos por isso á patinagem, que exige pistas verdadeiramentes [sic] geladas, cujo dispositorio [sic] engenhoso e complicado tem vindo descrito nas revistas de vulgarização mais conhecidas, nem ás numerosas fabricações em que elle tem uma acção primacial, a do gelo, por exemplo, a mais universalmente espalhada, a de velas, de manteiga e de sabões. Desnecessario é lembrar a conservação dos vinhos espumosos pelo frio, demasiadamente conhecida.

Uma nova adaptação das camaras refrigerantes está na protecção de tecidos, em que as traças fazem constantemente destruições consideraveis, as lãs e as pelles, cujo elevado preço merece bem uma cuidadosa preservação. Reconhece-se que mantendo estes tecidos durante o verão em temperaturas baixas, por uma corrente de ar frio e seco, se impede a eclosão dos ovos do insecto destruidor.

O resfriamento parece emfim [sic] ser o unico meio de evitar a deflagração das substancias inflamaveis. Para esse efeito já as marinhas de guerra mais adiantadas estabeleceram nos seus navios os paioes frigidos.

O emprego de vagons frigorificos é hoje de um uso quase corrente, facilitando dessa forma o transporte de maiores quantidades de alimentos de origem animal, pela facilidade de armazenar as rezes congeladas, que em vida tomariam um espaço muito grande.

Restar-nos-ia falar do ar liquido, uma das formas mais curiosas e interessantes de utilização das temperaturas infimas: a especialidade deste agente requer porém uma relação mais extensa, com a qual não temos valor de sobrecarregar esta noticia. Aquellas a que aludimos são bastantes para dar a noção da importancia e valor social e economico da industria frigorifica.

J. BETTENCOURT FERREIRA.

[NOTA - Na edição n.º 15893 do Diário de Notícias, de 12 de Fevereiro, publicou-se uma errata deste artigo (p. 1, c. 6), que já foi aplicada na presente transcrição]


Referência bibliográfica

José Bettencourt Ferreira - "Chronica Scientifica / O frio artificial e as suas aplicações – Industria frigorifica" in Diário de Notícias de 11 de Fevereiro de 1910, nº. 15892, p. 1 (c. 6-7). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1687.



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