Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
XCV
MOSCAS
Ninguem poderá dizer com razão que demos uma parte carregada das culpas dos mosquitos. Fizemos até a vista grossa a respeito das affirmações de Kaposi que os accusa de propagarem a lepra. Outra escandalosa acção dos seus instinctos malvados! É que este ponto a transmissão de muitas doenças pelos insectos engrandece-se e assume uma importancia real, modificando – ou melhor, devendo modificar – em absoluto a defesa racional contra muitas especies morbidas. O torpe percevejo, esse odioso vampiro, com a sua abominavel bomba hydraulica situada em um estojo nas costas, está habilmente preparado para nos pescar os globulos do sangue e inocular com o dardo que possue malignos venenos. Segundo os trabalhos de Tiktine, os percevejos propagam o typho; pelo menos, o sangue d’estes insectos, depois de chuparem nos doentes typhicos apresenta-se rico em bacterias desta espécie, e determina pela inoculação essa molestia nos macacos. E, egualmente, se lhes attribue o poder de transmittirem a tuberculose, sendo certo que o bacillo desta fatal doença se encontra no sangue dos percevejos. A revolta dos insectos contra o ser humano é pois a lei geral e dominadora. As formigas tambem não são de boa confiança. Tidas como uns seres laboriosos e pacificos, activas e parcimoniosas, sempre será bom deitar-lhes olhos adversos. Ha as brancas, pretas e acobreadas, ha as aladas que são a nobreza representada por machos e femeas que só gozam e não trabalham, e ha a formiga proletaria que não possue aquelles leves appendices. Estas membranas, que são os attributos da aristocracia e que logo á nascença marcam os felizes do formigueiro, faltam na grande legião d’estes insectos; só os privilegiados as ostentam.
Parece que a natureza quer que haja menos a regalarem-se, e o maior numero a trabalhar para o deleite dos de illustre geração. Ora, sabe-se lá, dadas as suas muitas variedades e a ubiquidade deste povo, o que estes seres, que vivem nas trevas, que dão volta completa ao mundo, anhelantes e vorazes, e que são nossos familiares e maculam o nosso sustento, poderão trazer-nos de impuro e suspeito?
Nós temos passado o nosso tempo a não dar grande importancia a essas grandissimas legiões de insectos. Naturalmente, porque elles são muito pequenos, e nós muito grandes. Pois, temos commettido um grave erro, está-se a ver.
No meio do meu furor de hygienista contra a bicharia, um caso ha da vida das formigas que me sensibilisa. Na sociedade formigueira, ha machos, femeas e neutros. Por outra, os primeiros e as segundas constituem a alta roda, os neutros são os operarios que trabalham constantemente; naquelles reinos não existe a lei do descanso semanal. Pois bem, cada um dos cavalheiros tem em toda a sua existencia um dia para amar, ama ardentemente e morre logo pela prole futura. Esta paga dos amores de um só dia com a morte, lá, é um pouco cara, e com razão se devem queixar da sua dureza as formigas-homens. É o fel venenoso em doçura escondido.
Sabe-se pouco das modificações de virulencia porque passam os microbios no corpo dos insectos; da vida, costumes e duração de muitos destes; da duração do perigo da transmissão, e de muitos outros pontos ligados a esta grave questão, de modo que não será talvez grande insania admittir que algumas infecções poderão ter essa origem tambem, embora por outro processo sem ser a inoculação directa praticada pelo insecto ou ajudada por nós.
Com relação á malaria, já se fala outra vez na agua, não, é certo, pela sua qualidade má, mas, por poder conter ovos, larvas, e restos dos insectos especificos cheios de hematozoarios, e que será perigoso introduzir no nosso estomago.
E, dos stegomyas, o proprio professor Agramonte, o mestre consagrado em febre amarella, acceita que elles possam viver algum tempo nas bagagens dos passageiros, uma vez que estejam á larga.
D’ahi, a preoccupação talvez audaz de que as roupas maculadas por esses insectos, durante a sua clausura, possam ser perigosas para o transporte da febre amarella.
Já os costumes aquaticos, e sempre aquaticos, de tal especie de mosquitos, são agora considerados de um modo diverso. Mas, não nos é licito seguir por estes caminhos por força enganosos; a commissão americana de Cuba nega tudo, a não ser a inoculação directa pelos stegomyas, e ella, para o caso, tem a força de um decreto inalteravel e obedecido.
Quem não está com meias medidas, é o dr. Charigny lmpondo [sic] até responsabilidades ás corporações municipaes que administrem as cidades ameçadas pela febre amarella ou os paizes malaricos. Se querem corresponder á confiança dos que os elegeram, devem «acabar com as aguas estagnadas perto das habitações, darem saida facil e continua ás aguas domesticas servidas, tirar os repuxos das praças publicas, e nada de tanques inuteis. E, precisam mais do summo aviso de que o eucalypto, o pinheiro e outras arvores balsamicas afugentam os mosquitos, e que onde os não haja, não poderá haver paludismo nem epidemia de febre amarella.»
Com vista aos edis dos nossos iribunatos municipaes.
Vamos, agora, tomar contas a um outro insecto tambem enlodado em pestiferos vícios: as moscas.
Não são os naturalistas avaros de elogios ao modo como estão organisadas as patas da mosca e a sua trompa, e á perfeição das tenues azas d’este insecto. Tudo lhes parece digno da mais alta admiração. Vejamos, então o reverso da medalha. Existem, sem duvida, a mosca typhosa, a mosca pestifera, a mosca carbunculosa, a mosca tuberculosa, e a mosca variolosa e leprosa.
Por outra, todas estas doenças, e talvez mesmo a cholera, nos podem ser transmittidos [sic] por esse obsequioso diptero, organisado em exellentes [sic] condições para nos atirar para o escuro seio da piedosa terra.
E, para contra-peso, ha ainda uma especie que tem artes de produzir a acerba doença do somno. Não é pouco para um só insecto, aliás, tão amoroso e tão magnifico que bastam, para verdadeira maravilha, as suas rendas finas das azas e os systemas respiratorios e de locomoção.
E, a ponto tal que Maret pretendeu fabricar um destes insectos mecanisado, uma mosca artificial que se movesse no ar, e a sua obra não passou de uma pessima imitação da obra perfeita da grande operaria que se chama a Natureza.
Depois, pouco se sabe da vida e dos habitos das moscas. Ao todo, que transportam sobre o corpo, nos intestinos e no amago dos orgãos, germens de muitas doenças.
Sabe-se mais que pousam em tudo e por toda a parte, com predilecção pelas coisas sujas, como fezes, feridas sordidas e escarros. Por estes, então, com appetecido gosto.
Pousando no pão e nos outros alimentos, nos utensilios de cozinha e de meza, bem se comprehende nomo [sic] esses germens são introduzidos na nossa economia. Um pouco de leite em que tenham tocado ou cahido moscas é, na phrase do dr. Joly, um optimo caldo de cultura para nos infectar.
Portanto, toda a guerra defensiva e offensiva que se faça ás moscas será uma guerra pia e benefica. Infelizmente, faltam-nos armas bellicas para as provocar ao combate e cantar victoria. Por muitas razões, as suas armas mortaes infectas de venenos podem muito mais do que nós. É o caso de se dizer que a nossa situação por agora no combate com as moscas é simplesmente a de:
«Andar ás moscas».
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / XCV / MOSCAS"
in Diário de Notícias
de 28 de Fevereiro de 1910, nº. 15909, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1705.