Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
XCIV
Mosquitos
É certo que a pulga, além de ser repugnante, incommoda e até um erro enorme da natureza, é uma envenenadora que aproveita os prazeres gastronomicos do nosso sangue para nos dar a morte, um verdadeiro monstro pestifero! Mas, para ser ainda mais temivel, falta-lhe um grande e proprio instrumento: o vôo. Possue-o o mosquito que por estar admiravelmente organisado para voar leva assim longe os seus estragos, e representa para nós um inimigo ainda mais arrojado e implacavel. Bebedor de sangue, como a pulga, ou mesmo talvez mais carniceiro, revela nos olhos salientes, nas antenas franjadas, no abdomen esculpido em finos e flexiveis anneis, e no dardo agudo que fura o seu poço arteziano na nossa pelle e só comparavel em perfeição á trompa do elephante, que está ali um outro aborto da natureza, terrivelmente armado e preparado para nos tirar o descanso e mesmo a vida. Este, demais a mais, enterra o dardo e ministra-nos o occulto veneno, mas, tem taes artes que quando se sente o seu penetrante golpe e ali acode o dedo vingador, é tarde para o castigar, tem já cortado os ares com as suas brandas azas, tem desapparecido em rapido vôo.
Em um estudo como este, sómente nos interessam duas variedades de mosquitos: os anophéles que transmittem a malaria, e os stegomyas que são os responsaveis da propagação da febre amarella. E, apenas as femeas por que, em ambos os casos, são ellas que nos transmittem qualquer d’estas doenças, estando o macho de uma e outra especie, por inoffensivos, fóra da nossa mais viva inimisade.
N’uma e n’outra especie o macho só é movido por amoroso e vivo fogo ou pela fome urgente. Mas, a sua gula não appetece o purpureo licor das nossas veias, nem é mortifera para nós. Nem o poderia ser, por lhe faltar a disposição anatomica propria para derramar, sugar e inocular o sangue humano. O seu papel é principalmente o de galã tão excessivo como fementido.
É um tiranno insaciavel e imperioso que só trata de subjugar as femeas e cantar a ganhada victoria.
Notavel contraste com os desposorios da aranha cruel! Esta tem um verdadeiro serralho de maridos, que são uns aranhitos pequenos, contrafeitos, como que envergonhados, sempre em torno d’ella, mas receando os olhares da sua amada, ciosos uns dos outros, entregando-se a violentas lutas, e chegando a morrer no combate sob esses olhares melancolicos, indifferentes, glaciaes mesmo. Diz um espirituoso escriptor muito dado a estes segredos da admiravel machina natural, que no mundo das aranhas, o ser feminino, a mulher, vinga bem o ser gracioso, que nas nossas sociedades civilisadas tem esse nome, dos desprezos e infidelidades do sexo forte e nobre. Por que a femea da aranha é desapiedada para os que a amam, fazendo-lhes pagar bem caro a submissão e as desventuras do fragil e terno sexo em toda a natureza. Com vistas ás mulheres revoltosas e que se insurgem contra o mando dos homens.
Talvez que este segredo agora aqui divulgado, porpue ahi ás aranhas algum golpe mais forte do vasculho, e suscite mais branda misericordia da parte das que brandem esse instrumento da limpeza caseira. Se assim succeder, tanto melhor; faze o bem, não olhes a quem.
De todas as especies de mosquitos, sómente os anophéles são dotados da propriedade de nos transmittir a infecção malarica. O anophéle é um mosquito de uma grandeza média, escuro, de azas mosqueadas, de habitos nocturnos, nada domestico, vivendo e multiplicando-se nos charcos e nas lagoas de aguas estagnadas que se encontram pelos campos e nos sitios pantanosos, os as femeas depositam os ovos, sendo exclusivamente estas, como já foi dito, que inoculam a doença.
É assim a unica via conhecida, natural e espontanea da transmissão da malaria, pois que a inoculação directa do sangue de um doente d’essa affecção a um individuo são, é um caso, tambem positivo, mas de todo o ponto excepcional, de ordem scientifica apenas, e que nada tem com a transmissão ordinaria e natural da malaria.
O parasita da malaria é introduzido no estomago do insecto com o sangue do doente que elle fere, depois é ahi elaborado durante pouco mais ou menos 12 dias, findos os quaes entra na cavidade geral do corpo do anophéle e depois nas duas glandulas especiaes, sendo a trompa que o injecta sob a pelle dos novos individuos que elle póde picar.
Como se vê, os nossos meios habituaes para destruir os germens da maior parte das doenças bacteriannas nada podem contra esta especie; a guerra tem de ser ao mosquito e só ao mosquito. Em Portugal são muitos os pontos onde se encontra esta especie de mosquitos. A especie de mosquitos que nos transmitte a febre amarella é a que se denomina: stegomya. É um insecto pequeno, sobre o escuro, malhado de bellas pintas prateadas no corpo e nas patinhas, e em que se observa no thorax quatro faxas [sic] dispostas de um modo typico, em fórma de lyra de duas cordas.
Os palpos da femea são mais curtos do que a trompa, e, como já dissemos, é esta, cuja disposição anatomica da trompa é differente do macho, que nos aggride e nos transmitte a febre amarella. O macho é um vadio inoffensivo.
Constitue a especie de mosquitos que em maior numero se encontra em Lisboa e seus arredores, e é facil de reconhecer-se pelos caracteres indicados. Depõe os ovos nas pequenas colecções de agua doce nos nossos jardins, cisternas e tanques, e mesmo nos regadores, baldes, celhas e mais vasilhas onde se deixem demoradas tenues porções de agua. A agua salgada não é favoravel ao desenvolvimento das larvas, sendo, pelo contrario, muito propicias a essa evolução as aguas das barrellas das nossas lavadeiras. É, pois, um mosquito domestico, vivendo perto de nós.
O cyclo evolutivo completo desde a postura dos ovos até á formação do mosquito, anda por 10 a 12 dias, nunca menos de 10. Não viaja pelos seus proprios meios para muito longe, e tem pequena longevidade.
Fere-nos a qualquer hora do dia ou noite, mas, sobretudo no periodo crepuscular, á despedida do sol.
A circumstancia [sic] bem averiguada de que a vida desta especie de mosquitos sómente pode manter-se nos dois 43 parallelos norte e sul, estabelece para os diversos paizes uma enorme desegualdade [sic] perante o perigo da propagação da febre amarella. Onde não ha nem podem haver stegomyas, claro está que não póde lançar raizes aquella infecção. Nesses paizes, não ha que considerar contagiosa a febre amarella. Infelizmente, o nosso caso é outro; o perigo que no[s] ameaça está confirmado e aclarado sem duvida.
Portanto, nem as roupas, nem os fatos, nem o solo, nem as excre[çõ]es dos doentes ou contacto com elles, nem os objectos inanimados dos seus quartos, são capazes de communicar esta doença. Toda essa escola do passado está derrubada.
Nem mesmo a natureza das cargas vale já nada; todas são insusceptives em absoluto, a não ser, por a ordem de razões já dita, as mercadorias que sejam humidas, como as madeiras molhadas, as bananas, os ananazes e mais fructas succosas e frescas. Sómente o mosquito da especie referida tem essa peçonhenta confeição [sic].
E, para armas offensivas e deffensivas não nos servem os desinfectantes, unicamente os insecticidas poderão decidir esta causa a ferro e fogo.
No modo como a stegomya se infecta, elabora o virus e propaga a doença, ha muita similhança entre a febre amarella e a malaria. A primeira parte de esta especie de mosquitos, a sua phase aquatica, é que nos pode dar a chave das operações a realisar para o seu exterminio.
Note-se, todavia – e em boa hora o dizemos – que este mosquito tem muitos inimigos, sendo as larvas para uns pequeninos peixes chamados goldfisch [sic] um vital e exclusivo manjar. Aqui está um genero de piscicultura que representaria um cauto ensaio nos pontos que, como a nossa capital, têm as condições de temperatura e mais factores benignos para o habitat ditoso e bem determinado desta especie particular de mosquitos. Bem conhecido é o caso da icéria que devasta e esgota o arvoredo, mas, se se lhe põe no encalço a adonis, para companheira e attenta guarda, esta, com voraz fome, logo a devora como opipara iguaria. Pois, com respeito aos stegomyas, dá-se cousa parecida, aquelle rebanho fluctuante tem o seu melhor e mais fresco pasto nas larvas d’essa familia de insectos.
O estudo dos stegomyas está completo; duas questões apenas offerecem ainda duvidas. Uma é a de averiguar-se o facto de ser ou não transmissivel a febre amarella aos animaes. Este ponto tem de constituir um capitulo novo. A outra questão é a de ser ou não transmissivel a virulencia, entre gerações de mosquitos, por herança directa. Ha quem a julge possivel para a primeira descendencia, mas, o dr. Agramonte, o unico sobrevivente da douta commissão que na Cuba estudou a febre amarella, não crê n’esta hereditariedade. Todavia, as experiencias Marchoux e Simon no primeiro caso, e as de Roseneau n’este ultimo ponto, accusam resultados positivos. É, porém, licito não os acceitar como artigos de fé, pois que os trabalhos da referida commissão americana marcam uma nova era e luminosa na pathogenia da febre amarella. Dadas as relações do nosso porto com muitos outros onde costuma grassar a febre amarella, as suas condições favoraveis á vida e multiplicação dos stegomyas, e a existencia d’esta especie de mosquitos em Lisboa e seus arredores, seria de cauta prudencia intentar-se uma rude campanha de exterminio d’este mosquito, intermediario certo entre o homem e o germen da febre amarella, e o agente da propagação de tão mortifera doença. Com algum estudo e algum dinheiro não seria difficil matar á nascença a incauta turba que de um momento para o outro nos póde abrir as portas a uma rapida morte.
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / XCIV / Mosquitos"
in Diário de Notícias
de 22 de Fevereiro de 1910, nº. 15903, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1701.