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Texto da entrada (ID.1882)

Prognosticos de cometas outr’ora e hoje

O grande e horrivel cometa apaixonava as multidões (v. n.º de 13-5). Era o caso do dia – o pasmatorio ao lusquefusque e o ditote dos mentideiros da cidade, no Alto de Santa Catharina, Sequeiro das Chagas, Arcos do Rocio, Taboleiro da Sé, Remolares e lojas da rua Nova. Saíam-se da toca os sabios com suas observações e prenuncios contando ao publico boquiaberto os mysterios dos astros e os males em barda a succeder; ao mesmo tempo que editavam a magra e espuria sciencia, estes astronomos de pacotilha exaltavam a superstição e o panico das turbas para especularem com os folhetos de sua lavra. Vendiam-se como canella os prognosticos, apregoados nas ruas pelos cegos papelistas, ou pendurados a cordel pelas esquinas de movimento, ao lado dos reportorios e folhinhas, das historias da Princeza Magalona e do João de Calais, e d’outras folhas volantes que, como dizia o Tolentino:

No Arsenal ao vago viandante

Se vendem a cavallo n’um barbante.

Nada menos de quatro pliegos soltos tenho presentes sobre o bizarro phenomeno de 1618, todos saidos das prensas afamadas do Pedro Craesbeck, que os vendia na sua casa á Magdalena: Discurso em os dous phaenominos aereos de 1618 de Mendes Pacheco de Brito; Discurso sobre los dos cometas, por Pedro Mexia; Discursos astrologicos sobre o cometa..., de Antonio de Nájera; Tratado dos Cometas... por Manuel Bocarro Frances (coll. Fernandes Tomaz). O segundo e o terceiro intitulam-se Matematicos e o ultimo adorna-se com os qualificativos de licenceado, medico e astrologo. Firma bem conhecida nas letras d’então, este Bocarro – judeu de nação que, emigrado depois pela perseguição religiosa, se crismou lá fóra em Manuel Rosales, publicista de engenho vário na mathematica, na medicina e na lyrica – era ao tempo uma especie de Flammarion indigena, até na extravagante phantasia de illuminado e poeta. Por signal, que este judeu relapso tem o topete de offerecer o seu prognostico, taxado n’um vintem, nada menos que ao Inquisidor Geral do Reino.

Todos confirma am [sic] successão e coexistencia de dois cometas, tal qual o registrou o nosso chronista Pero Soares; os observadores de Lisboa categoricamente resolvem esta duvida historica, que o cometografo Pingré tão embaraçada deixou.

Quem mais cedo dá conta do primeiro cometa, é o Bocarro que o enxergou a 9 de novembro, ás 4 horas da madrugada sobre o horizonte «pela parte do oriente vernal». Tinha de grandeza apparente «duas lanças de comprido e duas varas de largo» no maximo; de luz, brancaço e transparente, pois que atravez se viam as estrelas. Na fórma e na incurvação assimilhava-se a um ramo de palma; assim o comparam e desenham o Bocarro e Mexia. Rompia de todo ás 5, e ás 6 apagava-o o clarão da manhã. A 28 de novembro entrou de desfazer-se rapidamente, mas embora pouco visivel ainda se notava a 22 de dezembro (Bocarro). Este sinal não merecce a todos a mesma attenção. Najera não lhe liga consideração por ser um «cometa improprio»; negava-se-lhe tal caracter «porque não tinha estrela» (Brito). Era, pois, desprovido de núcleo, ou antes tinha a cabeça occulta no horizonte, – hypothese de que já falei a proposito da nota do Pero Soares, e que os debuxos e a situação do sinal parecem confirmar. Só a enorme cauda apparecia, movediça e multiforme; Mexia só n’uma hora lhe notou quatro feitios, de buzina, d’açoite, d’alfange e emfim [sic] de palma, que conservou até ao fim.

N’uma carta de Cadiz, mandada ao «ministro da Real Armada» pintavam-lhe sete fórmas estranhas que o Bocarro piamente reproduz; eram estas a que o Soares copiou no seu manuscrito, julgando-as uma manada de sete cometas.

O segundo cometa, o genuino e completo, assignala-se a 18-11 junto ao primeiro um pouco mais a nordeste, apparecendo ás mesmas horas com um rabo em fórma de «açoite» ou de cauda equina, «ao parecer de 12 palmos» e uma «estrela na ponta similhante á do Mercurio». A 2-1-19 dão o espectaculo por acabado.

Muito punctiliosos, marcam os passos de cada cometa pela esfera, graus que media e constellações que compassava. A sua sciencia vai já até aos parallaxes, e o Bocarro mette-se mesmo no calculo das distancias. Desprendidos, ao menos em parte, das ideias peripateticas, petiscam com certo desgarro e competencia nas novidades da astronomia. Mas não se desatascam das doutrinas cabalisticas da conjuncção dos astros; esmiuçam quaes os planetas, Marte, Saturno, ou Mercurio, com o seu temperamento especifico, e quaes as estrelas benevolas ou malevolas, que presidiam á genese do cometa, rescendido das exhalações e corrupções, especie de postema resolvente das impurezas do ceu.

Descambam por fim na astrologia judiciaria – essa a isca dos dez reis [sic] e vintens que lhes pingava a credula freguezia. S. João Damasceno fazia crer que Deus dá os cometas em signal de algum castigo que tem aparelhado contra os homens. Eram signaes mandados para que as gentes se precatassem contra o mal e se emendassem dos seus pecados. E os astrologos desenrolavam o sudario fatidico que embrulhava este duplo cometa monumental de 1618, muito para temer porque trazia um «aspecto triste», má sombra a denunciar más entranhas. Isto de que cometas, pelos modos, é como os cães que pelo rabo dão a conhecer se estão contentes ou assanhados.

O rol é mais miudo, embora menos plangente, do que o das pragas do Egipto:

Mortes extraordinarias e arrebatadas d’algum monarcha, de principes, senhores e nobres – o cometa era carnivoro com preferencias sempre de prêa [sic] real; quedas e desprivanças de validos e poderosos – como quem diz hoje quedas de ministros; trabalhos entre a gente ecclesiastica e letrada;

Extorsões na fazenda dos pobres, viuvas e orphãos; ladrões d’estrada; quebras de mercadores com grandes enganos e infidelidades; pouquidade e ruindade dos fructos da terra; escassez de pescaria, menos de lagosta;

Desfloramentos de senhoras donzellas; perigos para as prenhadas, dores na bexiga, ulceras e chagas, principalmente no sexo feminino, terçãs, hemorrhoidas, lepra, cancros, enfermidades melancolicas e de ventosidades, etc.

E findavam com o bordão dos juizos do anno – Deus super omnia.

Estas pronosticações [sic] cerebrinas, meio delirio e meio burla, tarde cessaram em terra portugueza. Só meiado o seculo XVIII é que a verdade adquire fóros tão imperiosos que a revelam emfim ao vulgo; assim o denotam as folhas volantes saidas a proposito dos cometas de 1743 e 59. O P. Victorino converce [sic] de falsas as predicões [sic] astrologicas, e o capitão Caru manda que lhes não dê credito algum. O golpe-mestre descarrega-o o A. anonymo da «Chronologia dos Cometas» (1759) – opusculo vasado nos stictros [sic] moldes da sciencia e da razão, trabalho manifesto d’um astronomo de cunho. Prova á flux, n’uma série clara de proposições, que os cometas «não influem nem podem influir nos corpos terrestres», «não são annuncio nem causa de desgraças ou felicidades». E, como traço pinturesco de demonstração, traz a lista chronologica dos cometas, não com os successos infelizes, com os felizes, concomitantes ou seguidos ao apparecimento d’elles. Mera coincidencia e nada mais. Se o cometa de 1577 presagiou [sic] para nós a derrota d’Alcacer, a morte do rei, a extincção da corôa, foi um signal de ventura para a Hespanha e para Filippe que gulosamente nos abocaram. O astro traidor teve duas caras, uma chorosa de perda para aquém, outra risonha de ganho para além da raia.

* * *

Hoje em dia, se renascessem os prophetas baratos das folhinhas, por felizes se davam ao topar este cometa de Halley, de tão boa maré que não deixaria infirmar nenhum dos seus prognosticos mais negros. Sem entrar em conta com a miuçalha dos successos panicos de portas a dentro, tem já no seu activo fatal uma cidade americana derruida em terremoto e outra japoneza abrazada em incendio; quanto a victima de sceptro e corôa, o ogre dos espaços logo de ingresso se encheu com a «morte extraordinaria e arrebatada» do rei dos reis, do primeiro monarcha da christandade.

Os optimistas ingenuos do progresso dirão que ninguem sequer boqueja hoje desses influxos lethaes e que a era das superstições está definitivamente encerrada pelo imperio exclusivo da scienca positiva. Isso sim, puro engano. Substancialmente, não mudou o temperamento dos sabios, arvorados em oraculos, nem o das turbas; credulas e emocionaveis. E senão, veja-se o que ahi vae, á conta do cometa do dia.

O pasmatorio matutino é o mesmo; no espaço de tres seculos, o arraial apenas se transferiu, porque o cometa mudou de casa, do Terreiro do Paço para o Passeio d’Alcantara. Foi-se, é certo, a litteratura de cordel, mas trocou-se pela das gazetas, e circulam folhetos de occasião por signal que mais carêtes.

Os cometas d’outrora era de largo que nos faziam figas; amofinavam-nos lá da janella do firmamento, aberta sobre o valle de lagrimas. Este não se contenta com gestos altos de ameaça, desce á rua e arremette ás barbas da humanidade confrangida. Em tempo, entre mortos e feridos ainda escapava muita gente, tanto mais que os principes serviam de bode expiatório; agora vae tudo de escantilhão, varrido pela cauda impetuosa da baleia do infinito.

Quem são actualmente os astrologos, tão crús na predição que põem em perigo a sorte do mundo? Astrologos não, dir-se-ha; não póde assim appellidar-se a quem profere o veredictum da sciencia. Astrologos sim, dizemos nós – porque, sob o manto respeitado da sciencia, encampam quantas hipotheses e conjecturas lhes borbulham na cabeça, especulando com a curiosidade publica até ao charlatanismo. Os legitimos representantes da legitima sciencia, da que se austerisa nos rigores do methodo experimental, não pracejam predições vazias, não arriscam a dignidade do saber que professam, nem a auctoridade do nome; só dizem o que sabem, não palram do que ignoram, porque fogem do erro, da falsidade e da mentira.

Nada mais edificante que o desengonço dos preopinante sobre o encontro do cometa e seus effeitos. A craveira das distancias anda a encurtar-se e a dilatar-se de milhões de leguas; ora o rabo por mais que se estique, não chega á bola terraquea; ora roça-lhe apenas a face na borda do leque; ora a apanha em cheio no açoite velocissimo. Estamos sujeitos a um pontapé que porá á prova os tampos da terra, dizem uns; a simples phenomenos meteoricos ordinarios, tempestades e bolides, dizem outros; emfim o globo atravessará a nevoa cometar mais impunemente que o arlequim que fura na orbita d’um circo de cavallinhos o aro do papel de seda.

A materia caudal, ora rareia até ao imponderavel, ora se concreta em uranolithos capazes de nos metralhar á passagem. Emfim da mechanica passou-se á chimica; a analyse espectral catou aqui os gazes communs a todos os cometas, hydrocarbonetos e cianogenio; mas, a jogarem as escondidas, ora vae-se o cianogenio e vem o hydrocarboneto, ora reapparece o cianogenio.

E faz-se o quadro macabro da intoxicação por este gaz; pingado no ar pelo rabo do cometa. Quer dizer, os céus em vez de enviarem balões de oxigenio a esta humanidade deliquescente, querem empeçonhar-nos com balões de cianogenio.

Ora a espectroscopia póde indicar os gazes do nucleo, mas é muda sobre a cauda cometar. Porque, afinal de contas, esta famosa cauda, millionaria em leguas, não se sabe se passará de um puro zero. Um nada visivel, a chamava o Babinet; um simples effluvio electrico, desmesurado, dizem uns; ou ainda menos, dizem outros – a projecção dos raios solares, coados como num farol, atravez da lente monstruosa do nucleo – unica realidade material d’um cometa.

E aqui está por que meio mundo anda desinquieto, e anciadas [sic] as almas simples. No «Oravia» deixaram de partir 140 passageiros, e não sei em que aldeia do Minho celebram-se procissões de penitencia com seu sermão. Não me consta que em 1618 saissem os farricôcos e os flagellantes das penitencias publicas das grandes pragas. O prégador deveria de tomar como tema biblico o versiculo de Jeremias «A signis Coeli nolite metuere, quae timent gentes» – gentes medrosas, não temais os signaes do ceu! O profeta [sic] era chorão, mas falava verdade.

Estão vingados o Bocarro e o Mexia que se deitavam a adivinhar com o mesmo pseudo-poder dos Flammariões que andam na berra lá por fóra com pantominices que desdoiram a sciencia e o senso commum. Bem dizia o Voltaire que havemos de deixar este mundo tão tolo pelo menos como o encontramos. Tambem sem isso não era então o melhor dos mundos possiveis, como affirmava o dr. Pangloss ao pôr o pé nesta bonissima cidade de Lisboa.

14-05-10.

Ricardo Jorge.

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As diversas posições do Cometa

O diagrama que aqui apresentamos, extrahido d’um jornal astronomico americano – «Popular Astronomy» – representa graphicamente os movimentos, em relação ao sol, do cometa de Halley desde 20 de abril até 5 de junho, e da terra desde 2 de maio até 5 de junho. Estão n’elles apontadas as posições dos dois corpos celestes nas epocas mais interessantes.

A primeira d’estas é o dia 20 de abril, quando o cometa esteve na maior proximidade do sol (perihelio), na distancia apenas de cincoenta e cinco milhões de milhas – pouco mais de metade da distancia do sol á terra.

Em 8 de maio deu-se outra posição de importancia, pois foi então que o cometa se nos apresentou á maior distancia apparente para oeste do sol.

A mais importante data é 19 de maio. É este o dia em que pela madrugada a terra atravessará a cauda do cometa, se este tiver comprimento sufficiente para chegar até nós, durando esta travessia cerca de 5 horas. Como no diagrama se vê a terra e o cometa caminhar em sentidos oppostos.

21 de maio é o dia em que se espera que o cometa apresente para nós o maior brilho, sendo então visto já depois do pôr do sol.

Em 29 de maio o cometa estará na posição onde passou a terra umas 4 semanas antes. Se o cometa houvesse antecipado a sua volta estas 4 semanas, ter-se-hia cruzado com a terra n’este ponto, passando esta um pouco ao norte do cometa. Seria este um phenomeno altamente interessante para a sciencia, e dar-se-hia provavelmente um espectaculo maravilhoso para os habitantes do nosso globo que tivessem a boa fortuna de estar nos logares da terra onde elle se podesse gosar, espectaculo decerto muito menos perigoso que a passagem de um automovel ou d’um carro electrico em grande velocidade pelas ruas de grande transito.

O diagrama dá ainda as posições da terra e do cometa no dia 5 de junho, quando o cometa vae já muito distante da terra, tornando-se menos visivel.

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Veja-se 2.ª pagina.

[NOTA - Este artigo de opinião constitui uma sequência do artigo, assinado pelo mesmo autor, publicado na edição n.º 15982 do Diário de Notícias, dee 13 de Maio (p. 1, c. 1-3)]


Referência bibliográfica

Ricardo Jorge - "Prognosticos de cometas outr’ora e hoje" in Diário de Notícias de 19 de Maio de 1910, nº. 15988, p. 1 (c. 6-8). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1882.



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