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Texto da entrada (ID.1878)

Questões medico-sociaes

XCVII

A saude pelo ar livre

Em anthipathia e opposição aos beneficos effeitos do grande ar, o homem das cidades cheias, o chamado homem urbano e civil, parece hoje apostado a provocar e brigar com a natureza. Em materia de alimentação, alimenta-se mal, em oposição com o que a hygiene ensina – a sua paixão é pelo aperitivo, em vez do alimento – e alimenta-se a correr, não em doce pasto; amontoa-se nas cidades, onde passa uma vida como que artificial e nada saudavel; gasta-se num excesso de vida pelo trabalho ou pelos prazeres que o aniquilla; e com o que elle menos se importa é com o meio puro em deve viver, é em respirar um clima reparador e regenerador. O mais até onde se chega, quando se teem para isso meios sufficientes, é a ir passar ao campo uma temporada do verão. Mas, quem não tem meios de fortuna, e este é o caso mais corrente, atravessa, elle e a familia, o verão na cidade com resignação, e até quasi indifferença, pelos golpes que a atmosphera impura dos grandes centros a todos vae vibrando, como inimigo occulto e temeroso. Verdade é que não faltam promessas de que as cidades hão de ser dotadas de bellos espaços livres e de muito ar, de que chegou a hora final para os bairros insalubres, de que se projectam largas e bem rasgadas avenidas, e que portanto, na phrase do nosso Pero Caminha, applicada ao caso presente: tudo se torna em bem, bem tudo acaba.

Todavia, como isso não virá tão cedo, ou mesmo nunca virá, as doenças de consumpção directamente ligadas á falta de hygiene, de reparação organica, e até da falta do preciso descanso, irão continuando a sua obra de submissão e estrago. Porque esta, não compromette apenas a saude individual, compromette mais alguma cousa e da maior importancia. Ameaça a saude da raça e a sua multiplicação, fazendo das creanças que devem ser uma fonte de riqueza, pelo contrario, uma fonte de pobreza; e tendo sobre a vida dos povos e até dos seus dirigentes uma forte e perduravel influencia.

O que um dia de doença ou de mal estar não tem causado por esse mundo fóra nos chamados homens de governo? Conhecida é a phrase de Pascal a respeito de Cromwel [sic], tornando memoravel da força d’aquella pedrinha localisada na uretra do famoso protector da Inglaterra, e que lhe despedaçou o supremo poder e insuperavel valor. Um pequeno grão de areia bastou para matar o terrivel adversario do papismo e da realeza, e restabelecer o throno de Carlos 2.º. Tambem de Pascal é a anedocta de que Marco Antonio, o triumvis romano, perdeu a celebre batalha de Actium por causa de um incommodo nasal de Cléopatra [sic]. Verdade é que um outro escriptor nega o facto, attribuindo a derrota ás delicias d’esse amor que absorviam o temperamento morbido e ardente de Antonio, e, de modo algum, ao nariz da rainha celebre pela sua formosura e pelos seus crimes.

Em grande numero são estes exemplos da ligação directa da saude e a politica, mas, por agora, frizaremos apenas o caso de que a sorte das batalhas é mais ainda do poder de Esculapio do que da fortaleza de Marte. Ponham lá um general doente a commandar, e soldados doentes a combaterem, e verão de que lhes servirá a mão dura e a dura espada. Se até já se quiz provar que Napoleão perdeu Waterloo por estar adoentado no dia em que feriu essa decisiva batalha! A phrase de que a alma do guerreiro domina o seu corpo é grata poesia, a saude é que o anima e fortalece, como a doença o deprime e prostra.

Voltemos, porém, á nossa these especial.

Na ordem de ideias em que vinhamos de começo, saltam logo ao espirito de todos que se interessam por estes assumptos, as colonias escolares – da sineta ou sem sineta – como um poderoso meio de fortificar a saude das creanças pelos beneficios do grande ar. Não é esta a primeira vez a que no Diario de Noticias a ellas nos referimos com enthusiasmo. Em tres categorias principaes se podem agrupar as colonias escolares: as com internato, sendo as creanças installadas em casas proprias; as colonias urbanas ou semi-colonias em que, apoz a excursão diaria ao ar livre, as creanças voltam para as familias; e o systema da repartição das creanças por pequenos grupos, e por algumas familias que com permanencia habitam o campo e offereçam as garantias todas de seriedade e bom tratamento. Sob o ponto de vista hygienico, caso haja a necessaria vigilancia, bom ar e uma alimentação substancial, tanto faz a unidade da colonia, como a sua divisão por familias, que é o systema mais seguido na Dinamarca, Allemanha e Suissa. E, na verdade este genero de colonias infantis é o menos dispendioso. Todavia, o internato em casa propria, e sob as vistas de um pessoal solicito e competente, deverá ser o regimen que melhor assegure ás creanças debeis um certo capital de saude que lhes falta. Em Portugal, que eu saiba, a colonia familiar nunca foi ainda tentada, os outros systemas são conhecidos.

A Santa Casa da Mi[seric]ordia de Lisboa organisa, todo[s os an]nos, uma colonia maritima, [rasgado] do internato, obra que se d[eve á] iniciativa do conselheiro Pereira de Miranda, uma alma alva e generosa que a todos os infortunios procura dar benigna remissão. A Assistencia Nacional dos Tuberculosos organisa egualmente uma colonia maritima em que as creanças passam o dia na praia e regressam ás suas casas, estudada pelo medico illustre e desvelado, que exerce o logar de secretario geral d’aquella benemerita sociedade, o dr. D. Antonio de Lencastre. O jornal O Seculo tambem muito louvavelmente emprehendeu e realisou, no anno findo, uma obra salutar d’este genero. E, para as creanças pobres de Coimbra, do mesmo modo, é organisada annualmente uma colonia maritima que se estabelece por algumas semanas na bella praia da Figueira da Foz, e que teve como iniciador Bernardino Machado, esse homem de coração doce e excellente que tendo quatorze filhos – creio que me não engano – tem ainda logar para amar extremosamente os filhos alheios.

Não se esqueça, porém que esta questão tem um lado de estudo scientifico que, entre nós, não chegou ainda ao que precisa ser. Desde que se procura a cura climatica dos organismos fracos, carece-se de um attento exame medico para dar ás creanças o melhor clima segundo as indicações do temperamento e das susceptibilidades de cada uma. Nem todos são para tudo, nem o o [sic] mesmo clima pode aproveitar egualmente a todas. E, de par com a reconstituição da saude, ha, ao mesmo tempo, n’esta instituição, filha do amor ás creanças e de generosas influencias, um ponto de vista intellectual, moral e social, que se não deve desestimar. Sob a acção da atmosphera do campo, as forças augmentam e a nutrição melhora.

Por este modo, se regenera o organismo e se cria novo alento vital. E, na vida do mar ou na atmosphera da costa, as brisas maritimas teem uma forte acção excitante que até parece que no estonteam e embriagam quando as respiramos a plenos pulmões. Já houve mesmo quem as comparasse no brio e nas forças que dão ao peito exangue ao jucundo e espumoso champagne!

G. ENNES.


Referência bibliográfica

G. Enes - "Questões medico-sociaes / XCVII / A saude pelo ar livre" in Diário de Notícias de 17 de Maio de 1910, nº. 15986, p. 7 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1878.



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