Chronica scientifica
A respiração do oxigenio puro – Aparelhos de inhalação com o oxigenio liquido (processo de Claude) – O seu emprego nos trabalhos de salvação e nos desportes – O tratamento da fadiga e da vertigem de montanha pelas inhalações de oxigenio.
Muita gente crê piedosamente que o oxigenio, esse gas vital, que faz parte importante da atmosphera que respirâmos, é por sua natureza irritante e toxico, quando puro, provocador de intensas manifestações nervosas, de um erethismo particular. Deve-se sobretudo a Julio Verne a propagação desta especie de lenda, que o notavel romancista eternizou sob uma graciosa fórma literaria, num dos seus livros mais populares – O dr. Ox –, atribuindo ao oxigenio propriedades exageradas, estranho poder, que a sciencia de hoje, experimental e pratica por excelencia, se compraz em reduzir a proporções normaes e aproveitar em favor das necessidades sempre crescentes da industria moderna.
A pretendida acção nefasta do oxigenio é o que se chama... uma historia. D’Arsonval demonstrou que, seja qual fôr a quantidade de oxigenio fornecida, os pulmões apenas absorvem o volume necessario á sua funcção normal, isto é, á oxidação da hemoglobina do sangue. Não ha portanto perigo de sobre-oxidação, nem envenenamento no sentido proprio do termo. As aplicações já numerosas do oxigenio no estado liquido e gasoso vieram dar o ultimo desmentido á enraizada suposição, principalmente depois que os progressos na liquifação dos gases tornou pratico o acondicionamento de grandes quantidades destes corpos sob pequeno volume.
É particularmente no uso de aparelhos de salvação que o emprego do oxigenio se faz apreciar de uma maneira mais interessante e utilitaria. Estes aparelhos respiratorios servem principalmente para o salvamento das victimas das catastrophes mineiras. Neste caso o salvador leva comsigo [sic] uma certa quantidade de ar puro, que lhe permitte penetrar nos locaes cheios de gases irrespiraveis e socorrer os sinistrados.
Não é porém um problema facil de resolver esse de fornecer em taes circumstancias [sic] uma quantidade de ar, com suficiente regularidade, para não causar inconvenientes e de uma duração capaz de deixar executar os trabalhos, as mais das vezes bem dificeis, de prestar socorros no fundo das hulheiras.
Ha para este fim diversos typos de invenções, nos quaes predomina o emprego do gas comprimido. Em alguns este forma-se no aparelho á medida do consumo, por intermedio de reacções chimicas conhecidas.
A descoberta do ar liquido trouxe um grande progresso a estes aparelhos, permittindo armazenar sob esta forma volumes consideraveis de ar respiravel. As modificações introduzidas por Claude são o ultimo aperfeiçoamento que torna o expediente salvador verdadeiramente praticavel e eficaz.
Os aparelhos deste inventor comportam 1200 litros de gas, reduzido pela liquifação a um volume de litro e meio. Esta quantidade de oxigenio gasta-se em 2 horas e é mais do que a necessaria para entreter a respiração durante esse periodo, por isso que o consumo de um adulto entregue a um trabalho violento é de 120 litros por hora. Aquelle excesso está longe de ser uma superfiuidade [sic], que desequilibraria uma invenção de caracter eminentemente pratico. Serve para a regeneração do ar respirado no recipiente, do qual só uma porção é rejeitada enquanto a restante é diluida no oxigenio sobreexcedente [sic].
A passagem deste do estado liquido ao estado gasoso faz-se lentamente, em virtude da temperatura do recinto, fornecendo o fluido vital em abundancia ao peito do salvador.
Para que este não seja tambem victima, é preciso que os engenhos destinados á manutenção das atmospheras artificiaes obedeçam a determinadas condições, por exemplo, serem leves, sem peças ou orgão faceis de se avariarem, de um funccionamento imediato e regular, quanto possivel automatico. Os aparelhos de Claude satisfazem a estes requisitos, mas carecem de reservas de oxigenio liquido, que hoje felizmente a industria chimica faculta. Para este efeito os autores servem-se do gas contido nos tubos do comercio e liquifazem-no debaixo de pressão, em uma machina especial, com o auxilio do ar liquido distendido, resultado que se obtem em um quarto de hora pelo menos.
Além disso pode-se estar prevenido com quantidades de oxigenio liquido nos balões prateados do Dewar.
Reconhece-se portanto que a utilização das atmospheras fabricadas não são apenas tentativas generosas e humanitarias, de uma diffícil sequencia, mas entrou numa phase nitida de proveito industrial e social.
De facto é nas minas, onde ha infelizmente com tanta frequencia os desastres que arrastam centenas de mortos e feridos, o lugar em que mais vezes esta invenção pode ser aplicada. Muitas outras aplicações pode ella ter porém.
A vivificação produzida pelo oxigenio é um auxiliar poderoso para combater os inconvenientes das ascenções [sic] de montanha ou em aerostato, evitanto pelo uso das reservas de oxigenio, sob esta ou aquella forma, os incomodos e perigos da rarefação do ar nas altas regiões. Além disso empregam-se estes regeneradores do sangue para combater de um modo rapido as consequencias da fadiga, como excitante dos musculos e dos nervos.
Por essa razão se tem lançado mão de similhantes aparelhos para refazer as forças desperdiçadas em um exercicio penoso, nas lutas athleticas, segundo o conselho do professor Hill, de Londres, pelo qual os gymnastas, os desportivos (e porque não os trabalhadores de qualquer ordem?) podem alcançar um grau elevado de resistencia e de trenamento [sic].
A physiologia ensina que a actividade respiratoria é governada por um centro nervoso, o qual regula os movimentos do thorax, incitado por seu turno pela existencia dos gases do sangue. Quando este liquido chega áquelle centro com um pequeno excesso de acido carbonico, isto é, mais pobre no seu oxigenio, resulta um estimulo mais energico do mesmo centro, o que faz exagerar em amplitude os movimentos do peito e portanto aumentar em profundidade as inspirações que, trazendo aos alveolos pulmonares maior quantidade de ar novo, vão regenerar o sangue venoso e arterizal-o, tornando-o proprio para os actos vitaes. A sobreoxigenação do sangue, quer dizer, a sua elevada proporção de oxigenio em relação ao acido carbonico, produz o phenomeno inverso: diminuição de actividade do centro respiratorio e sequer mesmo a sua inhibição e paragem momentanea dos movimentos da respiração. O individuo coloca-se no estado de apnêa. Esta suspensão muito temporaria da principal funcção, pode ser mais ou menos prolongada conforme as circunstancias. O experimentador citado assim como Vernon notaram que, fazendo algumas inhalações profundas de gas oxigenio puro, se pode duplicar o tempo de paragem consecutiva da respiração.
Assim é que, após um minuto de inspiração forçada pelo ar, tomando algumas lufadas de oxigenio, Vernon conseguiu reter a respiração por 4’ e 18’’. Passados 3’ de respiração forçada e oxigenação em seguida, a suspensão era de 6’ . 34’’.
Finalmente, se a respiração forçada se continuava por 6’, o parenthesis do folgo [sic] attingia o limite maximo de 8’, 13’’.
Vernon bateu assim o record do mundo estabelecido em 1898 por Miss Wallenda, a qual, depois de se pôr em apnea, se conservava debaixo d’agua 4’, 45’’, 5. Além d’isso sabe-se que os mergulhadores de Ceylão, que se empregam na pesca das perolas não se demoram mais de 90’’ debaixo d’agua.
Estas experiencias provam que a armazenagem ou acumulação de oxigenio no sangue torna o centro respiratorio menos sensivel á estimulação pelo sangue venoso e faz sentir menos a necessidade de activar a funcção. As inspirações forçadas e repetidas teem por efeito produzir aquella hyperoxigenação que pode beneficiar certos estados morbidos mantida com um certo methodo. As inhalações de oxigenio puro, durante o estado de fadiga, substituem os movimentos respiratorios esforçados, que provocam um mal estar insustentavel.
É por esta razão que o methodo se recomenda nas grandes ascenções, para evitar os inconvenientes da falta de ar e do cansaço, bem como nos trabalhos cujo esforço se traduz pela fadiga respiratoria.
Uma das condições para que uma invenção possa vulgarisar-se é o ser reduzida á sua maior simplicidade.
Os estudos de Claude e Le Rouge apresentados á Sociedade francesa de physica, permittindo a producção, segundo a necessidade, de gases da atmosphera liquifeitos e tornando, pela simplificação do dispositorio, de um manejo facil as inhalações de oxigenio, promoveram a entrada deste systema no dominio industrial e na vida social moderna, onde o uso deste processo é chamado a produzir grandes beneficios.
J. BETHENCOURT FERREIRA.
José Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / A respiração do oxigenio puro – Aparelhos de inhalação com o oxigenio liquido (processo de Claude) – O seu emprego nos trabalhos de salvação e nos desportes – O tratamento da fadiga e da vertigem de montanha pelas inhalações de oxigenio."
in Diário de Notícias
de 26 de Março de 1910, nº. 15934, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1734.