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Divulgação Científica em Jornais



Texto da entrada (ID.1883)

O cometa de Halley

O perigo conjurado – Sãos e salvos – Parabens aos nossos leitores

Não resta a menor duvida de que tudo o quando se disse e escreveu a respeito do cometa de Halley, infundiu algum respeito no espirito publico em geral, e mais especialmente nos espiritos fracos, pois chegaram-se a manifestar-se alguns factos reveladores de uma fraqueza tal, que contagiaram os mais fortes forçando-os tambem a receios que, com difficuldade, dissimulavam.

Assim, não era raro ouvir-se hontem opiniões de pessoas que se fingiam desprendidas do assumpto e que, com um riso amarello, revelador da sua falta de coragem, tentavam metter a ridiculo os que francamente se encontravam receiosos [sic], aproveitando-se da sua loquacidade ou dos hypotheticos conhecimentos que julgassem ter da complicada e difficil sciencia astronomica para achincalhar aquelles que sincera e ingenuamente manifestavam os seus receios.

Como uma das resultantes d’este pavor, figurou a insignificante frequencia das creanças hontem ás escolas, porque as mães, animadas de um sentimento, talvez egoista mas digno de toda a consideração, não quizeram alheiar-se [sic] dos seus pequeninos seres, complementos da sua vida, com receio de que qualquer acontecimento grave viesse a dar-se e o terrivel momento lhes não permitisse segurar nos seus braços os pequeninos entes a quem deram a vida.

Felizmente, porém, tudo correu pelo melhor. O dia passou-se sem que se tivesse dado nada de anormal e á noite, pelo menos, até ao momento em que estamos escrevendo, quasi 4 horas da madrugada, não temos a registar, e, não sabemos bem se como recordação do cometa, senão uma chuva persistente, que de espaço a espaço se torna torrencial, formando cordas d’agua tão intensas que em poucos momentos transformam as ruas em perfeitos lagos: chuva d’agua, em vez da annunciada chuva de estrellas.

As ruas da cidade e especialmente os pontos altos, offereciam hontem á noite um aspecto deveras curioso, porque, apesar da chuva, o movimento que n’ellas se notava, era muito fóra do vulgar.

Depois da meia noite, findos os espectáculos, a população fluctuante das ruas augmentou consideravelmente, porque os mais animosos, aquelles que pensaram em morrer a divertir-se, applaudindo as tiples do D. Amelia ou as primas-donas do Colyseu, espalharam-se pelas Avenidas, indo depois encher os restaurantes, que tiveram hontem o seu S. Martinho.

A maioria, porém, da população lisboeta conservou-se em casa, mas afigura-se-nos que pouca gente se deitou antes da hora marcada para o momento critico.

E julgamos ver confirmada esta nossa supposição, pelo aspecto curioso que presenceamos de varios pontos altos da cidade, d’onde se desfructava um panorama interessante pelos muitos milhares de luzes que se viam atravez das janellas dos predios, dando a impressão de um grande panno de fundo de qualquer theatro, onde se representasse uma magica de effeito.

A chuva torrencial que caiu no momento em que nos deslumbravamos com o aspecto realmente empolgante que offerecia a nossa linda cidade, fez-nos recolher n’um restaurante onde por acaso se achavam reunidos em alegre repasto, quasi todos dos principaes elementos da companhia hespanhola que actualmente funcciona no theatro D. Amelia.

O café Madrid, onde a animação era grande e o ruido da chuva que caia era quasi que absorvido pelos sons de um piano que as mãos nervosas de um artista castigava sem dó nem piedade, tinha um aspecto extranho [sic].

Pareceu-nos interessante consultar alguns dos commensaes sobre o que pensavam do cometa, e por isso, ouvimos em primeiro logar a graciosa tiple Pilar Marti, a estrella do D. Amelia, que interrompendo o chocolate que ingeria a golos apressados, disse que o tomava com rapidez para ir deitar-se, porque, por motivos que confessava ignorar, se encontrava nervosa, o que sem querer ja tinha manifestado no decorrer do espectaculo.

Eulalia Zavala, a outra tiple da companhia, era de opinião contraria. Nem sequer pensava no cometa e affirmava que quando alguem lhe falava no terrivel astro, deslocava logo a conversa, para que lhe não aguçassem o appetite de se interessar por um assumpto, que poderia vir a incommodal-a tanto como á sua collega.

Antes de concluirmos esta noticia, devemos dizer que o movimento nos comboios hontem foi enorme, porque muitas pessoas fugiram para fóra de Lisboa, regressando á noite, maldizendo a chuva que os fez chegar a casa com os fatos alagados.

Terminando. – Agora estamos livres do astro aterrador, que segundo os mais celebres astronomos só nos visitará d’aqui a 75 annos.

Ás 4 horas e um quarto da madrugada, ainda se encontravam algumas centenas de pessoas na alameda de S. Pedro de Alcantara, a maior parte d’ellas embrulhadas em mantas e cobertores, indifferentes á chuva que cae por vezes.

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Por intermedio d’um nosso correspondente bem humorado, recebemos o seguinte:

Telegramma do Cometa

Espaço ethereo, ás 2,10’55” madrugada, 19 de maio – (Pelo telegrapho sem fios da linha do firmamento) – Ao redactor de serviço – «Diario de Noticias» – Passo sobre a capital d’este reino á beira mar plantado, a 9…

Nevoeiro denso impede poder ver bem claro lá por essas ruas fóra; entretanto, parece[-]me que Lisboa está muito mal illuminada e ha muito lixo na ditas.

Reparo mais, que os «restaurants» já estão fechados por fóra, mas lá dentro foliões ousados, saudam a minha passagem, entre libações enthusiasticas; saudes em «barda» – não fosse o reino dos «Varões assignalados», uma terra de vinho a 55 réis o litro!

Que alegria vinhateira!

Tambem apercebo que ha movimento nos clubs e centros de reunião!..

Parece-me até ouvir como que um ligeiro ruido harmonioso do «fado corrido» que vossês [sic] la teem.

Não é mau e differe bastante das «jotas e sevilhanas» da visinha Hespanha, por cima da qual passei ha poucos segundos e das cançonetas da França que ha um minuto vi de relance.

Fazem bem em divertir-se rapazes, porque o cancro da politica que os roe, se vocês não derem largas á sua espansibilidade nata... fal[-]os a todos ou ministros ou conselheiros... surumbaticos.

Tambem vejo que nos pontos altos da cidade d’Ulysses, ha alguns patetas de nariz no ar, para verem se me descortinam atravez da cortina do nevoeiro e saberem o que levo na cauda, se cyanogenio, se hydro-carboreto!

Ora bolas!

Como é que elles querem saber do que se compõe o meu rabo, que mede a bagatela de perto de dois milhões de leguas, (com tanta precisão de centimentros... como a «Legua da Povoa»), que vocês tanto elogiam e applicam para dar a ideia de coisa comprida.

Diga lá aos leitores que se as previsões dos sabios astronomicos de «meia tjella» se não realisam, é porque a patifa da Venus me traz doido da cabeça ao rabo, obrigando-me até a ficar quasi como a pescadinha marmota, depois de frita e... á portugueza.

Tranquillise-os tambem sobre os effeitos da minha «discutida sacudidela de cauda» e diga-lhes, que nem os mares saem dos seus leitos, nem o calor será tão forte que vaporise os mortaes, nem elles morrerão asphixiados.

Hão de ir... quando lhes chegar a vez e certamente muito dos que vi n’esta viagem, já d’aqui a 75 annos estarão mais reduzidos, que o «deficit» lá d’essa terra da «fava rica».

Voce será um d’elles... coitado!

Portanto... boa viagem e quando cá chegar ao Ether mande-me um recado

O Cometa da Lei

Um conferencia no lyceu da Lapa

Na sala de conferencias do lyceu da Lapa realisou, hontem, o sr. Eduardo Andréa, professor do 5.º grupo do mesmo estabelecimento de ensino, a sua annunciada conferencia sobre o cometa de Halley.

A assistencia, que era das mais distinctas, acolheu o illustre conferente com uma salva de palmas.

A conferencia

Terminada a manifestação de sympathia, o distincto professor começou a sua lucida palestra por um bem elaborado esboço da historia das mais notaveis descobertas e dos progressos da sciencia astronomica, referindo-se, principalmente, aos trabalhos de Newton, Tycho-Brahé e Kepler e, finalmente, aos notaveis trabalhos de Halley ácerca do celebrado cometa.

De uma maneira elegante e clara, explicou ao auditorio o modo de determinar a orbita do cometa e, referindo-se, á constituição chimica do nucleo, expoz rapidamente, os processos de analyse espectral.

Apresentou as hypotheses que a respeito da constituição da cauda, teem sido apresentadas, a da repulsão electrica e de Arrhaenina baseada na theoria magnetica da luz de Maxwel.

Ainda no campo das hypotheses procurou explicar a origem, existencia e fim dos cometas, e referindo-se á passagem da terra, atravez da cauda do cometa de Halley, preveniu o auditorio do que provavelmente succederia, baseando-se no que se póde hoje conhecer a respeito de outra passagens da terra pelas caudas de outros cometas em 1819 e 1861 procurando tirar aos seus ouvintes todas as illusões e terrores que porventura ainda podessem conservar.

Assim terminou o illustre professor a sua palestra, como elle modestamente a intitulou, e que foi a todos os respeitos uma notavel conferencia bastante apreciada e insistentemente applaudida.

A assistência

Entre a selectissima assistencia vimos os srs.:

Reitor do lyceu dr. Sá Oliveira, Adolpho Serra, Borges de Sequeira, dr. Leopoldino de Vasconcellos, Luiz Schwalbach, dr. Camara Reis, conselheiro Lino da Silva, general Lopes de Macedo, dr.Laranjo Coelho, Eça d’Almeida, Germano Rocha, major Ferrugento Gonçalves, Thiago da Fonseca, D. Maria Gonçalves, D. Domitilia de Carvalho, Paula Nogueira, dr. Almeida d’Azevedo Pereira Machado, D. Judith Pereira da Silva.

Tentativa de suicidio em Lisboa

Eduardo Luz, morador na rua da Oliveirinha, 15, 1.º andar, ouviu hontem boatos tão terroristas acerca do cometa, que tentou suicidar-se em sua casa.

Recolheu ao hospital de S. José, onde no banco, lhe foi feita a lavagem do estomago, voltando seguidamente para a sua residencia.

Quando o tratavam, no hospital, o Luz declarou o motivo por que tentára contra a existencia.

No concelho de Coimbra ha terror e scenas de pânico

Coimbra, 18. – Tem sido hoje o assumpto do dia a passagem do nosso planeta pela cauda do cometa de Halley.

Muitas pessoas não quizeram hoje trabalhar.

Para a feira mensal em Montemór-o-Velho, que se realisava hoje, não foi d’aqui ninguem.

Hontem em algumas povoações da freguezia de S. Martinho do Bispo houve scenas de terror, gritos e desmaios, por verem o horisonte avermelhado por effeitos do sol.

Muitas familias reunem-se hoje aqui para passarem a noite em convivencia animada. Varias pessoas tencionam ter ceias e ir depois observar o phenomeno, se por ventura alguma cousa se poder ver.

Não falta quem passe a noite de hoje para ámanhã em claro.

O «Noiticias de Coimbra», diz que o «Matin», aqui recebido hoje, informa que o eminente director do observatorio de Bourges, affirma que a passagem da terra pela cauda do cometa se devia dar na noite de 17 para 18 e não na de 18 para 19, estando por isso passado o supposto perigo.

A cauda do cometa, á medida que se approxima do sol, em vez de se conservar rectilinea, incurva-se em sentido opposto ao da sua marcha, isto é, no sentido do movimento da terra e d’ahi resulta a discordancia entre a hora da passagem previamente fixada.

Amanhã, ás 2 horas da madrugada, dá-se a passagem da terra e no prolongamento dos raios communs do sol e do cometa, facto que não trará nenhuma consequencia.

Esta noticia tranquilisou bastante o publico.

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Carregal do Sal, 16. – Tambem aqui se tem visto o tão falado cometa de Halley, preparando-se os musicos da philarmonica nova para o esperar no dia da sua paesagem [sic] mais junto a nós, no alto da Senhora das Febres, acompanhados de boas petisqueiras.

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Monchique, 17. – Hoje, pelas 3 horas da madrugada, ainda foi vista a cauda do cometa de Halley, apresentando-se n’uma extensão immensa.

O nucleo não foi visto.

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Valle de Cavallos, 17. – A ultima vez que vi o cometa de Halley foi na madrugada de 15, muito pouco tempo. Já bastante affastado do quadrado do Pegaso, seguia a sua rota

O tempo não tem consentido mais observações.

Recebi, um d’estes dias, pelo correio, em sobrescripto fechado, um cartão, em cujo fundo negro se destacam as figuras dos planetas.

No centro está o Venus, com os seus formosos cabellos – «pelos eburneos hombros espalhados». Não sendo uma copia impeccavel da de Milo, ou de Apelles, é, sem favor, uma «pretty girl».

Em plano inferior, – «façon Rostand» – vê-se o cometa de Halley, disfarçado em ave do Paraiso, com o bico voltado para Venus e cauda pendente.

Pela parte posterior e superior da cauda ha um grupo, formado pela Terra e seu satelite. Ao que parece, a Terra, influenciada pela Lua, para afogar paixões, lança a mão ao unico recurso que lhe resta.

Mercurio está a caracter, dentro do proprio annel, vae-se entretendo a devorar um petiz.

O sceptro que Jupiter empunha é que me pareceu desmedido.

Marte, arrogante, de arcabuz na dextra e catana á cinta, esconde a «caixa das ideias», com a carapuça symbolica.

Mercurio, lembrando-se de tempos idos, tenta elevar-se com os dois pares d’azas.

Por ignorar a quem devo a amabilidade da remessa, aqui deixo a expressão do meu agradecimento.

Festas em Torres Vedras

Torres Vedras, 18. – Esta villa veste galas na passagem do cometa.

Á hora a que escrevo, está tocando no largo da Graça a Fanfarra União Torreense.

Fala-se tambem na saida das Tunas do Gremio Artistico Commercial e dos Caixeiros.

Apezar do tempo estar mau, os foguetes sobem em todas as direcções.

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Em Penafiel

Penafiel, 18. – Na madrugada proxima, convergirão ao monte elevado do real santuario centenas de pessoas, fazendo-se ouvir a Troupe Musical Nove de Julho se o tempo o permittir, e outras pessoas teem retirado para junto de suas famílias com teem vindo outras.

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Santarem, 18. – Esta noite é a do Gallo, ninguem se deita n’esta cidade.

Todos, á excepção d’um pequeno numero de commodistas, aguardam os effeitos e consequencias do cometa de Halley ao fazer a sua passagem pelo nosso planeta.

A banda dos bombeiros toca no passeio da Rainha, das 9 ás 11 horas da noite.

O Gremio Ribeirense reabriu a sua kermesse, sendo abrilhantada pela charanga de artilharia até depois da meia noite.

O Club Ribeirense deu uma reunião de famíiias, grupos de gastronomos se associaram para lautas ceias.

Outros mais pacatos percorrem varios pontos da cidade até de madrugada, etc.

No estrangeiro

A anciedade, o temor e a alegria dos madrilenos

Madrid, 18. – Prestes a chegar o momento culminante da appreximação [sic] do cometa, augmenta a anciedade sendo o thema das conversações. O temor do acontecimento astronomico fez-se notar especialmente nas egrejas, aonde accorreu a confessar-se e a commungar uma multidão de fieis.

Entre as pessoas de mediana cultura não ha temor, e, pelo contrario, o cometa é motivo para pandegas, organisando-se por isso para esta noite uma grande quantidade de patuscadas.

Nos arredores da cidade, a gente ignorante mostra-se muito atemorisada e receiosa de que com o choque do cometa sejam arremeçados para fóra de suas casas, deixam-se estar pelas ruas.

Muitas familias preveniram-se com balões de oxigenio, julgando com isso neutralisar os effeitos do cyanogenio. – (Correspondente).

Um suicida

Valencia, 19. – O guarda vigilante dos molhes Valentina Miralls suicidou-se com um tiro, aterrorisado pelo effeito do cometa. – (Correspondente).

Os espiritos alegres divertem-se

Madrid, 18. – A noite apresentou-se boa, apenas com umas ligeiras nuvens.

As ruas estão animadissimas, tendo um aspecto proprio de carnaval. Desfilam verdadeiras comparsarias levando vidros de candeeiros e outros artefactos grutescos, com as cabeças cobertas de chapeus comicos no estylo dos astrologos.

Os tranvias conduzem para os arredores muita gente,

Experiencias

Á 1 hora da madrugada fez-se a ascensão do balão «Jesus», a fim de se fazerem observações sobre a maxima altura que poude attingir.

Parece que tambem se elevará o dirigivel «Espada» tripulado por officiaes engenheiros, levando tambem os astronomos com instrumentos. – (Corresppondente).

Requisita[-]se policia para o observatório

Madrid, 18. – Muita gente se dirige ao observatorio de Madrid a perguntar pormenores.

O pessoal do observatorio requisitou força de policia nr [sic] previsão de que a agglomeração do publico impeça o astronomo de fazer as experiencias. – (Correspondente).

Os guardas marinhas do «S. Gabriel» saudam suas famílias

Honolulu, 19. – Os novos guardas marinhas do «S. Gabriel» reunidos em jantar intimo saudam suas familias. – (Havas).


Referência bibliográfica

[n.d.] - "O cometa de Halley" in Diário de Notícias de 19 de Maio de 1910, nº. 15988, p. 2 (c. 6-7). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1883.



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