Chronica scientifica
Roberto Koch
É preciso retroceder a uma edade [sic] da medicina em que o conhecimento biologico dos agentes infecciosos se achava ainda incompleto, em que a cirurgia não estava ainda na plena posse da defesa antiseptica e ficava muito aquem da tecnhica aseptica de hoje e em que a prophylaxia estava na dependencia principalmente de ideas [sic] e processos empiricos e se regia mais por praxes e preconceitos do que por medidas racionaes e pelo espirito positivo e pratico, para se medir bem o alcance das descobertas do insigne bacteriologista alemão que acaba de desaparecer, para se apreciar o imenso valor social da sua obra importantissima.
Não temos a veleidade de querer condensar no curto espaço de que dispomos toda a historia da evolução bateriologica dos ultimos tempos, em que o sabio teutonico desempenhou um dos principaes papeis, criando novos methodos, desenvolvendo ideas, descobrindo factoa de capital interesse, alargando a esphera de acção dessa fecunda sciencia que é a bacteriologia, a que a humanidade deve tão relevantes serviços, quer reconhecendo os microganismos [sic] pathogenicos, quer facultando os soros e vacinas curativas, ou fornecendo as bases de uma acção preventiva contra determinados morbos. Nem possuimos a competencia especial para entrar na apreciação critica dessa obra portentosa e utilissima, de que depende em grande parte a medicina moderna.
A chronica registando o passamento do illustre mestre, cumpre singelamente o dever de recordar a importancia dos seus trabalhos, que marcam era na sciencia e os generosos esforços em prol das sociedades, que elle tratou de defender e tornar resistentes ás invasões morbigenas de varia especie.
Robert Koch, tendo nascido em 1843, fez os seus estudos medicos em Goettingen de 1864 a 1866 e exerceu a clinica em varias cidades, tendo sido medico do Hospital de Hamburgo. Em 1872, sendo delegado de saude em Vollenstein, iniciou elle os trabalhos que o haviam de tornar glorioso, mesmo quando acerbamente discutido.
Nota-se esta circunstancia de alta valia na vida deste reformador, que logo atraz de Virchow vem iluminar a pathologia e a hygiene de outras luzes e dotar a prophylaxia de armas e processos mais seguros para a defesa colectiva.
Essa circunstancia foi a existencia de um laboratorio chimico em Wollenstein, onde elle pôde iniciar e proseguir [sic] as suas investigações bacteriologicas, pelas quaes elle se fez o continuador genial da obra imorredoura de Pasteur e de Lister. É aos seus laboratorios multiplos, entre os quaes abundam os de chimica, que, a culta Germania deve grande parte dos seus progressos materiaes e do seu prestigio scientifico; oficinas de intensa producção, donde todos os dias saem trabalhos mais ou menos notaveis, muitas vezes fecundos para o desenvolvimento industrial e comercial, que se liga desta forma indissoluvelmente ao extraordinario engrandecimento intelectual na nação.
Um acaso infeliz, a guerra de 1870, abriu um vasto campo de observação deante de Koch, já então senhor de uma technica experimental superior. São muitas vezes os acasos fortuitos, que fazem pôr em foco certos factos, certos phenomenos á primeira viste inexplicaveis. Aquelles que, seguindo a historia de medicina, tiveram conhecimento das varias theorias da infecção, antes do advento das idéas pastorianas, poderão formar juizo da novidade e da importancia das pesquizas do então pouco conhecido experimentador allemão. O seu trabalho sobre a septicemia, a infecção purulenta (1878), pode dizer-se que marca uma epoca na sciencia medica. Após este veio o estudo da pustula maligna, em que a originalidade do investigador se revela com maior franqueza. Efectivamente, foi em virtude dos novos meios de investigação creados por Koch que ficou estabelecido definitivamente a causa microbiana da doença carbunculosa dos animaes; fixou-se alem disso o modo de combater com exito a terrivel epizootia. Esta foi com certeza uma das mais brilhantes e uteis conquistas dessa bacteriologia, ainda juvenil então, desvendando por completo o processo vital da bacteridia do carbunculo, do que adveio a certeza nos meios de a destruir e de impedir os seus maleficios.
Estes trabalhos, que começaram a fazer retumbar o nome de Koch, abriram-lhe o logar no Instituto d’Hygiene de Berlim (1880).
Em presença desta tactica modernista, perscrutando a causa intima do mal, para a atacar e vencer rapidamente, por processos physicos e chimicos racionaes, como fica a perder de vista velha maneira, quase de todo empirica, como se lutava ha annos contra as molestias infectuosas!
Póde-se dizer que esta descoberta, completando as de Pasteur e Davaine, que primeiro examinaram no sangue dos animaes carbunculosos a famosa bacteria, contribuiu seguramente para o estabelecimento dos actuaes systemas de protecção contra as molestias epidemicas.
Ainda nesta phase da vida scientifica do eminente bacteriologista se mostra a influencia decisiva do laboratorio no progresso das sciencias e consequentemente na pratica defensiva da vida humana.
Em Berlim encontrou Koch laboratorios ricamente organizados, que lhe permittiram os meios de alargar as suas pesquizas.
Foi então que elle abordou o problema absorvente da tuberculose, conseguindo após laboriosas tentativas isolar o temivel bacillo que tem o seu nome (1882).
Esta memoravel descoberta, que constitue um dos gloriosos miliarios da carreira de Koch, foi apenas o inicio de outros trabalhos mais consideraveis, os quaes contribuiram grandemente para o adiantamento dos estudos da tuberculose, aos quaes elle dedicou uma grande parte da sua vida e da sua actividade.
A progressão destes estudos fez-se em tres períodos distinctos, que podem entender-se como tres phases diferentes da questão que ha tantos annos a medicina procura resolver a respeito da tysica.
Primeiro as delicadas e perseverantes diligencias para a cultura do agente microbiano desta mais que todas dizimadora endemia. Depois, com o intervallo apenas necessario para reconhecer o bacillo da cholera indiana no seu logar de origem, volta a ocupar-se do arduo problema da tuberculose e entrega-se devotamente á producção de um sôro curativo.
Desta afanosa tarefa saiu a chamada tuberculina, na qual, se não foi permittido encontrar a força curativa inicialmente procurada pelo seu autor, o exito por que almejam medicos e doentes de toda a parte, reside contudo um consciencioso e enorme trabalho de poderosa indagação, que desviada casualmente do caminho da pretendida cura, veio esclarecer o conhecimento da dificilima questão das imunidades e constituir um meio de diagnostico, cujo aperfeiçoamento é hoje muito aproveitado na clinica (1890).
Não faltaram a Koch, como a todos os grandes descobridores e inventores, como ao immortal Pasteur, as controversias acaloradas, as criticas acrimoniosas, os odios e os despeitos explodindo apaixonadamente, onde só devia reinar a discussão serena e criteriosa dos factos, para o descobrimento seguro da verdade.
Passado um outro interregno, em que sobresaem os trabalhos sobre a lepra e sobre a peste bovina, sobre as grandes epizootias e endemias dos climas quentes, as trypanosomiases e a malaria, torna elle a continuar os estudos sobre a tuberculose e toma-os sob um alevantado ponto de vista philosophico. Tratou então da dualidade da tuberculose, considerando a do homem diversa da dos bovidios, em presença dos resultados negativos da inoculação dos productos tuberculosos humanos na vitella e da dificuldade de transmissão directa da molestia entre o gado e o homem (experiencias de Rokitansky). Foi esta questão origem de interessantes estudos sobre a adaptação dos bacilos a diferentes meios, a atenuação e exaltação da sua virulencia de animal para animal.
Dissemos que o insigne bacteriologista reconhecera o microbio da cholera no seu logar de origem. Efectivamente, em 1883, quando uma nova investida do morbo amedrontava a Europa, Koch foi ao Egypto e á India em missão de estudo e desta sua viagem trouxe elle mais um achado de extraordinario valor, que redunda num incalculavel dom, com que veio ilustar a sciencia e tranquilizar d’ora ávante os espiritos ante o phantasma sempre eminente da propagação da cholera.
Não conquistou reinos, nem se bateu em expedições guerreiras; fez melhor do que isso. Trouxe da sua arriscada missão o convencimento de que a temivel doença era causada por um bacilo curvo (bacilo virgula) que pulula no intestino dos cholericos e fóra delle, nas aguas e roupas contaminadas (1883-1884).
Foi essa descoberta o ponto de partida da verdadeira prophylaxia da cholera, permitindo tratal-a como qualquer outra mlestia infectuosa, impedindo rapidamente a sua difusão pelo facil aniquilamento do seu microbio proprio.
A luta de Koch contra as doenças infectuosas pode dizer-se que foi incessante e manifesta uma extraordinaria actividade e resistencia da parte do sabio allemão, que ainda aos 60, limite de edade tão melindroso de vencer, mesmo para individuos de rija tempera, fazia prodigios no coração da Africa, para surprehender o mecanismo vital do agente da doença do somno e procurar o modo de impedir a sua marcha assustadora.
A obra ingente do falecido bacteriologista allemão não é uma obra de acaso, a advinhação casual da chave de um problema scientifico. É um encadeamento logico de resultados habilmente preparados por um espirito superior de investigação.
Em cada descoberta ha um ciclo completo, porque elle não descançou [sic] apenas no conhecimento deste ou daquelle agente especifico, deixando aos outros o cuidado de concluir o trabalho de descobrimento e alargar as suas consequencias.
R. Koch não se contentava com o isolamento de uma bacteria; reconstituia passo por passo o seu processo biologico, o modo como ella vive e como deve morrer. Ficava assim a tarefa facilitada para se aplicarem os resultados da sua laboriosa conquista.
No auge da notoriedade, depois dos interessantes trabalhos sobre a cholera, o imperador da Alemanha concedeu-lhe um valioso premio e logo depois foi nomeado professor da Universidade de Berlim. O governo francês reconhecendo os meritos excepcionaes do estudo que elle fez da epidemia cholerica de Toulon, deu-lhe a Legião de Honra.
Não se pode dizer que a sua glorificação fosse precoz, antes sobrevinda ao cabo de pacientes locubrações e prestantissimos serviços.
Só em 1903 elle foi nomeado socio estrangeiro da Academia das Sciencias de Paris, em substituição de um outro sabio que tambem exaltou muito as qualidades do genio alemão – Virchow.
Em 1905 ganhou o premio Nobel de Medicina, como se esta fosse a suprema consagração dos seus elevados meritos. Ainda hoje é de uso fazer-se a apotheose dos heroes que expõem a vida na exaltação de um idealismo patriotico e sem duvida quem sacrifica a existencia por um pensamento elevado é merecedor de veneração perpetua, mas aqueles que arrostam os perigos e se oferecem á morte, não uma mas muitas vezes, para engrandecer a sciencia e salvar myriades de vidas humanas são seguramente dignos da imortalização.
Koch deve por similhante titulo ser considerado como um dos maiores bemfeitores [sic] da humanidade.
Bettencourt Ferreira.