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Texto da entrada (ID.1702)

Chronica scientifica

As cheias do Sena – Factos historicos – Estudo geral da inundação de 1876 por Tissandier – Ensinamento que destes acontecimentos se pode tirar – Previsão e defesa das tempestades

Se a capital francesa fosse sempre a famosa Lutecia que o imperador Juliano descreveu como quartel de inverno, «especie de ilhota no meio de um rio que raras vezes enche e mais raras vezes se reduz», mantendo um nivel quasi o mesmo em todas as estações, limpido e sereno, de agradavel bebida... seria, se os progressos da civilização apenas contribuissem para saneal-a e fazel-a parecer bella, monumental e artistica, o cerebro do mundo, como já lhe chamaram, seria, diziamos, com os seus habituaes encantos exaltados pela arte, um paraiso invejavel, um logar de eleição onde deixar correr a vida feliz. Mas a historia desde remotos seculos conta cousas tetricas ácerca das inundações do Sena, de que as que ha pouco se deram são apenas um caso particular.

Se do tempo do dominio romano ellas não são conhecidas, nas eras que se lhe seguiram, em plena edade média, os historiadores registaram casos sinistros devidos a esse trasbordamento do formoso rio.

No seculo XIII ellas repetiram-se, ficando memoraveis as do reinado de Filippe o Bello, que parecer ter sido o primeiro rei que tomou esses desastres a serio e instituiu medidas para lhes impedir as funestas consequencias.

Perderam-se decerto muitas narrativas de factos analogos passadas na bacia do Sena, de modo que só nos seculos XVII e XVIII os documentos se referem a estes curiosos e dramaticos acontecimentos, que assombraram a laboriosa população parisiense e determinam irreparaveis crises.

Um destes retalhos históricos, citados por Landrin, dá uma idéa nitida da grandeza do mal e inicia uma explicação, hoje considerada classica, sobre as suas origens.

O advogado Barbier refere no seu jornal os pormenores da inundação de 1740, uma das maiores que houve em França:

«Ha mais de dois meses que chove consideravelmente... As neves acumuladas nas montanhas do Delfinado e da Auvergne derreteram-se e aumentaram insensivelmente todos os rios. Isto chegou a tal excesso que se dá uma inundação geral do reino, actualmente, dia de Natal (25 de dezembro de 1740).»

«Paris, acrescenta o narrador, está completamente inundada... Apenas se pode andar embarcado. Em certos sitios os barcos vão até ás escadas dos predios, como o faziam os trens, que deixaram de circular».

A praça Maubert e a de Grève, a celebre praça das execuções de justiça, eram nessa ocasião verdadeiros mares, onde poderiam fazer-se regatas e onde os barqueiros faziam o seu S. Martinho, exigindo dos desgraçados passageiros quantias exorbitantes.

O mesmo afirma que nessa ocasião Paris esteve quase perdida por falta de alimento, pela impossibilidade de entrada das farinhas.

Além desta inundação outras não menos calamitosas teem assolado esta cidade.

A de 1876 é, antes da actual, a mais elevada que se tem produzido nos ultimos annos nesta região. Ainda que de efeitos não muito tragicos, assinalou-se por enormes prejuizos materiaes que, numa cidade como esta, atingem sempre cifras avantajadas.

A predominancia destes phenomenos estabelece-se entre janeiro e Fevereiro, notando-se uma frequencia mais neste ultimo mês, prolongando-se ás vezes pela primavera. Começa lentamente, durante dias a cheia, para, de repente, em poucas horas, ameaçar e destruir tudo na sua passagem, excedendo todas as previsões e inutilizando os obstaculos.

A cheia do Sena em 1876 serve por assim dizer de typo desta especie de cataclysmos, cuja phenomenalidade só nos ultimos tempos começa a ser scientificamente estudada, em vantagem do adiantamento das observações meteorologicas, sempre dificilmente executaveis e de uma interpretação muitas vezes pouco nitida.

O notavel physico Tissandier fez desse facto um estudo geral que apresentou á Academia das Sciencias, pelo qual se podem imaginar as causas que originam essas alterações periodicas do regime dos rios.

Obedecem estas, duas causas principaes: a fusão das neves succedida ao mesmo tempo em toda a bacia do rio e a amplificação devida ás chuvas trazidas pela insistencia dos ventos de sudoeste. No inverno precedente, pelo contrario, a predominancia do vento do quadrante do norte acumulára a neve. De janeiro a fevereiro, tendo o vento girado para sudoeste e feito subir o thermometro, as neves começaram a derreter-se, operando-se o degelo, definitivo a partir de 23 de fevereiro, data na qual as neves acumuladas por toda a parte se fundiram ao mesmo tempo. Por outro lado a persistencia das correntes aereas do lado do Oceano, carrejando humidades, veio aumentar a quantidade de agua escoada pelos afluentes com grande quantidade de chuvas.

A precipitação destas em fevereiro e março desse anno excedeu a média em quase o dobro; d’ahi a mudança do curso pacifico dos rios em torrentes impetuosas que, vertendo enormes massas de agua no leito apertado do principal desaguadouro, fazem crescer este desmedidamente e trasbordar, produzindo as inundações mais ou menos extensas.

Nada ha porém de sobrenatural na explicação destes phenomenos. Elles sucedem-se por um encadeamento causal ou por uma complexidade de factores, cuja associação variavel determina a sua maneira de ser, mudavel de anno para anno, reproduzindo-se com um periodismo irregular, em todo o caso sujeitos á mesma ordem de causalidade. Até aqui teem elles excedido a previsão do homem, levado por medidas empiricas, mais do que pelo estudo methodico, a resguardar-se de similhantes calamidades. As sciencias physicas, particularmente a geographia, a physica do globo, a geologia e a meteorologia, chegadas a uma phase de experimentalismo, fornecem elementos cada vez mais seguros para essa previsão, a qual por enquanto não se pode efectuar com a certeza e antecedencia que seria para desejar, mas com o adiantamento relativamente grande daquellas sciencias poderá vir a ser dentro de poucos annos de efectivo proveito.

Sabe-se que para deter as correntes aquaticas não bastam os diques; em presença de catastrophes como as que assolaram ha pouco o nosso paiz e devastam ainda hoje uma porção importante da França, reconhece-se a necessidade de regular ou modificar os cursos fluviaes, não por obras d’arte simplesmente, mas pelo culto da natureza, pelo culto das arvores, pela conservação das florestas e pela sua propagação, cobrindo as regiões escalvadas, por onde as aguas pluviaes se lançam, rivulizando o solo e engrossando os afluentes, cujas cheias vão fazer sair dos respectivos alveos os grandes rios.

Não é possivel ao homem dominar completamente os agentes naturaes, conter dentro de estreitos limites a sua força, posto que saiba convertel-os em seu auxilio; mas a sciencia moderna fornece os principios sobre que ha de fundar-se o systema de defesa, os meios de resistir ao desabrimento incalculavel destes agentes.

Mesmo sem conhecer nos seu mecanismo intimo os abalos terrestres, os engenheiros japoneses apenderam a fazer construcções anti-sismicas. A protecção do edificios contra a fulguração celeste é uma acquisição á altura de todos os conhecimentos. A meteorologia e a climalogia caminham de par na observação e estudo dos phenomenos atmosphericos, por processos e instrumentos aperfeiçoados, cujos resultados devem ir ter á instituição de uma resistencia especial contra a furia dos elementos.

A marcha das tempestades tem sido desde muitos annos objecto de investigação particular, mas deve-se sobretudo ao meteorologista francês Gréville a coordenação mais exacta das idéas dispersas então sobre estes movimentos do ar.

O estudo destes movimentos permittiu a este autor afirmar a possibilidade de determinar a orientação das borrascas, a sua velocidade de deslocação, espiar por assim dizer o seu gesto e anunciar com horas de precedencia a sua passagem pelas regiões que venham a ficar na sua influencia, com probabilidades do momento da sua aproximação.

Para este efeito o aproveitamento dos detentores de ondas electricas presta sem duvida inestimaveis serviços, segundo o systema preconizado por Turpain, e que tem pelo menos o merito da previsão local. Torna-se simplesmente necessaria a multiplicação dos postos de observação deste genero, para que a tão desejada prevenção meteorologica não seja apenas uma vaga anciedade [sic]. Seria esta mais uma das generosas aplicações da telegraphia sem fios, cujo poderoso alcance neste sentido foi desde o seu começo apreciado.

J. BETTENCOURT FERREIRA.


Referência bibliográfica

José Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / As cheias do Sena – Factos historicos – Estudo geral da inundação de 1876 por Tissandier – Ensinamento que destes acontecimentos se pode tirar – Previsão e defesa das tempestades" in Diário de Notícias de 22 de Fevereiro de 1910, nº. 15903, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1702.



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