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Texto da entrada (ID.1762)

Chronica Scientifica

Transplantações de orgãos – Cirurgia do futuro – Esperiencias [sic] do dr. Carrel

Não ha muitos annos, a despeito da mundanização de idéas positivistas, aceitava-se de boa fé a idéa das interferencias miraculosas em certos casos da vida e particularmente ao que toca ao restabelecimento da saude abalada por alguma perturbação profunda. Lourdes, o Sameiro e outros pontos de peregrinação foram celebrizados por inumeros grupos de crentes, que gritavam incessantemente pelo milagre, em presença de alguns desses casos de cura espontanea, em que as forças da natureza, essa vix medicatrix dos antigos, faziam prodigios exaltando a fé.

As sciencias foram no entanto progredindo e, com a precipitação que o seculo anterior deu a todos os ramos, foram operando tambem maravilhas e tornaram-se gloriosas pela irradiação de descobertas e pela multiplicação das invenções que atestam a superioridade do engenho humano.

O seculo que viu aperfeiçoar-se a machina de vapor, tornar-se navio e locomotiva, reduzindo as distancias; que assistiu ao evolucionar das geniaes descobertas de Volta de Galvani; que desenvolveu as comunicações telegraphicas e telephonicas; que viu nascer Pasteur e, durante esse ciclo brilhante de inventiva, iniciar-se a era da bacteriologia, tão fecunda para a arte medica, pode dizer-se que substituira o maravilhoso perante a crença pelo milagre da technica, que não destroe a fé, antes lhe fornece multiplos pontos de apoio, para a tornar mais optimista sobre as conquistas futuras.

Se, em consequencia das sucessivas investigações microbiologicas, as operações cirurgicas classificadas de audaciosas e temerarias passaram a pratica corrente, sob a egide da antipsia e depois da asepsia tornada em ritual operatorio do maximo respeito, na actualidade, novas experiencias no campo das sciencias auxiliares da medicina vieram determinar novos e arrojados feitos no dominio cirurgico. Já se deixa de lado, como cousa um tanto banal, a extirpação de orgãos doentes, ou a resecção da parte lesada. A transfusão do sangue, ainda que poucas vezes executada, perdeu um pouco do seu prestigio de arriscada, em vista dos modernos processos pelos quaes se regenera o sangue e ainda pelo methodo recente pelo qual ella póde ser efectuada.

Ha pouco ainda, podia-se predizer um notavel adiantamento á cirurgia ou julgar-se a gente em uma nova epoca de romantismo scientifico, ao considerar os resultados experimentaes obtidos pelo dr. Carrel na America, sobre a revivescencia e transplantação dos orgãos. Hoje a sua aplicação artistica é um facto consumado; uma conquista definitivamente realizada.

O dr. Carrel é um cirurgião francês, dotado de um espirito irrequieto de inovação, antigo interno dos hospitaes de Lião e ha tempo instalado na America do Norte, onde, depois de proseguir [sic] os seus estudos na Universidade de Chicago, veio a ser um dos dirigentes do Instituto Rockfeller de Nova-York.

O estudo da reconstituição de orgãos profundamente feridos, particularmente das suturas de vasos sanguineos, constituiu uma boa parte dos seus primeiros trabalhos. Conseguiu um methodo seguro para reunir arterias e veias, mais do que isso, transplantar uma veia para o lugar de outra, sem que a mortificação dos tecidos viesse invalidar o arduo e delicado trabalho. Tira, por exemplo, uma porção da aorta abdominal de um cão, ferida de uma maneira qualquer, concerta-a com um fragmento cutaneo do mesmo animal e, ao cabo de dois annos, reconhece-se que esta especie de enxerto pegou e que o importante vaso se acha reconstituido e funccionando na perfeição.

São numerosas as experiencias feitas; nem todas, porém, foram coroadas de exito completo, mas alguma cousa se concluiu dellas para que possam assentar nessas provas as bases de novos methodos cirurgicos. Assim, por exemplo, quando se trata de aneurismas volumosos, em que a intervenção operatoria tem de ser um recurso heroico, mas falivel até aqui pelos recursos empregados, esta tornar-se-á victoriosa pela transplantação de uma arteria ou de uma veia de calibre apropriado, que permitte o restabelecimento da circulação sanguinea e a restauração funccional do orgão.

Em virtude do aperfeiçoamento a que o dr. Carrel chegou nas suas interessantes tentativas, cuja aplicação á arte de curar se afigura ser larga, a transfusão do liquido nutritivo pode operar-se de uma maneira inteiramente sem precedentes, comunicando a arteria do individuo são com a veia do paciente, o que elle tratou de fazer em o caso de uma creança, que uma doença grave do sangue ponha em perigo de morte e que desta arte foi salva por uma operação similhante. Poder-se-ia indagar se a injecção do sôro artificial não seria capaz de produzir o mesmo efeito, mas a cousa era duvidosa, visto tratar-se de uma alteração profunda do sangue e não de uma simples carencia deste liquido, como acontece na anemia aguda.

O arrojo foi mesmo até tentar salvar um individuo a quem uma embolia punha ás portas da morte e que em ultimo recurso veio a ser objecto de uma operação de Carrel, o qual nesse extremo pôde abrir o peito do agonisante, descobrir o vaso obstruido pelo embolo ou coagulo sanguineo e… restituir ainda alguns dias de vida ao padecente, que a final sucumbiu a complicações supervenientes.

Resultado contestavel, duvidoso, negativo? Não, para quem sabe que uma embolia mata ás vezes de um modo fulminante e para quem conhece que a cirurgia do coração não é hoje uma utopia, mas um acto de coragem do cirurgião mais que do operado, pois mais de uma resurreição [sic], por assim dizer, tem sido tentada com felicidade neste sentido, registando-se entre varios casos desta maravilhosa cirurgia um em Portugal, devido á decisão e alta technica de um abalisado cirurgião, o professor Francisco Gentil.

* * *

Sem chegar a estes extremos, o methodo de Carrel tem aplicações de muitissimo valor, dentro dos limites do enxerto e da transplantação de orgãos. Este experimentador conserva durante meses e annos, por um processo especial da sua invenção, os diferentes orgãos susceptiveis de serem empregados, principalmente arterias e veias extrahidas de animaes sãos. É claro que o resultado será tanto mais seguro quanto mais recente fôr o pedaço ou peça de substituição. Póde-se assim dispôr para a ocasião de um material tão fresco quanto se precisa.

O anno passado o dr. Doyen praticou uma dessas operações de enxerto vascular, a qual foi a repercussão feliz dessa descoberta americanizada, revertendo em processo corrente para a cirurgia actual. Por esse modo substituiu o celebre cirurgião francês uma veia importante de um individuo atacado de phlebite obliterante, que estava compromettendo a circulação profunda de um dos membros.

Para esse fim serviu a veia do pescoço de um carneiro, estrahida [sic] com todos os cuidados que a sciencia aconselha e cosida ao tronco da veia tibio peroneal do enfermo, cujo articulo em poucos dias se achava desembaraçado do mal que o prejudicaria para sempre e instituiria talvez a sua perda total, se não fôra este recurso audaz.

O dr. Carrel faz mais nas suas experiencias: segundo afirma o professor Pozzi consegue a reunião completa da perna de um animal morto recentemente ao corpo de outro que acaba de amputar.

Comprehende-se como cada uma destas experiencias possa ser animadora para os que pretendem remediar mutilações, que são sempre desagradaveis e desgraciosas, conquanto ás vezes salvadoras. O dr. Carrel pensa que taes enxertias serão possiveis no homem. Esta será de certo a verdadeira cirurgia do futuro, envolvida ainda em mysterios de duvida e repellida pelos menos credulos para o montão das cousas que a sciencia de hoje antevê como mera possibilidade.

Não deixam porém os concludentes estudos do dr. Carrel de dar uma esperança acariciadora, que a habilidade technica dos modernos seguidores de Ambrosio Pareo converterá não longe em assombrosa realidade.

J. BETTENCOURT FERREIRA.


Referência bibliográfica

José Bettencourt Ferreira - "Chronica Scientifica / Transplantações de orgãos – Cirurgia do futuro – Esperiencias [sic] do dr. Carrel" in Diário de Notícias de 6 de Abril de 1910, nº. 15945 , p. 1 (c. 6-7). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1762.



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