O cometa de Halley
Meu bom amigo. – A imprensa tem-se occupado com toda a solicitude do já celebrerrimo cometa de Halley e o Diario de Noticias, vamos lá, não tem sido dos mais pecos em pôr os leitores ao facto do «grande cataclismo» que nos ha de arrebatar d’este valle de lagrimas... e de asneiras.
A imprensa cumpre, sem duvida, a sua missão, está no seu papel; mas, pergunto eu, não lhe estaria tambem a caracter, não seria nobre e altruista espalhar luz e dissipar trevas? promover a tranquilidade em vez de espalhar o terror? Prover ao bem-estar social em logar de travar este já emperrado engenho da vida?
A boa razão parece dizer-nos que sim; e, como o Diario de Noticias tem na sua direcção e redacção individualidades illustres e criteriosas, é para elle que apello solicitando-lhe a sua collocação nos postos avançados do combate contra o retrocesso.
V. não imagina o terror que ahi vae por causa da maldita historia do cometa.
E com razão!
Pois se até o Diario de Noticias, que é o jornal mais popular do paiz, nos apresenta a «trajectoria» e metade d’uma columna da primeira pagina com «dados positivos» de algarismos, distancias, orbitas, etc., tudo em milhões, é certo, mas com a conclusão, «per jocum», que o Halley encontrará a terra em 19 de maio ás duas da manhã!
Ora permitta-me que lhe conte a origem, absolutamente verdadeira, d’esta historia, que não deixa de ser proveitosa:
M. Max Wolf estabeleceu ha tempos em Heidelberg – pequena cidade situada ao norte de Carlsruhe, no grão-ducado de Bade, Allemanha – um observatorio astrophysico, como elle lhe chama, e fez ali montar um telescopio Foucault de 72 c/m [sic] de diametro, construido por Zeiss d’Iéna, tendo o cumprimento [sic] focal de 2m,80 e a duração de pose de uma hora.
Com este poderoso apparelho, que lhe permittia obter photographias interessantes, dedicou-se Max Wolf á pesquiza dos cometas, o que constituia uma originalidade scientifica precursora da immortalidade que o bom do sabio ambicionava.
Com effeito, era tal a febre de caçar cometas, que já em 1908 – ha dois anos! – sem ter ainda lobrigado o espantalho do Halley, elle communicava ao nosso conhecido Flammarion a trajectoria do referido cometa, avisando-o de que o poderia avistar pelo telescopio em setembro de 1909, isto é, um anno depois!
Não foi, pois, a physica, nem podia ser a mathematica que auxiliaram tão maravilhosa descoberta; foi, com certeza, alguma sciencia desconhecida mas de resultados tão concludentes que effectivamente em 12 de setembro do anno findo, ás duas horas da manhã, Wolf obtinha n’uma chapa photographica um tracito quasi invisivel de dois centimetros de extensão, que era, nem mais nem menos, do que o cometa de Halley!
Escreveu logo a Flammarion dando-lhe noticia da encantadora exactidão dos seus calculos, e o sabio francez, que, como todos sabem, é um espirita que não fica a dever nada ao nosso Lacerda, partiu meio desconfiado para Heidelberg, visto não ter recebido nenhuma communicação telepatica dos que estavam mais perto do Halley e que melhor o podiam informar d’esses assumptos.
Chegado ahi, examinou o mysterioso negativo, assegurando-se que não tinha sido a unha do sabio Wolf que inadvertidamente ali tivesse feito alguma beliscadura, obteve do collega a affirmativa de que tinha préviamente limpo com todo o cuidado o campo da objectiva, e, após uma «cavaqueira» que ficou entre elles, Flammarion ahi volta para Paris, algo arreliado com os espiritos, que tão pouco se interessam pela astronomia, mas satisfeito de poder alarmar meio mundo, o que já não era mau, attenta a impossibilidade de conseguir que os indigenas do sertão leiam jornaes europeus.
É esta a verdadeira origem da mirifica revelação scientifica, que provo e certifico com o proprio Flammarion – (Annuaires Astronomiques por 1909 e 1910) e com as «Revistas» da especialidade publicadas recentemente.
Portanto, não foi nem é «a sciencia» que nos affirma o encontro do astro com o planeta da Terra. Um sabio – um só – «prophetisou» ha dois annos esse encontro e soccorreu-se de outro sabio para o ajudar a popularisar o caso.
«A sciencia» está calada e em vão prescuta as profundezas do infinito em busca do importuno visitante, que parece não ter acceitado o convite germanico de nos bater ao ferrolho na sua passagem pelo nosso systema solar.
Ora determinar com antecedencia de dois annos o encontro da Terra com cometas – os párias do espaço – como se se determinasse um eclipse solar ou lunar, não lembra ao diabo; no emtanto [sic], Flammarion, desmentindo-se a si mesmo – leia-se a «Astronomia Popular» – vem cooperar n’esse devaneio como qualquer analphabeto em assumptos astronómicos. «Sic itur ad astra», repetiria Virgilio se, como nós, ainda estivesse condemnado á assadura de 19 de maio.
V. não ignora que, no espaço, o planeta que habitamos é um simples grão de areia. Pois n’este grão de areia, onde o mais illustre official de artilharia se vê em embaraços para regular o tiro da sua peça por não poder terminar «com precisão» a distancia d’uns cem metros; onde a geodesica erra frequentemente, apesar de effectuar a triangulação em vertices firmes; onde á engenharia acontece levantar plantas inexequiveis, apesar do auxilio da fita metrica; onde a astronomia, apesar de todos os seus esforços e estudo, não conseguiu ainda apurar a distancia a que a Terra está do Sol – o seu papá –[,] dos planetas, seus manos, nem sequer da filha, a poetica lua, que por assim dizer se lhe reclina no regaço; onde a medição do proprio planeta está errada, como hoje está manifestamente demonstrado; n’este grãosito de areia, onde o sabio o mais que sabe é que não se sabe nada; – é aqui que se affirma que um traço apparecido n’um negativo photographico é o cometa de Halley e que, apesar de mergulhado nos confins do infinito, se encontrará com elle em certo dia e a certa hora!
Não está rigorosamente calculada a distancia entre a Terra e o seu satéllite, mas indica-se com exactidão a distancia d’um astro milhões de vezes mais afastado do que o nosso Sol!
Já é coragem!
Pois, meu caro amigo, eu, como astronomo, entendi que devia verificar os calculos do meu collega allemão e, se tenho de confessar que os reputo mais do que mathematicamente certos com respeito á velocidade onde não existe, – ia jural-o – o erro de um metro n’um segundo, outro tanto não posso dizer com relação á distancia, porque encontrei no raio vector da parabola que constitue a trajectoria do cometa uma pequena differença, que attribuo ao facto do meu collega Wolf usar lunetas de 9 diopetrias e eu ter a minha vista em bom estado.
Esse erro, aliás minimo, resume-se apenas n’isto 0m,003.
«Tres millimetros!» para menos.
Visto que o peor e o mais difficil já eu fiz, queira v. ter agora a paciencia de recorrer aos seus conhecimentos de algebra e geometria, que, por certo, ainda não esqueceu completamente, e, depois de realisar as operações com as bases que o Diario de Noticias publicou ha dias e que estão rigorosamente certas, como já disse, verá que o resultado, despresando [sic] fracções, é um numero total de algarismos que, representando a deslocação do fóco da parabola, o habilita a affirmar comigo em voz bem alta e sonora, com fundamento tão auctorisado como o de Max Wolf, que não só a cauda do Halley não tocará o nosso planeta, como tambem se não poderá avistar por um Foucault cincoenta vezes mais poderoso do que o pesca-cometas de Heidelberg.
Eu cheguei a pensar, mais pela observação dos homens do que do ceu, que houve quem descobrisse ainda primeiro do que Wolf a correria do Halley para este mundiculo de ambições; e, philosophando sobre o caso, lembrei-me d’aquella birra de Galileu: «E pur si muove!»
É que «isto» tem um movimento proprio, por mais que lhe apertem os freios systema Wolf.
Socegue [sic], pois, os seus leitores, meu caro amigo, com respeito á calamidade de 19 de maio.
Bem lhes basta a do dia seguinte – o senhorio.
Um astronomo alfacinha.