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Texto da entrada (ID.1854)

Assumptos do dia

Superstição e pavor

A approximação do cometa de Halley traz preoccupado o espirito de muita gente, que já imagina ter chegado o momento decisivo da liquidação final do nosso planeta.

Na edade-média deu-se um caso similhante, embora com mais intensidade e com mais sinistras côres. Havia-se presagiado [sic] que o mundo acabaria no anno mil, e um terrivel panico estendeu o seu véo [sic] negro sobre a face da Europa. O fanatismo religioso é quem foi talvez, calculadamente, o propheta do mau agouro [sic], locupletando-se á custa do terror e da crendice popular.

No emtanto [sic] chegou a primavera do anno mil e as flôres desabrocharam luxuriantes, como de costume, celebrando o seu hymineu, e nas arvores sasonaram os fructos, quando chegou o estio. Decorreram já nove seculos sobre aquella epoca fatal, e a terra continua girando sobre o seu eixo e dando todos os annos o seu giro á volta do sol, sem o menor cansaço, sem o menor dispendio de força, automaticamente, como se effectuasse apenas uma viagem de recreio.

Nas tribus [sic] selvagens os eclipses eram sempre materia de assombro e alguns navegadores aproveitaram-se d’esta ignorancia para se imporem como semi-deuses, tendo na mão o segredo dos misterios celestiaes, á imaginação do gentio. Hoje cremos que os eclipses já são para elles factos correntes da vida astral.

É doloroso registar que entre os povos civilisados a superstição e a falta de conhecimentos – cousas correlativas – ainda exerçam a sua influencia deleteria, atribuindo aos cometas uma intervenção perniciosa no movimento cosmico. A experiencia já deveria ter demonstrado que a apparição dos cometas não é senão um phenomeno curioso e interessante, não referindo a historia nenhum facto occasional de sensivel desarranjo no nosso globo.

Desde o humilde pastor da Chaldeia, o primeiro observador dos astros a olho nu, até Camillo Flamarion a distancia é enorme e os progressos realisados pella astronomia são incalculaveis, sobretudo depois que a photographia se applicou ao telescopio. Apesar d’isso, é forçoso confessar que a sciencia ainda está bem longe de proferir a sua ultima palavra e que os seus incessantes estudos não darão ainda tão cedo a resolução dos problemas que nos apresenta esse espaço infinito, cravejado de corpos luminosos. A astronomia e a metereologia devem auxiliar-se com efficacia, explicando-nos um dia satisfatoriamente muitas cousas que ainda nos suprehendem e que não sabemos determinar com a necessaria antecipação, afim de nos prevenirmos contra os seus funestos effeitos.

Não custa a admitir, antes parece um facto normal, que os corpos celestes actuem sobre o nosso globo e que as irregularidades sismicas, meteriologicas [sic], ou que se nos afiguram como taes, se devam atribuir a essas causas. Parece-nos, porém, arriscado e até inverosimil suppôr que alguns phenomenos que entre nós se teem dado, tanto na atmosphera como no solo, se devam correlacionar com o proximo apparecimento do cometa de Halley. ‘Neste sentido conviria fazer uma propaganda, mostrando que não ha motivos para serias e afflictivas inquietações e que devemos esperar socegadamente a marcha dos successos astronómicos, porque de nada vale estarmos a phantasiar desastres imminentes, que se não baseiam em nenhum calculo positivo, nem sequer em probabilidades de algum peso. O perigo imaginario chega a ser peor que o perigo real e o melhor de tudo é desviar d’ahi o sentido, pois se a catastrophe vier, não serão os sustos prematuros que lhe hão de servir de remedio ou obstaculo.

A geologia ensina-nos que em epocas muito remotas se deram grandes cataclismos, que não anniquilaram a humanidade. Escapou do periodo glacial e salvou-se do diluvio, segundo a Biblia, por meio da arca de Nóe [sic]. Por conseguinte o passado póde servir de garantia ao futuro, e é de crer que d’esta feita a raça humana ainda não desappareça.

É curioso que sendo a morte uma coisa certa e incerta apenas a sua hora, tanta gente se apavore com o seu proximo fim. Fallecer d’uma congestão ou fallecer d’um desarranjo universal na machina da terra é tudo a mesma coisa, sendo bem preferivel a morte subita ao agonisar de muitos annos no catre da doença. Lembremo-nos da philosophia do marinheiro, a quem pediam que não voltasse mais a embarcar, porque os seus avós tinham sido devorados pelas ondas. E os vossos? Redarguiu elle, não morreram na cama? E se assim é, porque continuaes a dormir no mesmo leito.

Estamos convencidos que o Ente supremo não quererá descartar-se tão abruptamente da sua obra, pois a humanidade para elle deve ser um passatempo allegre, um entretenimento recreativo.

A contemplação da natureza, sem a comedia humana, seria um espetaculo devéras monotono e até insupportavel.


Referência bibliográfica

[n.d.] - "Assumptos do dia / Superstição e pavor" in Diário de Notícias de 6 de Maio de 1910, nº. 15975, p. 1 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1854.



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