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Texto da entrada (ID.1896)

Chronica scientifica

Ultimo aproposito do cometa – Sobre o risco de colisões entre os corpos celestes

Apezar de tudo que se tem dito e escrito ácerca de um contacto hypothetico do Cometa de Halley com a Terra, de larga publicidade que a imprensa deu ás opiniões dos sabios e entendidos e até de curiosos a esse respeito, com o louvavel, mas nem sempre bem succedido intuito de tranquilizar os animos aterrorizados, ainda não se dissipou de todo, mesmo dos espiritos medianamente cultos, a idéa, posto que vaga, de uma possivel catastrophe, a destruição total ou parcial da orbe, devida ao encontro delle com algum astro errante.

A admissão desta hypothese representa uma tendencia quase inata e vinda de seculos em que a crença era geral no fim do mundo; descende de uma conjugação de falsas noções astronomicas, physicas e geologicas, que a sciencia moderna se tem esforçado por substituir por outras de indole mais positiva e incomparavelmente mais acreditaveis.

Hoje comprehende-se que tal colisão de modo nenhum se possa realizar, atentas as condições em que geralmente se executam os movimentos dos corpos celestes, cujas leis teem sido reconhecidas pelos astronomos.

Assim como o homem fez Deus á sua imagem, ao contrario do que afirma a Biblia, dotando-o de qualidades e de instinctos que distinguem o ser humano e prejudicariam assim a essencia divina, tambem infere da facilidade com que, por uma desastrada combinação de massa com a velocidade, se dão as abordagens de vehiculos, navios, comboios e outros moveis, creados pelo seu engenho e dirigidos pela sua imprudencia, a possibilidade de um choque entre os astros de desmesurada grandeza e animados de velocidades inconcebiveis.

Não resta duvida de que, se entre estes, em que as massas são enormes e as velocidades chegam a ser inverosimeis, se desse um conflicto, resultante da demasiada aproximação de qualquer estrella, planeta, asteroide ou nucleo cometario, seria isso uma eventualidade desastrosa. Porém nenhum relato, nenhum acontecimento historico, nenhum sinal, por pequeno que seja, atesta na vida cosmica a verificação de similhante [sic] conceito, de modo a reconhecer a probabilidade de qualquer aproximação perigosa entre os diversos membros dessa numerosa familia de astros, cataclysmo imprevisto para os antigos, que tiravam dos astros os mais diversos augurios, que interpretavam a aparição dos cometas segundo a sua phantasia, como aparições, presagios [sic], efeitos de colera divina, mas não supunham da parte delles nenhum ataque directo, nenhum desastre material imediatamente atribuivel. Este receio de arrazamento produzido pela insolita deslocação de corpos celestes pareceu mais grave depois que os trabalhos de Copernico e de Kepler, dando a conhecer que o mundo, as espheras, em vez de sustidas pela bondosa e justiceira mão do supremo architecto do universo, gosavam de uma ampla liberdade no espaço, movendo-se independentes de sustentaculo de qualquer especie, caminhando com velocidades inexprimiveis. Ainda que elles se achem a distancias respeitaveis uns dos outros, para se não poder temer uma situação critica por causa delles, ha os cometas e as estrellas cadentes, os bolidos que se lançam atravez do nosso systema planetario em correrias aparentemente desregradas.

Felizmente os calculos astronomicos, partindo do principio da atracção universal, permittem serenar os mais receiosos [sic].

Todos os casos que podem ser discutidos pela mecanica celeste, evidenciam com suficiente exactidão a impossibilidade de similhante encontro, não oferecendo o mundo a que pertencemos exemplo ou circunstancia em que elle possa efectuar-se, quer por parte dos planetas, regularissimos nas suas orbitas, quer pelo lado dos cometas, em tão grande numero conhecidos desde remotos tempos, e nunca prejudiciaes ou sequer ameaçadores, como acaba de o provar a recente viagem do de Halley.

De todos os planetas a Terra é dos menos expostos a qualquer acidente desta ordem, ao passo que Jupiter é frequentemente visitado por cometas periodicos, contra os quaes o seu systema constitue uma especie de barreira.

Admitte-se quando muito que algum destes, menos feliz ou mais desorientado na sua carreira, tenda a precipitar-se no Sol e sofra, em virtude desta aproximação, fortes perturbações na sua marcha, no seu modo de ser e profundas alterações na sua constituição. Supõe-se mesmo, mas sem prova definitiva, que o cometa de Holmes fosse originado pela colisão de dois asteroides desse admiravel circuito dos pequenos planetas. Julga-se tambem que o phenomeno das estrellas temporarias tenha relação com algum destes mysteriosos dramas sideraes, em que podem produzir-se comoções tremendas.

Que nos interesse neste genero ha apenas a existencia das estrellas cadentes para fazer acreditar na probabilidade de certas colisões astraes. Estes corpusculos, que metralham o nosso planeta constantemente, se assim se póde dizer, dado como verdadeiro o computo de 400 milhões por dia, tornando-se incandescentes pelo attrito [sic] nas mais altas camadas do ar, consumindo-se, pulverizando-se, gaseificando-se pela combustão e cujos fragmentos minusculos veem incrustar-se no solo com uma força espantosa, são de ordinario tão diminutos, chegam até nós num estado de poeira cosmica tão dividida, que muito seria se, ao cabo de seculos, aumentasse em 2 centimetros a espessura da crosta terrestre, com uma especie de camada meteorica.

As analyses a que se tem procedido deixam entender a origem cometaria desses corpos mais provavel do que uma descendencia do Sol, da Terra, da Lua ou de qualquer outro planeta.

A coincidencia de certos enxames com a volta prognosticada de cometas periodicos, como sucedeu com o de Biela, mostra esses diminuitivos d’astros como o resultado da desagregação daqueles, cousa que é de uma opinião corrente entre os astronomos.

Quiz-se ver no nosso satelite o resultado de um pavoroso choque, que destacasse um fragmento enorme, em epoca de constituição do globo terrestre, ainda pastoso para que o movimento de rotação pudesse arredondar-lhe a forma, ficando o fragmento na esphera da atracção e sujeito ás mesmas modificações e transformações geologicas, mas esta theoria separativa não encontrou confirmação nem eco nos dominios scientificos. Sendo ainda a hypothese de Laplace, da condensação da nebulosa primitiva em materia fluida, mais tarde solidificada, a unica aceitavel, tendo presente o exemplo singular do anel de Saturno, que se julga será num futuro, embora longinquo, resolvido em satelites, sem que para esse efeito se requeira o seu fracionamento acidental, por alguma violencia inesperada entre os corpos celestes, é de crer que para a génese, decerto muito curiosa, da Lua, não houvesse necessariamente qualquer subita separação, que tornasse necessaria a existencia de uma colisão.

Este astro, por ser o mais proximo de nós, e pelo conhecimento mais preciso da sua superficie, prestou-se a exemplificar com as suas multiplas cratéras e anfractuosidades, essa concepção das colisões entre corpos celestes a que nos estamos referindo.

Houve quem supozesse [sic] serem esses acidentes da Lua devidos á incidencia de imensos bolidos, muito mais volumosos do que hoje se podem apreciar, os quaes deixassem na face do satelite impressões profundas. Os resultados de numerosas observações e experiencias (1) não confirmaram porém este modo de ver e continua a crer-se que a existencia dos circulos lunares seja o efeito de um trabalho interno, bem como as cratéras da Terra. A penetração de bolidos ou uranolithos, de dimensões colossaes, projectados das profundezas do espaço sobre o globo, a ponto de produzir efracções daquella forma, não tem razão de ser. O astronomo Puiseux, baseado no exame minucioso de photographias da Lua, indica que aquellas depressões e parapeitos levantados são como as montanhas que conhecemos de perto, o resultado de lentas modificações, de seculos e seculos, de modo que a quéda ou o choque de bolidos não é mais sensivel sobre um do que sobre o outro. Esta especie de astronomia comparada é pois mais tranquilizadora, quanto ás consequencias de um pretendido embate de corpos celestes, do que os [sic] imaginosas explicações theoricas, ás quaes nem a historia, nem a observação quotidiana, nem as investigações dos geologos conseguem dar razão.

J. Bethencourt Ferreira.

(1) Experiencias feitas por Meydeubauer, Althans, Alsdorf, com o proposito de reproduzir as condições que deveriam dar-se na Lua, sob a projecção de bolidos n’uma massa semi-solida e maleavel, tornam assimilavel pela photographia o aspecto d’este planeta com os resultados experimentaes.

Porém estes, devidos a um trabalho artificial, não reunem todas as condições suppostas para a producção do phenomeno, que requer uma camada moldavel sobreposta a um corpo resistente e elastico, para fazer ressaltar o projectil.

Não se fica sabendo, além d’isso o que este ficaria sendo. D’ahi o abando [sic] da theoria que tomou por base as observações do Gruithniseu.


Referência bibliográfica

José Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Ultimo aproposito do cometa – Sobre o risco de colisões entre os corpos celestes" in Diário de Notícias de 31 de Maio de 1910, nº. 16000, p. 1 (c. 5-6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1896.



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