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Texto da entrada (ID.1873)

CHRONICA DO PORTO

A cidade vê o cometa

Por uma d’estas luminosas tardes, encontrei, sentados no banco de um jardim, dois operarios que descansavam do seu trabalho, ao sol. Conversavam e pude ouvir algumas das suas palavras. Falavam, naturalmente, da carestia da vida, das difficuldades com que os chefes de familia pobres lutavam para amparar os seus, da escassez de trabalho, da crise que a vida portugueza n’este momento atravessa em todos os seus ramos. Em volta, saltavam e riam as creanças, sob a guarda vigilante das criadas: e dos canteiros floridos de rosas exhalavam-se arômas perturbantes. A certa altura da conversa, um d’elles disse para o companheiro, com um riso de incredulidade:

- Homem, deixa lá. Está proximo o dia dezoito de maio, e o cometa acabará com todos os soffrimentos.

O outro não recebeu esta affirmação como uma simples ironia; e foi pausada e gravemente que respondeu:

- Quem sabe! A gente é incredula, mas ninguem poderá dizer com certeza se o cometa fará ou não mal.

Afastei-me, e elles continuaram ainda a sua palestra de certo sobre esse cometa que está aterrorisando violentamente as classes menos cultas, muito embora se tenha feito nos ultimos tempos, pela conferencia e pela publicidade de noticias tranquilisadoras, tudo o que é possivel para socegar [sic] o seu pavor e infundir nos espiritos timidos uma dôce paz.

O nosso tempo é muito inconsiderado, e são os homens que levianamente concorrem para exacerbar os seus males physicos e os seus soffrimentos moraes.

Com effeito, para que haviam os sabios bisbilhoteiros alarmar a humanidade com as suas revelações sobre o cometa de Halley? Essas revelações eram puramente problemáticas; mas vulgarisar, porque não havia a minima vantagem em fazel-o. Se os seres vivos que povoam o nosso planeta tenham de perecer envenenados pelos gazes deleterios, seria escusado annunciar-lhes antecipadamente a morte, porque disso apenas resultaria uma inquietação profunda, dôres, angustias, allucinações, sem que de tal desiquilibrio derivasse utilidade. O sêr consciente da nossa época, desvairado, excitado pela sua luta aspera e amarga nas rudes batalhas da existencia, tem momentos em que maldiz a vida e anciosamente pede o descanço [sic] eterno, o repouso que nenhum barulho perturba, a inercia da morte; e nestes momentos de desespero é sincero. Basta, porém, que corra o menor risco, para que desde logo o seu amor pela vida renasça divinamente e o transfigure; e então não a quer deixar, procura os medicos, propicia Deus, faz promessas aos santos para que elles se compadeçam da sua desgraça e meigamente intervenham a favor do seu caso e advoguem no tribunal celeste a sua conservação.

A sciencia, porém, sempre alheada dos cuidados e das apprehensões humanas, para se concentrar exclusivamente nas leis que quer formular ou nos phenomenos que deseja esclarecer, não pensa no terror que as suas afirmações podem provocar em determinadas occasiões – e é por isso que os não esconde, mesmo que sejam nefastos á pacificação das almas. E foi justamente o que agora aconteceu.

* * *

Que interesse haverá em dizer aos povos, dominados de superstições e de temores, que a sua ignorancia ainda mais exaggera:

- A terra em que lidaes activamente, em que amaes e em que padeceis, atravessa um perigo enorme. De uma hora para a outra póde desapparecer!

Creio bem que uma prevenção desta ordem é perfeitamente inutil, porque se o cataclismo fôr inevitavel, não será uma simples phrase que ha de desvial-o.

O bom senso ordena que o homem apenas seja prevenido dos desastres que possa evitar facilmente. Mas, annuciar-lhe como certa a morte, é fazer-lhe perder a serenidade de que tanto carece para a sua alegria e para o seu triumpho.

A sciencia, soberbamente armada da sua superioridade, deveria pois falar sobre o cometa de Haley [sic] apenas para negar que elle ameaçasse a existencia terrestre, ainda mesmo que soubesse com segurança que o cataclismo era fatal.

Mas os sabios estrangeiros emmaranharam-se numa «verbiage» infindavel, contradizendo-se uns aos outros, phantasiando horrores que escapam á topographia dos circulos dantescos, e muitos jornaes, sempre avidos de fornecerem emoções violentas aos seus leitores, apressaram-se a levar aos confins do mundo habitado as impressões pessimistas e funebres.

Então, foi o tumulto, o medo, o desdem, especialmente nas populações rurares, que são governadas mais pelo sentimento do que pela intelligencia; e eis que em algumas aldeias do norte já se fazem preces publicas e já se organisam procissões de penitencia, para applacar as iras do Cometa – iras chimericas, porque nenhuma certeza sobre ellas existe.

Ah! como a ignorancia em muitos casos, é propicia á felicidade social! Se as populações não formassem da mechanica celeste o mais vago juizo, os cometas, ainda os mais terriveis, descreveriam nos espaços mysteriosos as suas luminosas trajectorias, sem que os pequeninos seres que povoam a crosta do globo se preoccupassem mais com elles do que – com os fogos de Bengala. Desde que disseram, porém, a esses seres que um cometa poderá, n’uma conflagração cosmica, aniquilar a terra, juntaram á sua dôr constante uma dôr nova e intensa!

* * *

Aqui no Porto, uma grande parte dos seus habitantes entrega-se agora á curiosa diversão – de ver o cometa de Haley, que fulgura no ceu constellado, com a sua claridade e a sua cauda radiante, das tres para as quatro horas da manhã. Muita gente não se deita, errando pelas ruas e indo, no instante opportuno, escolher nos pontos altos da cidade, o seu posto de observação. Outros, levantam-se pelas duas horas da madrugada, e arripiados [sic] de frio – porque a primavera corre fresca – lá vão contemplar o cometa famoso, que outr’ora, se a historia fala verdade, illuminou os turcos na tomada de Constantinopola. Devo dizer, porém, que o terror se dissolve, não deixando nas imaginações mais do que uma vaga apprehensão, depois que a imprensa começou a serenar os animos exaltados, com noticias tranquilisadoras, e tambem depois que foram largamente espalhadas a conferencia do sr capitão Mello Simas e a communicação da Academia das Sciencias de Portugal.

Mas, é, com effeito, um espectaculo pittoresco, este a que alludo.

Em certos sitios, como no passeio das Virtudes, na Serra do Pilar, nas Fontainhas, a agglomeração de curiosos, nas primeiras horas da madrugada é enorme, e lembra os arraiaes minhotos, pelo ruido das exclamações, pela confusão, pela gritaria. É claro que n’estes ajuntamentos apparecem – os inevitaveis espiritos fortes, os sarcastas, os incredulos, que n’este episodio exercem uma acção benefica, contribuindo para tranquillisar os mais fracos e os mais apprehensivos, pelas suas ironias e pelas suas irreverencias ao tremendo cometa. Porque esse cometa não passa indifferente ao commentario sardonico dos humoristas, que de cá de baixo lhe atiram, ao vel-o sugir no nimbo da sua luz branca, toda a sorte de satyras. O cometa é troçado, crivado pelas settas da zombaria, coberto de vaias, no meio do riso dos que o não temem. Desafiam-n’o até para o pugilato violento:

- Não fujas! Apparece! Has de encontrar homens!

E o terror sagrado empallidece: batem mais desopprimidos os corações. Fui já, movido pela curiosidade da observação, a uma d’essas movimentadas romarias; e o que eu ouvi dizer ao p[obr]e cometa, durante uma hora! Cheguei a ter pena d’elle, e recordei, com jovialidade, uma certa pagina das «Minas de Salomão», romance que Eça de Queiroz traduziu do inglez, e em que se fala d’um eclipse, occorrido no paiz dos cuanhamas.

John e os seus companheiros, para captarem a confiança dos selvagens e garantirem a sua vida, affirmaram que no dia seguinte fariam esta coisa prodigiosa: – apagariam o sol. Tinham lido a noticia do eclipse n’um velho livro de bordo.

Ora, no momento annunciado, no meio do rei dos Cuanhamas, a sua côrte e os seus guerreiros, elles, lá estavam procedendo a um complicado ritual: e ao fim de varias peripecias, quando o sol começou a ser invadido pela primeira linha de sombra, um dos europeus não se conteve, e desatou a bradar:

Anda-me assim! Deixa avançar essa rica sombra! Ah! meu astro, que estás um catita!

E John, em fralda e de monoculo entalado no olho direito, para um dos camaradas:

- Anda tu agora! Força! Até pragas servem!

É o que está succedendo, pouco mais ou menos, n’esta boa cidade, com o cometa de Halley [sic]. Porque, se ha quem o contemple com ferido pavor e silencio religioso, outros correm-n’o com vaias chocarreiras – e tambem com pragas. Sim! com pragas!...

João Grave.


Referência bibliográfica

João Grave - "CHRONICA DO PORTO" in Diário de Notícias de 16 de Maio de 1910, nº. 15985, p. 1 (c. 4-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1873.



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