Planetas e cometas
Se alguem se atrevesse a duvidar do progresso das idéas democraticas bastava o facto que se realizou ontem para lhe desvanecer quaesquer incertezas a tal respeito. Foi hontem, dia um de maio, dia de festa dupla, por ser domingo para a christandade, e por ser o dia escolhido pelo socialismo para commemorar a affirmação das suas doutrinas, que o tão falado cometa de Halley effectuou a sua passagem junto do planeta Venus. Na verdade não se pode ser mais amavel, e vinga-se tão senhorilmente o tão vilipendiado cometa de quantas calumnias tem sido alvo, sendo simultaneamente agradavel á religião e ás revindicações do operariado, sem de forma nenhuma escandalisar os sectarios d’outras crenças e os proselytos d’outras theorias. Que bello exemplo de desassombro de animo e de genio conciliador dá á humanidade este astro! Pois o nome mais suave com que ella, a humanidade, o tem apodado é de vadio do espaço!
Espirito eminentemente democrata, como se acaba de ver, quiz levar mais longe a ostentação das suas gentis qualidades, cortar cerce a malevolencia dos que lhe attribuem designios malfazejos, e, galanteador como um bizarro fidalgo dos velhos tempos – repare-se como elle mantem um delicado equilibrio entre a democracia e a aristrocacia [sic] – resolveu cortejar Venus, dirigir-lhe alguns madrigaes de relance e obrigar a Terra a socegar [sic] os nervos e a acolher com o decoro e a decencia que convém a uma senhora, que se présa, a sua proxima entrevista.
O cometa Halley será talvez um bohemio, não dorme todas as noites no mesmo domicilio, opprime-o a fama de voluvel nas suas relações com as leviandades sideraes, accusam-no de se acercar demasiado de certas constellações cuja reputação de firmeza não anda isenta d’algumas maculas, mas é um modelo de fidelidade á orbita que a astronomia lhe assignalou, cumpre religiosamente os seus deveres civicos de comparecer no sitio e á hora que a sciencia lhe marca, com muito mais exactidão até que a maioria dos eleitores á urna.
Adora o galanteio, não ha duvida. Mentiriamos se declarassemos o contrario, mas é um galanteio fino, subtil, uma especie de flirt á ingleza. Avisinha-se da estrella ou do planeta dos seus ideaes com infinita urbanidade. Nada desses attrictos grosseiros e asperos dos animatographos e ajuntamentos. Roça-lhe ao de leve pela atmosphera diaphana que a envolve á guisa de alva tunica de purissima vestal, contempla-lhe de soslaio os encantos mais visiveis sem se atrever sequer a aflora-los com os labios; o seu contacto com os corpos celestes de que se approxima assemelha-se ao do pintor ou do esculptor com a obra creada, vaporisa-se n’uma chimera; respeita e divinisa-os como o poeta em extase o mitho d’onde lhe brotou a inspiração.
N’uma palavra, cremos não o offender, comparando-o a certos conquistadores do nosso conhecimento, dulcissimos e ternos alfenins ao pé das damas, que tanto e tanto se «derretem» que acabam por se diluir como o assucar n’uma chicara de chá bem quente.
É um astro polido, romantico, embebido de idéas cavalheirescas, enlevado no platonismo. Como vagueia ha alguns milhares d’annos pela incommensurabilidade do vacuo, não lhe tem sido possivel acompanhar tão de perto quanto desejava a marcha da civilisação. Da ultima vez que se avistou com a Terra ainda não se inventara o feminismo e por isso conserva toda a classica e hellenica veneração por quanto é feminino. E depois, ainda, o cometa de Halley está, como diz o endiabrado Mephistopheles no terceiro acto do Fausto, quando se refere a Martha: «un [sic] pó maturo».
Dos desoito cometas cuja periocidade [sic] pode ser estabelecidade sem erro maior que o lendario palmo, a duração da revolução sideral varia desde o cometa de Encke, asseguram os sabios, que chega a tres mil trezentos e tres annos, até o de Halley que desce a setenta e seis, pouco mais ou menos. Ora esta demora, relativamente curta, se se refere aos outros macrobios, é enorme, comtudo [sic], e deve socegar [sic] os que se interessam porque a virtude da Terra não soffra avaria na sua tangencia com o astro lamecha. Teem sido já tão frequentes os osculos dados e recebidos cada setenta e seis annos – e ha quanto tempo isto dura! – que mais um, como canta a actriz Julia Mendes, não faz mal a ninguem!
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Um livro moderno e bem feito do engenheiro hydrographo Ramos da Costa, O cometa Halley, regista que o luminoso e encabelleirado errante foi visto da Terra, só da era christã para cá um quarteirão de vezes, o que não é muita parcimonia para um astro que gosa de tamanha celebridade, e, ao que conste, a dita Terra ainda não soffreu rombo que a obrigasse a recolher á cama, nem foi obrigada a amarrar um lenço em volta da cabeça, nem sequer a chamar qualquer caldeireiro que lhe deitasse alguns «gatos a preços baratos».
A crendice de uma parte do povo que está agora como era então, apesar de decorridos tantos seculos e dos mestres escolas terem desbastado algumas florestas de carvalho e bastantes pinhaes em mandar fabricar palmatorias, e do numero de palmatoadas dadas nas mãos dos patetas ser superior ao dos kilometros que separam a nossa bola d’esse mais que hiperbolico corpo, que jornadeia pelo infinito sem ligar, parece, grande importancia aos calculos e hipotheses dos sabios, todos entretidos a architectar principios e leis, que o tempo, a experiencia e novos e indiscutiveis factos derrubam como as fortalezas de barro amassado, construidas pelos garotos, são demolidas pelas pedradas d’estes.
Seria recusar á Historia os foros e privilegios do phonographo universal da Verdade se não concordassemos com ella em que o apparecimento do cometa noticia sempre um successo retumbante, e com tal certeza e a ponto tal, que os jornaes americanos, como por exemplo o «New York Herald», já entrou em negociações com o illustre e bem informado astro para desempenhar no opulento orgão de além do Atlantico o logar [sic] de reporter em chefe.
Não ha que duvidar. Em surgindo na noite transparente e calma uma cabelleira que faz morrer de inveja aos carecas, e uma cauda que enche de pesadêlos o somno dos gaiatos por não a poder adaptar como rabo aos seus papagaios lançados ao vento, ou ser aproveitada pelos actuaes aviadores para appendice dos seus apparelhos, certo é morrer gente, haver incendios, os medicos enganarem-se nos diagnosticos, as sogras aborrecerem os genros, os pobres não ter [sic] que comer, os ricos rebentarem com indigestões, os gatunos surripiarem as carteiras dos incautos, etc., um tal diluvio de calamidades como nunca choveu sobre os frageis humanos desprovidos de umbrellas proprias para se livrarem de tão flageladoras pragas.
Conta-se que no anno 451 appareceu o cometa de Halley na vespera da batalha de Chalons. O pobre do rei dos huuos [sic], o memoravel Atila, que se chamava a si mesmo o «látego da humanidade» apanhou tão furiosa sova dos romanos, commandados pelo general Aetius, que nunca mais tornou a empunhar o azorrague. É claro que nestas circumstancias os hunos tiveram toda a razão de se queixar do cometa, pois ficaram com o corpo em lençoes de vinho. E os romanos?
Em 1456, quasi mil annos depois, os turcos, commandados por um rapaz, por um dos mais audazes caudilhos da sua geração, pelo sultão Mahomet II, cercaram Constantinopla. A cidade, defendida por um homem valente, pelo imperador Constantino, mas que só tinha em volta de si alguns centos de homens destemidos, e o resto, uma poltreia, que pensava muito nos seus interesses e pouquissimo nos interesses da patria e do monarcha, foi tomada. A queda do imperio bizantino coincidiu com o apparecimento do cometa de Halley. Do que não resta duvida é que se o presagio [sic] foi mau para os christãos, se tornou optimo para os muçulmanos. Só prova que é um cometa tolerante, dado á liberdade dos cultos.
E basta de factos historicos, que não demonstram nada. O mundo sempre andou á bulha. As guerras, as catastrophes, as epidemias, os crimes repugnantes, quantos acontecimentos envergonham o progresso e a civilisação, succedem-se e precipitam-se com prodigiosa velocidade, e o pobre, o calumniado do cometa de Halley, só de setenta em setenta e seis annos é que consente que a Terra o veja por um oculo.
Descansem leitoras e leitores timoratos, soceguem alanceados senhorios, tremam esperançados inquilinos, o cometa não esbarrará com a Terra, nem a sua atmosphera derramará sobre a nossa o tal perigoso cyanogeneo, ou como quem diz acido prussico. Nem toda a immensidade dos espaços interplanetarios coalhada do fulminante toxico seria capaz de imprussicar um unico senhorio em vesperas de rendas da casa.
Preparae a massinha, preparae a massinha! Como o cometa se rirá de todos nós, do nosso medo, no dia 20, e uma semana depois, no momento de pagar a decima.
E ainda ha quem tema os gazes venenosos com taes afflicções em perspectiva?
EDUARDO DE NORONHA.