O cometa de Halley
A conferencia promovida pela Academia de Sciencias de Portugal
Reuniu-se hontem, na sala «Algarve» da Sociedade de Geographia, a Academia de Sciencias de Portugal, assistindo, álem [sic] de grande numero de academicos, bastantes socios d’aquella Sociedade, muitas senhoras e uma verdadeira multidão de pessoas das classes sociaes mais illustradas.
Presidiu o sr. dr. Theophilo Braga, secre[tar]iado pelos srs. Antonio Cabreira e Levy Bensabat.
O sr. dr. Theophilo Braga, abrindo a sessão, accentuou o papel importante que a Academia tem assumido em todos os momentos em que o espirito publico anda apprehensivo, dando indicações scientificas preciosas, como foi por occasião dos ultimos terremotos, e agora mostrando que não ha perigo algum com a passagem da terra pela cauda do cometa de Halley. Em seguida, apresentou o illustre astronomo sr. Mello e Simas, que é recebido com uma salva de palmas.
O conferente principia por agradecer ao presidente da Academia de Sciencias de Portugal, o sr. dr. Theophilo Braga, as palavras que lhe dirigiu, aproveitando o ensejo para dizer o que pensa a respeito d’aquelle homem notavel, a quem considera um verdadeiro philosepho [sic], apprehendendo e comprehendendo os principios fundamentaes de todas as sciencias. Estabelece a differença entre o philosepho e o especialista, dizendo que este desce ao fundo do detalhe, ao passo que o primeiro vê as coisas d’alto, como o pretôr romano.
Entrando em seguida na materia da sua conferencia, principia por declarar que antes de deduzir quaes as influencias que o cometa de Halley poderá exercer sobre a terra, vae apresentar as conclusões a que chega, por differentes processos de deducção. Que essas conclusões podem resumir-se unicamente no seguinte:
Ha realmente bastantes probabilidades de que a Terra atravesse a cauda do cometa de Halley; mas que, mesmo admittindo como certa e segura essa travessia, d’ahi não resulta para nós o menor inconveniente. Muitos imaginam que dia 19 verão o astro em toda a sua magnificencia. É um engano. Nós nem daremos por semelhante facto.
Em seguida, descreve qual deve ser a constituição de um cometa, á luz dos modernos processos scientificos; mostrando que os effeitos que haveria a esperar poderiam ser de tres ordens: mechanicos, calorificos e chimicos, ou melhor physiologicos.
Os primeiros consideram-se nullos ou quasi nullos, porque a massa dos cometas é infinitamente pequena, e essa mesma, no proprio nucleo, está extremamente dividida, de modo que, ainda que a Terra fosse chocada por aquelle nucleo, o que está muito longe de ser o caso actual, nem isso seria prejudicial para nós, manifestando-se-nos apenas sobre a forma inoffensiva de uma chuva de estrellas cadentes. E se não passaria d’isso, no caso mais desfavoravel, conclue que seria realmente extravagante temer qualquer accidente passando o nucleo a 23 milhões de kilometros da nossa Terra. As caudas cometarias são quasi immateriaes, e teriamos tanto a recear da sua approximação como se não passassem de simples illusões opticas; isto é, nada.
Referindo-se ao effeitos calorificos, diz que pela mesma rasão de insignificancia da massa, o calor armazenado deve tambem ser extremamente pouco, visto que só a materia o armazena, e que se tivessemos para aquecer-nos só o calor do cometa, correriamos serios riscos de morrer gelados.
Pelo que respeita á acção de gazes delecterios sobre o nosso organismo, diz que n’aquelles astros não ha gazes taes como os observamos á superficie da Terra; a sua existencia seria incompativel com a insignificancia da força attractiva d’aquelles cosmos celestes. Mas ainda que os houvesse, a sua densidade seria tão diminuta que teriamos a proteger-nos a espessa couraça formada pela nossa propria atmosphera. O ar que respiramos, em presença dos materiaes de que se compõem aquellas caudas, é mais compacto de [sic] que o aço comparado com a nossa atmosphera. Temer pois qualquer perigo da travessia pela cauda de um cometa, seria tão ridiculo como estar n’um quarto forrado com paredes de aço de kilometros de espessura, e receiosos [sic] de que o vento nos viesse perturbar, ou que particulas arrastadas por esse vento atravessassem os póros de todo aquelle aço e viessem produzir acções toxicas sobre o nosso organismo.
Expondo muito summariamente as theorias das caudas cometarias, estabelece as relações entre esse phenomeno e o das nossas auroras boreaes, especie de cauda rudimentar do globo terrestre, concluindo assim que se ellas tivessem alguma acção nefasta sobre os organismo vivos, então a vida nunca teria existido á superficie da Terra.
Termina assim a parte verdadeiramente technica da sua exposição, communicando que das suas ultimas observações, n’estes ultimos dias, parece inferir-se que a cauda do cometa não chegará a attingir a extensão sufficiente para alcançar a Terra no dia 19; não fazendo essa communicação logo de começo para não tirar o interesse ao assumpto.
Passa em seguida rapidamente sobre a historia do cometa de Halley, cuja primeira identificação remonta ao anno 467, antes de Christo, citando alguns factos notaveis e curiosos relacionados com apparições d’este astro, e fazendo notar que a successão das ideias que acolheram essas diversas apparições, constitue, por assim dizer, a historia da evolução intellectual, notando-se, mais ou menos distinctamente, a passagem do espirito theologico ao metaphysico e, por ultimo, ao positivo.
Indicando, finalmente, o principio da unidade das causas e leis reguladoras de todas as manifestações da Natureza, quer sejam mechanicas, physicas ou mesmo naturaes ou psychicas, termina por se admirar com annos e annos de observação do nosso meio individual; não tivessem dado ainda a experiencia sufficiente para notar que a nullidade, a mediocridade ou a inutilidade, nunca tiveram outro meio comparativo que não fosse o espalhafato apparente, forçado ou imbecil, da sua propria ostentação.
O sr Mello e Simas, ao terminar a sua notavel conferencia, foi alvo de uma calorosa ovação por parte da assembleia.
Entre os academicos estavam os srs.: dr. Theophilo Braga, general Schiappa Monteiro, Antonio Cabreira, Levy Bensabat, visconde Sanches de Frias, D. Olga Moraes Sarmento, dr. Tovar de Lemos, dr. Vieira Guimarães, Carlos de Mello, dr. Xavier da Cunha, Júlio Augusto Ferreira, Antonio Ferrão, dr. Costa Ferreira e dr. Bettencourt.
Muitos centos de pessoas não conseguiram entrar na sala, ficando deveras contristadas pelo empenho que tinham de assistir á conferencia.
Nas provincias
Festejos em Villa Franca de Xira
Vila Franca de Xira, 3. – Dizem-nos que este já celebre cometa tem sido visto n’esta villa, pelas tres horas da madrugada.
Projectam-se algumas festas para a noite de 18 de corrente, falando-se já em bailes em todas as associações recreativas e uma brilhante serenata.
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Mangualde, 3. – Pelas 5,30 da manhã, vimos ao lado direito da estrella da manhã, o cometa de Halley, a olho nú, desapparecendo após o nascimento do sol.
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Torres Novas, 2. – No Rocio de S. Sebastião, no cimo d’esta villa, foi hontem visto, pela primeira vez, o tão falado cometa de Halley.
Seriam 3 horas da manha quando nos foi dado a ver, á vista desarmada, o cometa, na direcção do oriente, parecendo-nos que o seu nucleo é similhante a uma estrella de primeira grandeza, mas com pouco brilho.
A cauda do cometa pareceu-nos já muito maior que a do cometa Drake que ha pouco, vimos, tambem no Rocio de S. Sebastião.
Depois das 3 horas, e por mais de meia hora, vimos distinctamente o cometa, que agora se apresenta com mais brilho.
O cometa caminhava ao lado de Venus e a sua cauda parece uma enorme cabelleira.
Estamos certos que muitas pessoas se começarão levantando de madrugada para verem o tão falado cometa, pois não deixarão de assistir a tão bello espectaculo da natureza.
Por aqui ninguem se mostra receioso da passagem da cauda do cometa, junto á terra, o que infelizmente não succede n’outros pontos do paiz.
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Sardoal, 2. – Para admirar o tão falado cometa, muitas pessoas d’aqui teem perdido [o] seu pedaço de tempo, estas noites.
Não pertencemos a esse numero, por entendermos melhor, estar áquella hora em «valle de lençoes», do que receber as pouco agradaveis caricias d’um nordeste impertinente que ha dias nos vem molestando.
Sabemos, comtudo [sic], pelo que nos teem dito, que o cometa se vê pelas 3 ½ horas da manhã, sendo quasi imperceptivel a sua cauda.
Felizmente, por aqui, ao contrario do que succede por muitas partes, como temos lido, o espirito popular está pouco preoccupado com a passagem do cometa pela terra.
Isto se deve aquelles que se impõe ao povo, combatendo a crendice terrorista, que tanto se espalhou, fazendo-lhes comprehender que a sciencia pode precisar o dia, a hora, o momento da passagem do cometa, desconhece todavia se os resultados serão ou não funestos para a humanidade.
E aqui está a razão por que o famoso antidoto, descoberto pelo dr. Edwin não terá consumo algum.
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Lagos, 2. – Observámos hontem, pelas 3 e meia horas da manhã, o cometa Halley, que apparece ao oriente e que, a olho desarmado, se observa perfeitamente, apresentando a cauda, que aparenta ter um metro de comprimento.
A cauda não é, como se possa julgar, um traço estreito, e sim occupa, á vista desarmada um espaço de talvez 40 centimetros.
[NOTA - A realização do evento foi noticiada duas vezes pelo Dário de Notícias: na edição n.º 15970, de 1 de Maio (p. 3, c. 1-2), e na edição n.º 15971, de 2 de Maio (p. 1, c. 2); o texto desta conferência foi utilizado para o aviso que a Academia publicou no mesmo jornal, na edição n.º 15972, de 3 de Maio (p. 1, c. 7-8)]