As aguas de Lisboa e a sua depuração
Entre as questões de hygiene corrente, occupa sem duvida o primeiro plano a depuração das aguas de abastecimento publico.
Ao passo que os poderes publicos das grandes cidades estrangeiras, se teem occupado cuidadosamente deste assumpto, entre nós pouco ou nada se tem feito e o que é peor, a grande massa do povo, ignora os principios mais rudimentares de hygiene preventiva, não acredita nas indicações dos technicos, faz ás vezes gala em troçar d’ellas, deitando não poucas vezes á conta de malevolencia os seus conselhos e medidas de prevenção.
Veja-se o que succedeu com os casos de peste ha annos acontecidos no Porto, mais recentemente nas ilhas, em que o povo ignaro, por pouco não trucidou os clinicos, encarregados de cortar a propagação do flagello.
N’uma das povoações balneares dos arredores de Lisboa, o sub-delegado de saude, reconheceu que uma endemia de febres thyphoides, era devida á agua de um poço, da povoação; mandou colocar uma taboleta [sic] indicando, que a sua agua só fervida podia ser bebida. Pois os moradores mais grados, destruiram a taboleta em pleno dia, clamando que ella fôra adrede posta, para fugentar [sic] os banhistas d’aquella localidade, em proveito de outra estancia balnear; argumentando que o poço estava aberto ha muitos annos e nunca tinha feito a sua agua, mal a ninguem.
Na capital, apezar das innumeras entidades officiaes que a seu cargo teem o serviço de hygiene e salubridade publica, pouco ou nada se tem feito n’este sentido.
Apenas, segundo se diz, a Companhia das Aguas, estuda a filtração das aguas do Alviella e na camara municipal, um vereador tem preconisado o emprego de filtros baratos.
Por fortuna as aguas do Alviella, são normalmente puras, ou consideradas scientificamente taes; aguas sem microbios, póde dizer-se que não existem.
Dizer que tal agua contém tantos milhares de bacterias por centimetro cubico, nada significa: podem conter apenas dezenas de bacterias e apesar d’isso serem pessimas; ao passo que aquellas podem ser excellentes.
A questão está em saber se contém bacillos perigosos e especialmente o do thypho (bacillo de Eberth) ou o da dysinteria (bacillo Coli).
São estes dois bacillos, que os bacteriologistas, admittem como sendo os que mais vulgarmente, podem ser introduzidos no organismo, pelas aguas potaveis, o que não quer dizer que os outros não possam tambem ser trazidos por ellas, nem tão pouco que seja esse o unico vehiculo.
A bacteriologia está todavia na sua infancia, e não ha doutrina sustentada por um sabio, que outro sabio não tenha rebatido, com bons argumentos.
Assim, o bacillo Coli, tem sido accusado e defendido pertinazmente, dizendo-o uns inoffensivo, e tanto que vive normalmente no Colon, sem que os mortaes que o trazem n’essa parte dos intestinos, deixem de gosar excellente saude; outros, teem sustentado que é tão perigoso, que se transforma em certas condições no de Eberth: – e o que parece averiguado, é que rara é a agua que o não contém[,] o que não impede que taes aguas sejam consideradas boas, desde que o seu numero não ultrapasse certos limites.
Estas incertezas, vão até aos aparelhos de depuração, até agora ou imperfeitos, ou tão caros que não podem ser praticamente usados.
Não cabem nos apertados limites desta exposição para uso vulgar, longas dissertações; [r]esumiremos pois o que convém saber.
Dissémos que a Companhia das Aguas, pensa em estabelecer filtros para depuração das aguas do Alviella[;] é um progresso que a cidade lhe deve agradecer, tanto mais que pelos seus contractos não é obrigada a isso.
Esses filtros, serão segundo parece do systhema Miquel, de area não submergida.
Tem-se discutido muito a excellencia de taes aparelhos e a sua vantagem sobre os d’area submergida, chegando-se á conclusão de que ambos depuram as aguas, limpando-as das grossas impurezas que conteem, mas que ambos pelo lado bateriologico, são infieis, pois que nas melhores condicções scientificas de funccionamento, deixam passar as bacterias e bacillos.
Preconisou um illustre vereador o emprego de filtros baratos cazeiros [sic], ao alcance de todas as bolsas.
Taes aparelhos porém, mesmo os mais caros e perfeitos, soffrem do mesmo mal dos filtros Miquel, aggravado com a inexperiencia das mãos que d’elles se servem.
Além de, como aquelles, deixarem passar microbios nocivos, a sua falta de limpeza e de inspecção a bem dizer de todos os momentos, pode trazer uma falsa segurança, perigosissima para o publico.
Assim, quando não convenientemente limpos e esterilisados, tornam-se em viveiros de microbios, que o atravessam, suppondo mesmo que a materia filtrante seja boa, e que no apparelho [sic] as juncções estejam bem feitas, não falando do frequente fracasso, das vellas imperceptivelmente fendidas, o que desde logo torna completamente inutil o apparelho; acrescentaremos que a esterilisação dos filtros caseiros é operação delicada, exigindo o emprego de esterilisantes de manejo difficil.
D’aqui se conclue que os filtros, quer os caseiros, quer os de grande rendimento, são apparelhos que podem ser uteis, mas não são scientificamente perfeitos.
Outros muitos meios teem sido aconselhados para a esterilisação das aguas que se bebem.
Ultimamente, em Paris, por causa das grandes inundações, foram aconselhadas e postas em pratica severas precauções para evitar uma epidemia resultante do emprego e falta de esterilisação das aguas poluidas do Sena.
Quanto á agua potavel, recommendou-se que não se fizesse uso d’ella sem que fosse préviamente fervida durante algum tempo, ou esterilisadas pelo emprego successivo de tres aglomerados, operando a esterilisação por meio do iodo; o que deve dizer-se que não é muito commodo nem muito pratico.
O permanganato de potassa e outros antisepticos teem sido tambem aconselhados para a esterilisação da agua de beber: – parecendo-nos que o emprego d’estes e outros esterilisantes chimicos, salvo casos especiaes, deve ser banido.
A fervura da agua, mesmo prolongada por quinze ou mais minutos, além do inconveniente de lhe alterar o sabor e composição normal, não destroe certos sporulos que resistem a esta operação.
Para obviar a estes inconvenientes, existem no mercado esterilisadores pelo calor, que elevam a temperatura da agua, sem a deixar ferver, acima dos 110 graus centigrados, temperatura que pode dizer-se sufficiente para uma esterilisação perfeita, pelo lado bacteriologico.
O emprego d’estes apparelhos, associado ao dos filtros, constitue no estado actual da sciencia um methodo perfeito de depuração e esterilisação da agua que se bebe. O filtro depura-a das impurezas tornando-a limpida; o esterilisador, pelo calor humido acima dos 110 graus, destroe, som sufficiente segurança, os microbios que possa conter.
Tal é a installação caseira que aconselhamos, para uso dos ricos e remediados, em suas casas: – os pobres não podem ter semelhante luxo, superior ás suas posses.
Para estes bem andaria a camara municipal, ou a Companhia das Aguas, estabelecendo em differentes pontos da cidade postos onde se desse ou vendesse por preço modico agua pura para beber: – decerto muito mais de aconselhar, do que as differentes aguas de Cintra, Caneças e outras terras virtuosas, que sem a menor fiscalisação se vendem a copo por toda a parte.
Quanto á depuração biologica, feita pela Companhia das Aguas, ou pelos poderes publicos, á entrada das aguas nos depositos de distribuição, parece-nos senão inefficaz, pelo menos de resultados muito discutiveis, sob o ponto de vista da saude publica.
Afigura-se-nos que o maior perigo está na passagem d’essas aguas atravez das ruas da cidade, até chegar ao contador das casas e até n’este.
Comprehende-se que a distribuição da agua, a pequena profundidade, nas ruas e becos da cidade, atravessando frequentemente as canalisações de esgoto, na maior parte em estado deploravel, conduzida em canalisação praticamente permeavel, ao menos pelas juncções, mal vedadas; as reparações e inserções feitas todos os dias n’essa canalisação, em que forçosamente se introduzem n’ella as lamas das ruas, sempre riquissimas em microbios nocivos: – são factores que levam a pensar que a esterilisação deve ser feita em casa dos consumidores, ou nos postos de esterilisação que aconselhamos, e não nos depositos da Companhia ou antes de as aguas ali entrarem.
De resto, não confiamos nos projectados filtros, pelas razões já dadas; outros meios de esterilisação bacteriologica teem sido ultimamente preconisados; infelizmente, são tão dispendiosos, quando se queiram empregar nos 40:000 metros cubicos diarios, necessarios para o consumo de Lisboa, que são por ora praticamente inuteis.
Esses processos, são a esterilisação pelo ozone e pelo emprego dos raios ultra violetas, nas lampadas Nogier.
Estas lampadas parece que virão n’um futuro proximo a ser de uso corrente para a esterilisação nos domicilios, nos hospitaes, comquanto [sic] por ora estejam em experiencia, com bem fundada esperança de constituirem mais um progresso da sciencia moderna, n’este seculo de tão assombrosas descobertas.
Dr. X.
Dr. X - "As aguas de Lisboa e a sua depuração"
in Diário de Notícias
de 17 de Fevereiro de 1910, nº. 15898, p. 7 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1691.