Chronica do Porto
A noite do cometa
O bairro em que móro, nesta curiosa cidade portugueza, nunca foi excessivamente movimentado.
Faz-se ali uma vida de recolhimento e de interior, que se não preoccupa com os alaridos da rua: e mal dos ceus altos descem as sombras da noite e se accendem os candieiros da illuminação publica, todo o ruido exterior affrouxa e esmorece gradualmente, até que uma [sic] silencio profundo adormece as casas, os jardins e os arvoredos.
Apenas de longe a longe se vê uma luz tenue, amortecida pelos «stores» corridos, e ás vezes, nas primeiras horas nocturnas, o som de um piano tocando Schubert ou Schumann, fluctua no ambiente, como uma voz saudosa e distante, falando ás almas de mais fina sensibilidade de aspirações irrealisadas, de sonhos, de ideaes de arte, de belleza e de amor, e espalhando uma delicada nota poetica na solidão envolvente.
No emtanto [sic], quando na quinta-feira fui jantar, depois de demoradas horas de trabalho, o meu bairro pareceu-me ainda mais solitario e melancolico. O tempo estava triste. Chovia e nuvens espessas velavam o fulgor de ouro do sol.
Pelos passeios, apenas dois ou tres individuos, com as golas dos casacos levantadas, se dirigiam para as suas vivendas, onde os esperavam, naturalmente, os pratos de sopa fumegando entre flôres.
Julguei que esta tranquilidade apparente denunciava já o terror da approximação do cometa de Halley, que havia de varrer com a sua cauda luminosa o nosso pobre planeta e aniquilar toda a vida consciente, Pois não tinham os sabios dado o alarme do perigo?
Por minha parte, estava resignado. Eu nunca tive famosas audacias de coragem, e na minha qualidade de jornalista, nunca disse uma palavra que envolvesse uma ironia ao astro errante. Comtudo [sic], acceitava sem desesperos e sem impacientes sobresaltos a morte, porque se ella fosse irremediavel, não seria o meu desejo de viver ou a minha colera contra as forças naturaes que a evitariam. Placidamente raciocinava:
- Se essa morte tiver de vir, para que eu hei-se estar a amargurar as minhas horas derradeiras, exacerbando pela imaginação o terror de morrer? E se ella falhar, como falha sempre a sorte grande, nas loterias, não será tolice uma inquietação perfeitamente inútil pelo que houver de acontecer?
Assim pensava, e estes juizos, que não são subtis mas em que existe, incontestavelmente, uma pequenina migalha de bom senso, tranquillisaram-me.
- Não, cometa! – murmurei. Não serei dos que logo de madrugada irão cantar ou dançar ao som das guitarras ou injuriar-te cá de baixo, d’esta crosta terraquea rescendente ao aroma das rosas da primavera: mas esperar-te-hei em paz, lendo os meus philosophos e os meus moralistas, até que appareças. De mim não receberás nem aggravos nem festas sarcasticas: mas tambem não conseguirás perturbar a minha pacificação de espirito!
Fui jantar e – bondade de Deus! comi com appetite. Depois, á janella do meu escriptorio, mirei os meus canteiros de flores, as arvores do meu quintal cheias de ninhos e de mermurios [sic], o ceu cinzento, peneirando uma chuvazinha miuda e irritante, emquanto fumava um ligeiro cigarro.
Contemplando as fórmas e as côres, encontrei-me insensivelmente a meditar na catastrophe cosmica annunciada para breve: e então, uma dôr complicada de saudade commoveu-me. Realmente, deixar a existencia na mocidade e em pleno mez de maio, quando a paysagem era tão bella e uma graça idyllica e poetica anda esparsa no ar, não era agradavel! Eu nunca maldisse a vida, jámais com ella tive conflictos de idéas e de sentimentos que fizessem germinar no meu cerebro a necessidade sinistra de romper violentamente com o mundo. Pelo contrario, tenho-a amado com sinceridade e fervor na sua luta, nas suas paixões, na sua acção constante e progressiva, e entend[o] que ella é uma das maiores e mais sagradas alegrias do universo. Depois, ainda não vivi sufficientemente, não me saturei d’essa vida maravilhosa nem lhe dei tudo o que poderei dar-lhe! No emtanto, ahi vinha o cometa! Ah! mas o que me perturbava era a phantasia da cá ficar só ou mesmo com algumas duzias de creaturas. Para quê, se seria impossivel continuar uma obra prodigiosa, que ficaria interrompida para sempre?
* * *
Dias antes, e já pensando no terrivel cometa, tinha eu lido uma pagina fulgurante de Camillo Flammarion, que é um grande poeta e que quer passar por um homem de sciencia – d’essas gens précises como lhes chamou um chronista parisiense e que, no emtanto, se contradizem, sem precisão, sem justeza, sem coherencia d’ordem alguma. Flammarion falava no que succederia se a terra chocasse com um astro vagabundo, rolando com fragor nos espaços: e era admiravel de eloquencia, ao narrar os effeitos estupendos d’esse choque. Um cometa, entrando na atmosphera da terra, com a sua velocidade vertiginosa, inflammar-se-ia e o nosso planeta rebentaria com um estrondo que havia de ouvir-se – na propria eternidade.
Como uma granada que faz explosão, o globo que habitamos seria projectado em hastilhas ardentes para todas as direcções, reboando e ribombando: e dos pequeninos sêres audazes que formilham cá por baixo, de sobrecasaca, de «frack», de rabona, de blusa, de chapeu alto ou de chapeu molle, nada restaria: – nem memoria, nem fuudamento [sic]. Apenas um punhado de poeiras revoltas na ventania ou pairando nos espaços mysteriosos, sem significação e sem funcção nas correntes da mechanica universal! Como no hymnario tremendo dos dominicanos, todo o seculo seria reduzido a cinzas.
«Salvet seclum in favilla»
Poderia ainda succeder coisa mais dramatica: – o aniquilamento pelos gazes deleterios de que o cometa impregnasse o ar que respiramos e que é um dos elementos indispensaveis á nossa vida. Então, a terra continuando a sua trajectoria, seria um collossal cemiterio em que apodrecessem muitos milhões de cadaveres, dando pasto ás raizes, aos molles enlaçamentos das plantas, ás rosas de uma outra flora! Mas conservar-se-hiam as nossas bibliothecas inuteis, os nossos muzeus de arte, os nossos edifícios, as sumptuosidades da nossa architectura, as nossas fabricas, os nossos estaleiros, os nossos arsenaes, as nossas casas de commercio, os nossos machinismos, como testemunhas mudas de um mundo, onde tinham falado santos, combatido heroes, amado corações virginaes, pensando cerebros protheicos. Movendo-se incessantemente, a terra conduziria todas estas lembranças e todas estas preciosas reliquias, até ao momento em que do seu fecundo, inexhaurivel seio, pudesse resurgir [sic] uma outra vida consciente.
Superficialmente, nada pareceria mudado: apenas se interromperia a pulsação da existencia consciente, o rythmo de uma actividade que deixara de exercer-se, o movimento, o ruido de milhões de vozes confusas, gritando as suas felicidades como quem entoa hymnos de victoria ou rugindo os seus soffrimentos com odio fulgurante!
Confesso, porém, que esta perspectiva me aterrava! Antes a outra, a do aniquilamento por explosão da esphera terrestre!
* * *
Não quiz que o cometa de Halley roçasse com a sua cauda nefasta este nosso mundo perecivel, sem que mais uma vez contemplasse a rua e, portanto, a cidade com os seus habitantes. Accendi um outro cigarro e saí. Quasi ninguem pelos carros electricos, poucas pessoas pelas praças.
- É da chuva! – monologuei. Está na verdade, um tempo insupportavel.
Mas, nos pontos centraes havia, no emtanto, uma certa animação, os cafés e as cervejarias tinham clientes e um amigo meu, que me abraçou com a emoção de quem dá o seu ultimo abraço, contou-me que vinha do cinematographo e que ahi encontrara – o «poder do mundo».
Ás onze horas da noite, quando decidi regressar a casa, o meu bairro infundia pavor. Que funebre solitude! Sómente divisei ao longe o brilho branco de um sabre, que pendia do cinturão de um policia. Olhava os predios, e nenhuma claridade. Parava, por momentos, e nem o sussurro de uma conversa. Calados os pianos: e os carros electricos que deslisavam sobre os «rails», davam-me a impressão de tumulos ambulantes. Justos ceus! Mas o mundo iria terminar!
Sentei-me á minha banca de trabalho, abri um livro – um longo estudo critico sobre o pintor Fragonard – e esperei resolutamente. O cometa viria ás 2 horas da madrugada. Era meia-noite. Até ás duas menos cinco minutos li com uma paz de espirito que só os justos conhecem. N’este momento porém, puz deante de mim o relogio, fechei o livro, e senti então as torturas que deve sentir – um condemnado á morte, na hora em que o accordam do seu somno inconsciente.
- Vae chegar! Faltam apenas quatro minutos!…
Em breve todos os corações deixarão de pulsar! oh! vida! Comtigo [sic] acabam as ambições e as vaidades humanas! Tanta aspiração, tanto amor, tanto genio, tanta grandeza, tanta riqueza e tanta labuta para quê? Dentro em pouco o sangue gelará nas veias, arrefecerão as carnes, toda a belleza se corromperá. Homem, onde está a tua força capaz de levantar montanhas? E o que és tu n’este mundo, pequenina formiga inquieta, que nem sequer conseguiste encontrar durante quarenta mil annos, uma forma conciliatoria com que vivesses em socego com o teu semelhante?
- Faltam dois minutos! – disse-me o relogio.
Ahi estás agora, cheio de terror, com a certeza da tua mesquinhez, da tua insignificancia. Negaste tudo! Tudo demoliste – Deus e a ingenuidades [sic] nas almas candidas. O que lucraste?
- Falta só um minuto!
Um minuto! Que felicidade! Que longo tempo para viver ainda! Recordei os seres que me eram queridos, despedi-me dos meus livros.
- Um segundo!
Ah! ainda um segundo! Corri á janella. Eram duas horas em ponto. Mergulhei a vista na escuridão. Que negra noite! Que pavor! Largo tempo estive espreitando a atmosphera baça, muito admirado de ainda viver.
- Meu senhor! – murmurou uma voz.
- O cometa? – gritei exaltadamente.
- Não é! Sou o guarda nocturno. Deseja alguma coisa?
- Muito obrigado. Não preciso de nada.
Ás tres horas e cincoenta minutos, saí de casa. A manhã alvorava clara, festiva, lindissima. Para as bandas do nascente amassavam-se tintas fluidas de violeta e ouro. Tinha recuperado a serenidade e sentia-me feliz. O meu bairro continuava silencioso, mas ao longe a cidade vibrava de alarido. Ouvia mesmo guitarras d’amor e fados sentimentaes cantados para as estrellas.
O medo dissolvera-se: o mundo, como de costume, accordava para a sua lide contente e victorioso. Graças te sejam, bom Deus, per [sic] tanta ternura. Fui-me deitar e dormi como um bemaventurado.
Foi assim que o cometa passou no Porto!
João Grave.