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Texto da entrada (ID.1884)

Chronica scientifica

A moda e a revolução scientifica na medicina – Resultado de algumas descobertas de physico-chimica sobre a arte de curar – Os colloides – A mycolisina do dr. Doyen – Emprego therapeutico das substancias colloidaes

Ha quem julgue a moda, esse arbitrio da phantasia sobretodos os nossos habitos, dando um quê de intelectual aos costumes, orientada apenas pela necessidade de variar, impera tambem no tratamento das doenças, o que não é para admirar, porque a medicina é uma arte de funcções muito complexas e como tal sujeita ao determinismo de causas diversas, aos caprichos que a elegancia lhe imprime ás vezes, quando outra razão não haja, para lisonjear o gosto de uma clientela mundana. O snobismo não deixa de lhe imprimir um caracter de modernismo. Consulta-se o medico da moda; toma-se o elixir da moda, como sob a influencia de um romantismo ainda não amortecido de todo, se padece da doença… da moda. Impõe-se além disso a necessidade de amenizar, pelo lado moral, os sofrimentos physicos, em que ha sempre uma parte subjectiva, dando ao tratamento, ao remedio, uma forma aceitavel, facilitando-o, tornando-o sugestivo e até mesmo agradavel.

O facto importante é que a medicina, socorrendo-se com perspicacia dos elementos valiosos que lhe fornecem as sciencias, utiliza no interesse da humanidade os progressos que nellas se fazem e a evolução constante nas idéas e nos methodos de investigação, já na physica, já na chimica e na biologia, nessa philosophia da vida, ainda tão cheia de mysterios a estimular a curiosidade insaciavel dos sabios. Ella não pode deixar de ser influenciada na sua pratica por estes progressos, no ancioso desejo de conquistar para a humanidade sofredora e enferma o bem estar e o prolongamento da existencia, que na edade moderna é ainda a preocupação dominante de certos espiritos, como se a lenda do Fausto, perpetuada pela imortal obra de Goethe, constituisse o natural anceio de todas as gerações.

Para evitar ou atenuar de um lado o excessivo poder toxico de certos medicamentos e auxiliar o efeito de outros, tornando-os de mais seguro emprego, a chimica excedeu-se a si propria nas myriades de combinações mineraes e organicas, que a actividade dos laboratorios incessantemente produz e a industria lança infatigavelmente no mercado, a maioria dos quaes, digamos de passagem, sem grande utilidade.

Foi necessario assegurar em muitos casos a pureza molecular de certos principios, julgando assim augmentar a sua força, libertando-os de substancias que estorvam a sua acção.

Entretanto a sciencia fez descobertas sensacionaes. Em vez de pesquizar novas substancias activas, entregou-se ao estudo da energia que as combinações e descombinações desenvolvem, á investigação de forças desconhecidas, de novas formas de actividade da materia. Apareceu a physica das radiações, descobriu-se a potencia radio activa [sic] de muitas substancias, a ionização e averiguou-se o estado colloidal de muitos corpos.

Todas estas cousas que parecem querer reconduzir-nos aos velhos processos dos alchimistas teem hoje a sua nascente e já promettedora aplicação na medicina. O publico começa a interessar-se per [sic] ellas; ellas deixam de pertencer ao dominio exclusivo dos gabinetes scientificos; principiam a entrar triumphantemente na pratica e a vulgarizarem-se sob o titulo reclamativo de novas medicações.

Interessa-nos hoje particularmente o que virá dentro em pouco a chamar-se o medicamento colloidal. O aproposito vem-nos de uma recente comunicação do dr. Doyen, notavel professor da faculdade de Medicina de Paris, o qual depois de ter feito deante do Congresso de Medicina Internacional de Budapest a revelação dos extraordinarios efeitos da introducção de corpos colloides no organismo, no tratamento das doenças mais rebeldes das vias respiratorias, de apparelho digestivo e da pelle, anuncia no Congresso de physiotherapia ha pouco reunido a desaparição dos cancros da pelle e das cavidades acessiveis, em resultado do emprego da electricidade, como agente coagulador e da medicação pelos colloides (mycolisina), operando assim uma revolução nos methodos curativos, á qual acresce a declaração maravilhosa de que a sciencia fica assim possuindo um meio de prolongar a existencia humana.

Os creditos de que gosa este ornamento da Universidade de Paris e a vasta ilustração que possue não permittem desconfiar de improviso da sua palavra, apenas atenuada pelo exagero proveniente da fé de inventor, que crê firmemente no exito dos seus processos. Por outro lado a aplicação daquelles agentes não é exclusiva do dr. Doyen e as experiencias repetidas com elles por outros physiologistas favorecem o confronto e até certo ponto a contraprova dos assertos deste abalisado professor.

A noção de corpos colloides ou colloidaes não é inteiramente nova na sciencia. Graham designou assim as substancias insusceptiveis de se obterem cristalizadas, considerando-as como constituindo um estado particular da materia, a que deu o nome de estado colloidal, em oposição aos corpos cristalizaveis ou cristaloides. Tanto para Grimaux como para outros biologistas mais modernos, é neste estado colloidal que a materia mais se aproxima do estado de vida.

A maioria das substancias quaternarias que fazem parte do organismo são daquelle grupo, que tem por typo a gelatina (as albuminas, a caseina, etc.) enquanto os cristalloides representam productos de desintegração das particulas vivas.

Examinando de perto as funcções mais intimas da cellula, reconhece-se que as reacções a que ellas dão ocasião se passam entre substancias colloidaes. Os fermentos soluveis elaborados por diferentes cellulas dos organismos vivos, as chamadas diastases, a pepsina, a maltose, por exemplo, não são cousa diferente dos colloides. A energia chimico-biologica destas substancias é consideravel e a sua acção é de um particular interesse medico, o que fez predizer, ha annos, ao dr. Iscovesco, que nellas se encerrava a therapeutica do futuro.

O professor Doyen estudou detidamente o poder que estes fermentos desenvolvem e particularmente a sua força destructiva dos germes morbigenos. A influencia curativa das leveduras sobre o furunculo e o antraz são hoje um facto assente, a base de uma therapeutica que já passa de nova, tanto é corrente; a explicação do phenomeno é que nos escapa desde o seu principio. O dr. Doyen entregou-se a desvendal-a e encontrou-a na extraordinaria acção dos corpos colloides, que imprimen [sic] ao organismo uma estimulação especial e o dotam de principios que aumentam a sua resistencia á acção de certos virus. Simplesmente o sabio professor generalizou talvez cedo de mais estas propriedades, estendendo-as á cura de quase todas as infecções. Foram, pois, estas experiencias que o levaram ao emprego da sua mycolisina, que etymologicamente definida vem a dizer – substancia capaz de desfazer germes – e que é na sua intimidade chimica um composto de colloides. Estes corpos não se dissolvem a bem dizer; ficam em suspensão nos liquidos em particulas infimas, para reconhecer as quaes seria preciso recorrer ao ultramicroscopico [sic].

Os colloides de que se serve o dr. Doyen são extrahidos de fermentos e teem a curiosa propriedade de provocar a rapida destruição dos microbios e das toxinas, excitando a funcção phagocytaria, isto é, dando aos corpusculos brancos do sangue (phagocytos) a superactividade necessaria para investirem, englobarem e desfazerem os microrganismos causadores de diferentes doenças.

Não se julgue porém que tudo está feito e que a medicina vae já ámanhã entrar na posse definitiva dos meios de curar radicalmente todas as afecções que perseguem o genero humano. O estudo destas materias é de uma enorme dificuldade e o apuramento do seu emprego, como methodo therapeutico eficaz, depende ainda de longa observação e experiencia.

Quem tenha seguido mais ou menos de perto os longos trabalhos da ímunisação [sic], a laboriosa génese dos sôros e vacinas, desses modos de curar ainda hoje em via de aperfeiçoamento, poderá dar-se conta das interminaveis locubrações a que os microbiologistas precisam entregar-se para dotarem a arte de curar de algum desses maravilhosos remedios, como são a vacina da raiva[,] o sôro anti-diphterico, dois daquelles que maior exito teem colhido da sua generalização e mais relevantes serviços prestam ás colectividades, remediando e prevenindo dois dos mais temiveis flagellos que continuamente as ameaçam.

J. BETTENCOURT FERREIRA.

Chronica scientifica / Por lapso saiu hontem no artigo desta secção que o dr. Doyen era professor da Faculdade de Medicina de Paris, o que ainda não se realizou, apesar de o notavel cirurgião possuir para esse effeito reaes merecimentos e o seu nome se achar valorisado por numerosos trabalhos scientificos geralmente apreciados pelos competentes.

Fica assim feita a rectificação devida em homenagem á verdade, o que de modo nenhum invalida o merito das descobertas interessantes deste autor, ás quaes nos referimos não para exaltar as suas qualidades aliáz [sic] conhecidas de investigador, mas no cumprimento do nosso dever de pôr os leitores ao corrente das inovações tentadas no campo scientifico e que são de interesse geral

Chronica scientifica / Por lapso saiu hontem no artigo desta secção que o dr. Doyen era professor da Faculdade de Medicina de Paris, o que ainda não se realizou, apesar de o notavel cirurgião possuir para esse effeito reaes merecimentos e o seu nome se achar valorisado por numerosos trabalhos scientificos geralmente apreciados pelos competentes.

Fica assim feita a rectificação devida em homenagem á verdade, o que de modo nenhum invalida o merito das descobertas interessantes deste autor, ás quaes nos referimos não para exaltar as suas qualidades aliáz [sic] conhecidas de investigador, mas no cumprimento do nosso dever de pôr os leitores ao corrente das inovações tentadas no campo scientifico e que são de interesse geral

Chronica scientifica / Por lapso saiu hontem no artigo desta secção que o dr. Doyen era professor da Faculdade de Medicina de Paris, o que ainda não se realizou, apesar de o notavel cirurgião possuir para esse effeito reaes merecimentos e o seu nome se achar valorisado por numerosos trabalhos scientificos geralmente apreciados pelos competentes.

Fica assim feita a rectificação devida em homenagem á verdade, o que de modo nenhum invalida o merito das descobertas interessantes deste autor, ás quaes nos referimos não para exaltar as suas qualidades aliáz [sic] conhecidas de investigador, mas no cumprimento do nosso dever de pôr os leitores ao corrente das inovações tentadas no campo scientifico e que são de interesse geral 

[NOTA - Na edição do dia seguinte, n.º 15989 (20 de Maio, p. 1, c. 2), O Diário de Notícias publicou uma 'errata' a este artigo de opinião, e cujo texto é aqui transcrito:]

Chronica scientifica

Por lapso saiu hontem no artigo desta secção que o dr. Doyen era professor da Faculdade de Medicina de Paris, o que ainda não se realizou, apesar de o notavel cirurgião possuir para esse effeito reaes merecimentos e o seu nome se achar valorisado por numerosos trabalhos scientificos geralmente apreciados pelos competentes.

Fica assim feita a rectificação devida em homenagem á verdade, o que de modo nenhum invalida o merito das descobertas interessantes deste autor, ás quaes nos referimos não para exaltar as suas qualidades aliáz [sic] conhecidas de investigador, mas no cumprimento do nosso dever de pôr os leitores ao corrente das inovações tentadas no campo scientifico e que são de interesse geral.


Referência bibliográfica

José Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / A moda e a revolução scientifica na medicina – Resultado de algumas descobertas de physico-chimica sobre a arte de curar – Os colloides – A mycolisina do dr. Doyen – Emprego therapeutico das substancias colloidaes" in Diário de Notícias de 19 de Maio de 1910, nº. 15988, p. 7 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1884.



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