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Texto da entrada (ID.1897)

Assumptos do dia

Questões medico-sociaes

XCVIII

APPENDICITES…

São hoje tão numerosas e tão repetidas as operações por motivo de appendicite que, sem duvida, ha um ponto de vista medico-social muito interessante em tornar conhecidas algumas affirmações de uma recente lição do sabio professor Dieulafoy, ácerca desta palpitante questão, lição proferida e publicada sob o titulo, suggestivo e quasi de protesto, de: «As falsas appendicites».

Começa o eminente clinico certificando a sua admiração e estranheza em vista da quantidade de doentes que estando simplesmente atacados de typhlo-colite são operados de appendicite sem o deverem ser, e do mesmo modo, a impressão de que este numero tende ainda para argumentar. Não quer elle dizer com isto que é contrario á operação em caso de verdadeira appendicite, antes a considera o seu unico tratamento racional e efficaz; tirar o foco appendicular toxi-inficioso que pode ser mortal, é, neste caso preciso, uma regra de bom senso que a experiencia unanime justifica e confirma. Mas, ao ver que a questão da appendicite saía do seu verdadeiro caminho, e que se pretendia calcar a clinica, não sendo, por isso, poucos os erros de diagnostico e os erros operatorios a que se davam explicações e excusas ás vezes phantasticas, entendeu chegada a occasião e a obrigação de falar e de falar bem alto.

Abre o professor Dieulafoy a sua preciosa lição com a noticia de 17 observações, incontestaveis e irrefutaveis de individuos operados de appendicite, nos quaes se verificou estar normal e absolutamente são o appendice, e continuando todos a ter crises dolorosas de entero-colite, exactamente como antes de serem operados. Em alguns destes casos, o diagnostico de appendicite e o proposito de se praticar a operação, foram mesmo mantidos contra o seu voto expresso e o do dr. Thiroloix.

Pois, em todos esses doentes, não existia appendicite, é claro, e a operação portanto não devêra ter sido effectuada.

Desconhece-se a typhlo-colite mucomembranosa com typhlite dominante, cae-se por isso no diagnostico de tendance e de voga, e resolve-se a operação. Logo, porém, depois da abertura do ventre, o diagnostico de appendicite recebe um formal desmentido, o appendice está bom, a typhlite é que não foi conhecida; o doente não deveria ter sido operado. Como salvar, então, a situação em face do doente e da familia? Ha recurso: dá-se a palavra ao microscopio, e apparece em scena uma novissima variedade de appendicite, a appendicite microscopia, que compõe tudo e salva da erronia do diagnostico e da operação desapropositada [sic]. Neste particular, exclama o professor Dieulafoy que presta a mais elevada homenagem aos histologistas, que aprecia e venera os seus trabalhos, mas, que considera babarea [sic] e ôca essa denominação de uma fórma de appendicite inexistente clinicamente, e que não póde deixar de ser tratada com o desdem que merece. Em frente de um appendice com todos os attributos de integro e são, e com o que a clinica nos revela e ensina, não deve esta rebaixar-se até estender a mão á histologia obrigatoria e indispensavel para aprender a diagnosticar uma appendicite. Ha, neste caso, ainda um outro expediente salvador da desastrada intervenção operatoria: é a folliculite.

Revira-se e replica-se então que o doente sem ter precisamente appendicite, soffria de uma folliculite que, do mesmo modo, reclamava a operação. Com esta lenda, que tem durado de mais, é tempo de acabar por uma vez. Essa hypertrophia banal e vulgar dos folliculos lymphaticos do appendice, ou quaesquer porções do seu tecido em evolução de esclérose, nem são a doença de que se trata, nem a folliculite por mais usurpadora que a deixem ser é capaz de tirar a sua qualidade aliás normal ao appendice, nem póde ser capa de falsificadas appendicites.

Quando muito, defendam-se com as difficuldades de se perceber logo assim a um primeiro exame se a riqueza em folliculos lymphaticos é um caso já pathologico, ou se pode estar ainda na normalidade dos appendices reconheciveis como normaes. Para este campo, vae tambem o dr. Orth, um grande nome da clinica de Berlim, o qual, de reforço a Dieulafoy, vem dizer que dez por cento dos appendices extirpados por diagnostico clinico de appendicite, e por elle examinados, estavam sãos e normaes tanto macroscopica como microscopicamente.

Na discussão travada na Academia de Medicina de Paris, e em que entraram, além do medico illustre de quem estamos extractando as opiniões, Cornil, Pinard, Reclus, Le Dentu, Reynier, Lancereaux e Richelot, disse este ultimo que diversas lesões se podem encontrar nos mais innocentes appendices que, por fórma alguma, justificam a operação ou della afastam a pécha de legitimo fiasco.

Dir-se-ha, todavia, que a operação influe favoravelmente na cura da enterocolite. Não ha tal, affirma Dieulafoy, depois da ablação do appendice, as crises e as dôres que caracterisam aquella doença, continuam do mesmo modo e com o mesmo cortejo de symptomas. Nada, absolutamente nada, de ganho.

Ha assim hoje uma grande familia pathologica, quasi uma legião; é a dos individuos que por motivo de suppositiva appendicite, quando sómente de typhlo-colite muco-membranosa se deviam tratar – perdem o appendice, e com a operação ganham apenas uma cutilada no ventre. É uma inscripção indelevel que rubrica para sempre essas victimas de um diagnostico mal feito, essa extensa familia de alanhados, segundo o baptismo administrado pelo eximio professor francez.

O povo perplexo e pavido não conhece, é certo, esta questão a preceito, mas sobresalta-se [sic] e inquieta-se por considerar esta doença singularmente frequente, em vista de se estarem operando tantas pessoas por essa causa. Pois, que se tranquilise; muitos operados, não tem appendicite. E, se assim falo, brada o dr. Dieulafoy, é porque, ha muitos annos, estudo este assumpto, é porque tenho evitado muitas vezes operações d’esta ordem já marcadas para muito breve em individuos que sómente tinham typhlo-colite sem complicação de appendicite, é porque já no anno presente tenho obstado a que sem necessidade re [sic] fossem abrir lanhos no ventre de umas quinze pessoas, mal condemnadas a esse penoso sacrificio.

Depois, na mesma memoravel lição, o sabio professor francez prova com a sua experiencia, e com a de Potain e de Pinard, que a appendicite não se segue tal por força á typhlo-colite membranosa; que os infalliveis resultados de muitas operações feitas a frio de pouco valem pois que algumas d’essas operações foram praticadas mais do que a frio por não haver tal appendicite; que as appendicites consecutivas a muitos estados morbidos, como hoje se diz, não passam de enganosos simulacros; e, por fim, remata com uma esplendida descripção da appendicite classica e da typhlo-colite membranosa, e com os dados precisos para o diagnostico da appendicite quando ella, na realidade, complique aquelle processo inflammatorio intestinal, inficcioso ou lithisiaco. Esta parte, porém, não vem para aqui, por que só aos medicos interessa e a elles só pertence. Esta questão, conclue Dieulafoy, carece de um certo reviramento; a clinica e a histologia assim o exigem. Dê-se a Cesar o que é de Cesar, e á appendicite o que é da appendicite. Mas, nada de a deixar usurpar direitos alheios.

G. ENNES.


Referência bibliográfica

G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / XCVIII / APPENDICITES…" in Diário de Notícias de 3 de Junho de 1910, nº. 16003, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1897.



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