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Texto da entrada (ID.1689)

Assumptos do dia

Questões medico-sociaes

XCIII

PULGAS

Escreveu, ha já bastantes annos, um disctinto sabio «que se a raça humana viesse um dia a extinguir-se por effeito de alguma temerosa epidemia, era talvez aos insectos que pertenceria o imperio do mundo. O macaco é demasiado inconstante, o leão demasiado guerreiro. Os nossos executores testamentarios não seriam nem as aguias, nem as baleias, nem os elephantes, nem os gatos, nem os tigres, nem os gigantes do ar ou do solo. Seria mais naturalmente nos insectos, e até entre os mais pequenos, que se encontrariam os seres que mais se parecem comnosco [sic] em organisar sociedades disciplinadas, activas e completas.» Muito bem disse a douta creatura, mas o que elle não disse – nem no seu tempo se sabia – é que, á falta dessa assoladora epidemia, quod deus avertat, esses malignos insectos, são como o fero dragão que sete linguas vibra, e não pouco trabalham para esse exterminio da especie humana, visto o violento furor com que nos atacam, e sobre nós exhalam pestes varias muito capazes de porem termo ao curso da nossa jornada pelo mundo. Quasi todos nos são francamente hostis, cabendo um logar de honra, entre os mais bellipotentes, á turba insolente e furiosa das pulgas, que por si e á sua parte, com o bacillo da peste no apparelho digestivo, são aptas para assolar tudo e tudo despovoar! Já a prenda que a naturesa [sic] lhes deu de saltarem a uma altura que se pode avaliar em 200 vezes as suas dimensões, nos devia ter posto de sobreaviso para nos recearmos de tão diabolico insecto.

Se o homem tivesse a mesma faculdade e habilidade saltaria sem custo por cima do zimborio da Estrella ou das torres da Sé.

E, a respeito de cadeias para guarda dos criminosos, sómente uma altura de muros de meio kilometro daria algumas garantias. O rato infectado de peste, é uma das melhores plataformas que as pulgas arranjam para nos fazerem cruel montaria.

Como a naturesa se divertiu a crear varias castas de pulgas mais ou menos aggressivas para nós, e fez d’ellas o nosso parasita externo mais glutão e mais faminto defrontou-nos assim inermes com uma legião de seres malditos em condições de nos vencerem, a que basta apenas um punhado de poeiras e sujidade para habitação onde se criem e multipliquem, e que deixam, por intervallos, quando lhes é preciso, para atacar e espicaçar o apetecido manjar do nosso sangue.

No caso da peste é sabido que as mais das vezes, são as pulgas acarreadas das espessuras do rato doente que nol-o transmittem.

Este é, ao mesmo tempo, crèche na infancia das pulgas, cerdoso e pomposo palacio dos insectos adultos.

Por isso, o estudo dos costumes e habitos das pulgas, e o dos meios de as destruir como sanguinosos verdugos nossos que são, interessa-nos hoje vivamente.

Um membro da collectividade que se apanhe, um soldado só que seja d’essa legião damnada [sic], um recruta requer, é dar-lhe logo sem piedade a merecida morte.

Por dois modos, nos transmitte a pulga aquella terrivel doença, primitiva no rato e secundaria no homem, ou pela aggressão offensiva, aguilhoando-nos para achar o seu pasto vivo no meio da nossa carne; ou defecando sobre nós que indo coçar no logar respectivo vamos introduzir sob a pelle o virus da peste, ou o tomamos nos dedos e depois o levamos á bocca [sic] ou aos alimentos, o que de tudo representa o caso mais vulgar.

Depois, esta especie verminosa é de uma extraordinaria fecundidade; se fossemos capazes de a aniquilar toda, por completo, mas que escapasse uma femea prenhe, uma só que fosse, essa só, bastaria para iscar o mundo todo de tão damninha bicharia.

E, a rapidez do crescimento corre parelhas com essa prodigiosa fecundidade; são precisos mais de vinte annos para formar um homem, bastam trinta dias para uma pulga nascer e attingir a maioridade e a posse so seu mais activo ardor.

A vida das pulgas – valha-nos isso, ao menos – é curta. A Pulex cheopis, privada de se sustentar de sangue, e alimentada e conservada em semea humida ou secca, em trapo de algodão ou em arroz, morre geralmente em 6 ou 7 dias. Alimentada pelo sangue humano póde viver até 28 dias, emquanto [sic] que sobre o rato e mantida por elle conserva-se viva até 50 dias.

Logo o sangue do rato convem mais do que o do homem ás pulgas que habitualmente procuram e se abrigam n’estes roedores. Egualmente ferem mais e com mais ardor os ratos do que o ser humano, e d’estes se destacam mais facilmente do que do tegumento dos roedores.

Algumas especies d’esta vermina sómente apparecem em novembro e até abril, não se sabendo ao certo onde passam a estação quente e a temporada das grandes chuvas.

Abundam todas as especies, em regra, sobretudo nos mezes de outubro e novembro, deixando assim por mentiroso o nosso dito popular de que o março, o tempo da ervilha, é a epoca das pulgas.

Multiplicam-se em todos os mezes do anno, mas, mais lentamente, sem se conhecer a causa, em junho. A humidade contraria-lhes o desenvolvimento[,] aborrecem os logares humidos, e não os querem para sua pousada. D’aqui, a regra de que muita agua e muito asseio são os dois melhores meios para oppôr á sua ligeireza e furor. Os climas apenas teem acção para fornecer ou contrariar o desenvolvimento de certas especies.

Não vivem permanentemente sobre os seres que lhes dão hospedagem, são um tanto vagabundas, vivem tambem muito no solo, e sómente ferem aquelles, quando querem a sangrenta comida, tem as varias especies as suas predilecções, é certo, mas, sem deixar de ferir, para se nutrir, qualquer outro ser, se não tiverem aquelles de que são os parasitas especificos.

Por outra, uma pulga de rato se tiver ao seu alcance um d’estes roedores e um homem, prefere aquelle e despreza este; mas, se precisa encher-se de sangue, e não tiver o seu mais fino manjar, que é com effeito o rato, farta-se então no homem. Isto, porém, se as pulgas forem poucas por que se forem muitas atacam avidamente ratos e homens.

Quer dizer que, com fome, todo o sangue lhes é mantimento e regalo, embora gostem sempre mais do seu hospedeiro especifico.

Esta regra é soberana, mais ou menos, para todas as especies, todavia, a pulga Felis, a pulga do gato, do cão e de outros animaes, é a que, em quaesquer condições, ataca menos as pessoas que estão junto de taes brutinhos; e a pulga especifica do ser humano, a [Pitecilans], poucas vezes visita o rato. As que n’este roedor teem a sua sordida morada, sobretudo a Cheopis, já citada, a Ctenopsylla e a Ceratophylius fasciatus é que são o nosso mortifero flagello. E, facilmente, se comprehenderá que sendo a pulga um ser errante, que ora farta a fome no sangue do rato, ora desampara e se retira do corpo d’este roedor, o que vem a acontecer é que todo o rato pestoso deixa no seu caminho um rasto de pulgas infectadas.

Junta-se a isto que, embora este insecto parasita se não possa deslocar pelos seus meios para grandes distancias, lá estão as coisas e as pessoas para os transportar ao longe; e que se não tem uma vida longa, lá estão as suas fórmas metamorphosicas que de qualquer detricto organico se alimentam, ou mesmo que não carecem de alimento algum, que viajam para distancias consideraveis, e que se manteem com vida dois e mais mezes. Considere-se, n’estas condições, a nossa frouxa situação no combate da peste e sua disseminação, quando se trate de pulgas pestosas.

Poderia esperar-se que o bacillo da peste, introduzido no seu tubo digestivo, lhes causasse damno, pois, assim não é, nem lhes altera a saude, nem a mortalidade das pulgas contaminadas é superior á das que vivem immunes de tal bacillo. Dão-lhe alojamento, fazem a sua eliminação com as fezes, e por ellas, transmittem a infecção a novos seres. Ainda bem, que este poder de infecção dura um tempo limitado, uma semana ou poucos mais dias!

A natureza póde ter orgulhoso por haver criado seres que são obras-primas de leveza, de graça, de belleza e perfeição de fórmas. Mas, esse seu feto que se chama pulga é um erro da natureza, e ainda o é mais ter ella disposto as coisas para que sejamos nós que tenhamos... de lhe offerecer de jantar.

G. ENNES.


Referência bibliográfica

G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / XCIII / PULGAS" in Diário de Notícias de 15 de Fevereiro de 1910, nº. 15896, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1689.



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