Assumptos do dia
Cometas antigos em Lisboa
1577 – 1590 – 1607 – 1618
Mez andado de novembro no anno de [sic] graça de 1618, o velho Terreiro do Paço desta boa e leal cidade de Lisboa offerecia todas as manhãs o mais singular espectaculo. Ainda o dia estava em casa de Christo, a hora tão madrugada que de commum se não lobrigava viva alma, apinhava-se tamanho povileu que mal cabia apertado na vasta esplanada. Que fazia ali tanta gente tresnoitada em alvoroço e burburinho?! Queriam enxergar com os olhos avidos e apavorados o signal do ceu, o penacho de fogo que cada manhã o resplandecia, ao romper da estrella d’alva, sobre as alturas de Almada. As pessoas mais maduras recordam o signal de 1577, tão candente que mesmo sol fóra se divisava, tão agoirado que mezes depois D. Sebastião partia, e não voltava, para a sinistra jornada d’Africa. E o d’agora surgia nos mesmos dias d’aquelle que o ceu enviara a presagiar [sic] a morte d’um rei e a extincção d’um reino. Que mais desgraças estariam a cair sobre a cabeça esmagada deste povo, tão ao desamparo de todos os poderes do ceu e da terra?!
Aonde fui eu saber que em tal tempo Lisboa inteira, de madrugada, desertava da cama para o Terreiro do Paço, digo-o já. Contou-m’o um codice da Bibliotheca Nacional que, folheado por causa de outras investigações historicas, me surprehendeu ha pouco com a menção de antigas apparições cometares, ingenua e pittorescamente illustradas. Deixaria o achado outra vez recolhido ás estantes, se o vaivem tão falado do cometa de Halley não trouxesse o seu pico de curiosidade opportuna ás laudas arrevezadas do manuscrito e ás suas figuras infantis.
O livro de mão traz um cabeçalho comprido, ao mesmo tempo rosto e auto [sic], de que basta para intelligencia do contexto seguinte, que já não é pouco:
Memorial de todos os casos dignos de memoria, acontecidos n’esta insigne cidade de Lisboa, cabeça primas [sic] das Espanhas... muito para ver, saber e ler, começados desde a era de 1565, os quaes me pus a escrever... casos verdadeiros porque todos foram vistos pelos olhos de quem os escreveu e acontecidos em seu admiravel e espantosissimo tempo... memorial que escreveu e fes Pedro Rois Soares na dita cidade de Lisboa d’onde sempre residiu... Um memorialista, especie rara entre portuguezes, e um jornal reportado por um espirito chão e ingenuo, livre nas suas narrações e juizos de falseamentos impostos por presunções de sciencia ou de retorica! Uma chronica preciosa da queda da monarchia e do tempo dos Filippes, que desgraçadamente não teve até agora honra de lettras de fôrma, nem sequer a de ser aproveitada devidamente para historizar uma quadra tão notavel da vida nacional.
Entre as especies interessantes do memorial, illustradas por vezes a desenho mais ou menos correcto, figura a dos cometas observados em Lisboa; não falta nenhum dos dignos de menção ou pela saliencia do phenomeno ou pelas coincidencias historicas. De testada, o de 1577, celebre em cometographia, e sinchronico para nós dos mais tremendos cataclismos. Marca-lhe a apparição o Pero Soares a 10 de Novembro. Era «grandissimo em demasia, com o rabo tamanho que parecia de duas leguas de comprido»; «muito claro e resplandecente, apparecia logo á bocca da noite, nascendo sobre Nossa Senhora do Monte (Caparica?) com o rabo direito a Cezimbra». Punha-se ás 11 horas da noite, e assim saiu uniformemente até á vespera de S. Thomé em 21 de dezembro, durante ao todo mez e meio.
Os annaes astronomicos (1) rezam assignaladamente deste cometa, divisado na Europa entre 10 e 12 de novembro, tão desmedido em grandeza e brilho que começava de luzir ainda antes do sol se sumir no horisonte. Foi o primeiro cometa sujeito a observação methodica a que procedeu o grande Tycho-Brahe que diariamente, desde 18-11 a 26-1 de 1578, lhe calculou os elementos no seu famoso observatorio de Uraniburgo. Não admira que o nosso chronista o desse por findo a 21-12, pois que o astronomo se queixava a partir de 18 da difficuldade das observações pelo apagamento do astro.
Vigorava ao tempo a crença universalmente radicada de que o cometa era um portador de ruins novas – mortes de principes, guerras e flagellos dos povos. Attribuia-se-lhe um influxo pernicioso sobre os viventes por virtude astral e exhalações malignas. Os astrologos tiravam-lhe em horoscopio os presagios [sic] dos males provindos; era a cometomancia. A apparição do cometa de 1577 foi precisamente a occasião de um ensaio reaccional tentado por Dadithio e Erasto para derrubar o prejuiso dos cometomantes, só esmagado de vez mais de meio seculo depois pelo genio de Gassendi.
É de ver como o espantoso cometa havia de dar facil materia aos prognosticadores. «As pessoas doutas logo disseram que era mui ruim signal para a ida de el-rei á Africa», já então em activo preparativo; não encontravam menção escripta de outro que tal «senão quando Deus quiz destruir a Jerusalem». A perdição de D. Sebastião todas a profecias a certificavam á uma. O mesmo papa mandára a el-rei um prognostico tirado pelo «mór homem de sciencia que no mundo havia, Meste Hercules de Rovere boloniense», personagem que de momento não pude identificar. Pero Rodrigues [sic] declara ter visto e tido em sua mão o papel muitos dias antes da desventurada sortida.
O famoso astrologo annunciava que uma rainha havia de morrer n’estas nossas partes – e a veneranda rainha D. Catharina finava-se a 10 de janeiro de 1578. Predizia «ponto por ponto» a perdição da monarchia na jornada de «Africa», a morte d’el-rei, a morte e o cativeiro dos fidalgos que comsigo [sic] levava e de toda a sua gente». O agoireiro de má sorte assegurava que o signo d’aquelle cometa havia de durar passante de dezaseis annos, sempre «maligno e contagioso» assim para Portugal como para quasi toda a christandade; e com tanta verdade o maldito que os males foram maiores em dobro do que os presagiados.
A Cassandra de Bolonha não abalou o rei aventureiro, a que a loucura emprestava espirito forte contra agoiros de vulto ou de sabios. Preso nas tenazes da paranoia, não desferrou do intento; no dia de S. João partia para Belem e no dia seguinte levantava ferro para nunca mais volver, nem mesmo na manhã de nevoeiro suspirada pela fé dos sebastianistas.
Outro cometa surgiu em março de 1590 – da banda do norte, «fumaguento, escuro e grosso», durante oito dias. Caiu tambem sobe os olhos de Tycho que o observou desde 5 a 16 de março. Pero Soares não arranja para este signal passageiro outro mal que não seja o deixar de soprar vento de feição para a partida das naus da India que levavam o Mathias d’Albuquerque.
Nova apparição em fins de setembro de 1607 para parte de noroeste, á bocca da noite; «tinha rabo largo obra d’uma vara de medir», e apresentava-se toda a noite, no decurso de dois mezes. É nem mais nem menos que o mesmissimo personagem que temos actualmente de visita nos ceus, e até na terra, se se dignar tocar-nos com a ponta caudal – o cometa de Halley n’uma palavra. Observado por Kepler e Longomontano, Halley calculou-lhe a orbita, identificando-o com os de 1531 e 1682, reduzidos a um cometa unico em revolução periodica de 75 annos aproximados que não mais faltou ao prazo dado pelo astronomo que lhe acolchetou justamente o seu nome glorioso.
O chronista portuguez não lhe atribue d’esta feita nem mal nem bem; bem, puderia [sic] indicar-lh’o porque coincidia com a vinda do vice-rei Christovão de Moura, o celebre diplomata que tanto em conta mandava ter, para governar Portugal, o humor dos seus patricios.
* * *
O registro mais precioso, e esse até documental e grafico, é o do cometa de 1618. N’este millesimo dão noticia os annaes astronomicos de dois, o primeiro em agosto, o segundo em novembro; o do nosso chronista é este ultimo, por sua desconformidade e peculiaridades [sic] um dos mais assignalados entre todos.
A pagina commemorativa do phenomeno tem por cabecel uma estranha figura (Fig. 1); parecendo uma formula cabalistica ou uma inscripção em caracteres hebraicos, é nada mais nada menos que o debuxo de sete cometas que haviam saido de pancada «em Sevilha sobre a armada real» no mez de novembro. Está-se a vêr que a credulidade do bom burguez de Lisboa fôra lograda por algum ingenuo visionario que lobrigou na phantasia uma ninhada de cometas do mais estranho aspecto. E na allucinação não se desmarcava muito aliás, pois que o espirito insigne de Ambrosio Pareu, noventa annos antes, descortinava na nevoa cometar espadas em riste e cabeças degoladas,
Os olhos do nosso jornalista é que se não deixam cegar ao contemplar o phenomeno do miradoiro do Terreiro do Paço. Vê e conta clara e limpamente; os proprios desenhos, intercalados na descripção, são de mão inexperiente sim, mas croquis expressivos e veridicos.
O signal – «espantosissimo de grande e admiravel» indicia-se a 10-11-618, despontando «ás cinco d’antemanhã entre Almada e Alcochete». «Muito resplandecente» apresenta uma extermidade muito grossa e redonda, onde estava cravada uma estrella, incurvando-se depois e estreitando-se a terminar em ponta á moda de «alfange» (Fig. II). Esta ponta, voltada a principio para poente, virava ao terceiro dia para nascente e n’esta direcção se manteve até ao fim. A 17-11 «abriu-se a estrella, dando tamanha claridade que se podia enxergar uma alfinete, e a 20 deixou vêr «uma cruz muito bem feita». Foi-se «desfazendo na grossura e na claridade» até que de todo se sumiu no fim do mez, durando ao todo vinte dias.
Quer dizer – se não erra a nossa fraca interpretação – um cometa de espessa cabelleira e cauda convergente. Perante o schema [sic] figurado, seria admissivel a hypothese d’um cometa que tivesse a cabeça invisivel, afocinhada no horisonte, e só mostrasse a cauda estendida; mas a estrella engastada, com projecções de luz, parece indicar um nucleo e portanto uma cabeça. Encontro no livro de Guillemin uma figura, tirada ao depois por Hévelius, d’este cometa com nucleos multiplos, cabeça grossa e cauda lanceolada, que vem corroborar até certo ponto os dizeres e os rabiscos de Rodrigo [sic] Soares; o conhecido astronomo não ia em materia grafica assaz além do observador portuguez que aliás não entendia nem muito nem pouco em materia d’astros.
Parecerá fantasia que a figurelha do nosso homem se debrúe e se risque em linhas ziguezagueadas. O P. Cizat, observador coetaneo, diz que a cauda parecia como que agitada pelo vento e que os raios da cabelleira se projectavam e retrocediam; Kepler e outros viram jactos de luz e ondulações accentudas. Estes movimentos, ao depois observados n’outros cometas, explicam a figura e a noticia de Soares – cambiantes de incandescencia, forma cruciaes, talvez por sectores luminosos, etc.
O caso todavia não se cifrou n’isto, embora já passasse fóra do trivial. Quasi simultaneamente rompeu um outro cometa, e esta duplicidade de phenomeno não só presta um interesse excepcional á observação, como lhe assegura um valor positivo documental para a astronomia retrospectiva.
Deu fé do segundo cometa a 17-11, exactamente quando o anterior candeiou e «abriu a estrella». Apparecia mais para leste, tambem ás cinco d’antemanhã, mostrando «seu rabo muito grande como pavão» e na ponta fina «uma estrella resplandecente» (Fig. III). Foi-se adelgaçando o rabo, mas ao mesmo tempo alongando; «assim ia andando e saindo cada dia mais proximo para o meio do céu, até se pôr na altura do meio do céu, virando o rabo para o poente e d’esta maneira foi continuando até á derradeira oitava do Natal em que desappareceu de todo; veiu [sic] a durar 42 dias, ao passo que o parelho durou só 20. Como se vê, o segundo cometa affectava a fórma tipica de cabeça aguçada e nucleada, de cauda alongada e divergente. Pero Soares accrescenta que os dois cometas se divisaram em todo o mundo, até nas nossas praças da India; e nota que coisa assim jamais se viu, «nem em escripturas se acha que dois signaes tão grandes apparecessem nunca no céu».
O depoimento observacional do memoralista lisboeta deve n’este ponto cotejar-se com os textos collacionados pelos praxistas da historia comentar sobre a apparição de 1618.
No rol de Pingré vê-se que o cometa de 1618 está calculado por Halley que passou no perihélio a 8 de novembro e que a sua cauda occupava 104º com um comprimento real de 80 milhões de leguas. Era pois um cometa monstro, dos mais fenomenaes [sic] que á vista humana tem surgido. O rol, porém, não reza senão d’um, e o Pero Roiz [sic] fala redondamente de dois; estaria affectado de diplopia?
De nenhum modo; observou escorreitamente, e a prova é que, na Asia como na Europa, tambem outros viram e registraram os dois cometas, par a par no ceu, taes os nossos Jesuitas em Gôa, Garcia de Figueiroa, embaixador hespanhol, em Ispahan, Blancanus em Parma, e Kepler em Lintz – o mestre da astronomia moderna. Pingré na Cometographia faz n’este ponto uma salsada indestrinçavel, onde á força de identificar e apartar cometas, nem elle nem o leitor se entendem; o testemunho do Pero Soares, apesar de leigo, ajuda a achar o vencilho d’esta meada de cometas dos fins de 1618. Atravez das observações feitas na Silesia, na Bohemia, em Roma, e até pelo proprio Kepler, segue-se a pista d’um cometa, despontado a 10-11 e desapparecido a 30-11, datas que conferem exactamente com as de Roiz Soares. O outro bello cometa começa a apparecer na Europa nos ultimos dias de novembro, e foi observado até 20 de janeiro de 1619, por astronomos de cunho como Cizat, Longomontano, Gassendi, e principalmente Riccioli e Kepler que recolheram quasi todas as observações d’onde Halley extrahiu o calculo da orbita.
O grande Kepler n’uma intituição de genio suspeitou que os dois eram desdobradamente d’um corpo unico. Pingré mófa da hypothese do mestre a quem as observações modernas veem aliás trazer o mais demonstrativo apoio. Assim o cometa de Biela, na sua passagem de 1845, appareceu, quasi d’um dia para outro, rasgado em dois, a principio ligados como irmãos siamezes, depois rapidamente distanciados. Esta segmentação cometar foi notada egualmente em 1860 por Liais no Brasil.
Diversos observadores contrastam novas scisões, e estas multiplas n’um cometa de 1882; outro de 89 traz mais um exemplo averiguado de geminação (Gr. Encyclop.). A multiplicação opera-se pela divisão e polarização nucleares, processo que me faz lembrar a proliferação cellular nos seres novos.
Quem lêr a observação do Roiz Soares á luz d’este criterio interpetativo, capacita-se de que o cometa de 1618 é um cometa geminado – especie de que constitue o mais perfeito e grandioso exemplar. Aos sete dias contados desde a sua nascença conhecida, o nucleo «abriu-se» e é com esta scisão nuclear que se parteja pela ilharga do nascente o cometa-filho. A par primeiro, vão-se apartando a pouco e pouco, até que o cometa-mãe se some, continuando o seu rebento a luzir por muito tempo.
Signaes do ceu lhe chamava o vulgo. Signaes de quê? de pragas e catastrophes imminentes sobre os grandes e pequenos da terra. Cria-o o espirito supersticioso de todos, o proprio espirito dos sabios pela boca do Kepler que não temia confessar que os tinha por amostras da vontade e da colera divina[s.]
«Todos os doutores e mathematicos», noticia Soares, tiravam os seus prognósticos, e «todos á uma prognosticavam grandes desventuras». (1[= 2])
Não se fizeram tardar os castigos do doble cometa de 1618; e aqui o bom memoralista, ao contemplar o rosario das desgraças da patria, aggravadas pelo incentivo nefasto do signal de Almada, remata por uma phrase epica de simplicidade e justeza, verdadeiro sigma lapidar da historia preterita e jámais finda d’este povo: as desaventuras grandes que havia n’este cansado (!) Reino de Portugal, de que todos clamavam, sem haver emenda de nada e tudo ir cada vez de mal em peior [sic].
9-5-910.
Ricardo Jorge.
(1) Para o commento astronomico das noticias do Memorial servimo-nos de: Guillemin – Les Cométes et Bulletins de la Société Astronomique, que nos ministrou o dr. Schindler, amador d’astronomia; Pingré, Cométographie, obra classica que, por intermedio do sr. Fiei [sic] Viterbo, nos foi bizarramente prestada pelo eminente director do observatorio da Tapada o sr. Campos Rodrigues, a cujo saber pede venia esta erudição metodica a foucear em tal seara.
( 1[= 2]) Chega-me á ultima hora um maço de folhetos sobre cometas, principalmente os de 1618, por via da mão generosa do nosso bibliofilo Fernandes Thomaz. Estas apparições deram materia a uma pujante historia de cordel, representativa de ideias e costumes interessantes, que tenho de deixar para outra occasião.
Ricardo Jorge - "Assumptos do dia / Cometas antigos em Lisboa / 1577 – 1590 – 1607 – 1618"
in Diário de Notícias
de 13 de Maio de 1910, nº. 15982, p. 1 (c. 1-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1865.