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Texto da entrada (ID.1923)

Chronica scientifica

Acustica das salas de reunião e de espectaculo

A architectura tem produzido de todos os tempos bellas obras, que se impõem á nossa admiração pela sua grandeza, como a basilica de Mafra, pela elegancia do seu lançamento, como os palacios de Veneza ou o campanario de S. Marcos, pela ousadia da sua construção, como o Duomo de Florença ou pela maravilhosa riqueza dos pormenores ornamentaes, como a Batalha, os Jeronymos ou a cathedral de Milão.

Nem sempre porém, observando as regras de proporção e obedecendo ao sentimento esthetico, foram respeitados todos os principios da physica, principalmente da acustica, em determinadas edificações modernas, em theatros e salas de reunião, na quaes succede muitas vezes não se atender ás condições de sonoridade das vastas quadras, quer se trate de lugares onde a voz carece de ser ouvida com toda a clareza e em todos os sitios, quer naquelles onde não simplesmente a palavra mas egualmente o canto e a musica instrumental teem de se fazer ouvir.

A acustica das salas de espectaculo não é ainda hoje um problema de facil solução e o defeito de muitas dellas a este consideravel respeito faz-se sentir em grande ponto, como ainda ha pouco tempo no recinto das festas do Trocadero, tão conhecido de todos que vão a Paris.

Muitas vezes são os efeitos desastrosos da infracção daquelles principios os indicadores dessa falta das construcções aparentemente irreprehensiveis e até admiraveis no seu plano architectonico.

A razão está em que se as bases scientificas são geralmente conhecidas, a sua aplicação experimental tem sido desleixada e postas de lado as minuciosidades da technica, cujo estudo é de um grande auxilio para a resolução satisfactoria desta dificuldade.

É necessario para este fim, conhecer praticamente o modo como os sons caminham nos espaços fechados, a influencia da forma, das distancias, da natureza dos materiaes na reflexão e na absorsão dos sons.

Exner, de Vienna, servindo-se de um microphonio [sic], funcionando sobre uma resistencia regulavel, observou que o eco reforça o som quando é separado delle por um intervallo inferior a 1/15 de segundo, o que corresponde a uma distancia de cerca de 20 metros.

Partindo do principio fundamental de que o som percorre 340 m. na unidade de tempo, reconhece-se que a diferença dos caminhos percorridos pelas ondas sonoras é de 34 m., por isso, que o atrazo do som reflectido em relação ao primeiro é de 1/10 de segundo.

No Trocadero, tomado como exemplo, a distancia de um ponto qualquer da sala á abobada por cima do orgão é de 17 m.; por isso, se percebe o eco. Em salas mais pequenas, em que se dá o eco pela reflexão em diferentes paredes. O ouvido exercitado percebe o eco a menos de 34 m. Assim para os musicos esta distancia é de 24 m., o que corresponde a menos de 1/15 de segundo.

A menos de 24 metros os sons reflectidos sobrepõem-se e ouve-se a resonancia. No caso do Trocadero, que é o mais exemplificativo, por estar experimentalmente estudado, os architectos entenderam e mal que o som se sujeitaria á mesma lei de transmissão das ondas luminosas e que a sala ofereceria tanto melhor acustica quanto maior numero de superficies interiores de reflexão apresentasse. Este foi o erro architectonico que tantas vezes se repete.

As abobadas que ficam por cima do orgão foram construidas de modo a enviarem os sons dispersando-os em feixes. O resultado dessa disposição foi simplesmente desastroso, porque se produziram ecos e resonancias muito pronunciadas, o que obrigou a usar de artificios para dar a este recinto as qualidades sonoras que lhe faltavam.

São muito interessantes e elucidativas neste ponto de vista as experiencias feitas pelos technicos para auscultação da sala e para alcançar o meio de obviar aos inconvenientes apontados.

Delles resulta que dois sons emittidos ao mesmo tempo e chegando ao ouvido com a diferença de percurso de 0 a 8m,5, produzem uma audição colorida, envolvente (reforçamento necessario). Uma das condições para uma boa audição é que os sons cheguem ao ouvido com 1/40 de segundo de atrazo maximo.

Se a distancia fôr de 8,m5 [sic] a 11,m33 ha um reforçamento util. O atrazo neste caso é de 1/30 de segundo. De 11,m33 a 17,m o reforçamento do som pelos retardados é toleravel (atrazo maximo de 1/20). Entre 17 e 23 ha a resonancia [sic] incommoda; percebem-se então os ecos inadmissiveis e a audição torna-se desagradavel ou impossivel (atrazo de 1/10 de segundo). Cae-se desta forma sob a acção do phenomeno de Exner.

Na Sala do Trocadero descobriu-se que 90 por cento dos lugares recebiam ecos da abobada superior ao orgão os quaes originavam perturbações auditivas, impedindo por algum tempo os concertos musicaes.

A verificação experimental destes calculos é um trabalho engenhoso que não é possível descrever aqui pelo seu caracter demasiadamente technico e pela sua extensão.

* * *

O reconhecimento das qualidades sonoras de uma sala comprehende o estudo da absorpção produzida pelas suas paredes.

Pode dizer-se que os diferentes materiaes teem um coeficiente de absorpção diverso sendo menor o dos vidros, o que explica o mau efeito produzido pelas vidraças, que reflectem quase totalmente os sons, fazendo uma resonancia excessivamente perturbadora. Os bancos ou palanques de madeira desguarnecidos teem uma consequencia analoga.

Destes trabalhos tira-se uma norma geral que deve ser respeitada nas edificações theatraes, de modo a evitar as demasiadas superficies de reflexão, principalmente fóra da scena. Eis porque se multiplicam na sala as ornamentações com o fim de aumentar os relevos e se utilizam as sanefas habilmente dispostas para interceptar as ondas sonoras reflectidas. Este foi o processo adoptado para remediar as resonancias prejudiciaes na referida sala das festas, interpondo na abobada um panejamento de tecido proprio para esse efeito e habilmente colocado. De um modo similhante se procedeu na Sala das sessões da Academia de Medicina de Paris, cuja sonoridade era egualmente má.

Sobre o palco podem, pelo contrario, facilitar-se as reflexões sobre o tablado ou sobre os senarios [sic], que de ordinario oferecem de preferencia superficies e materiaes de absorpção.

Muitas vezes, nas modernas salas de espectaculo, a visão briga com a acustica, por não ser facil favorecer uma sem prejudicar pelo menos em parte a outra.

Das experiencias efectuadas, conclue-se que não é ao feitio geral, eliptico, circular ou parabolico que as salas de theatro devem o seu poder acustico, mas sim á disposição cuidadosamente estudada das superficies de reflexão, o que se pode conseguir, segundo parece, sem prejudicar a linha esthetica, antes mesmo tirando partido dos efeitos decorativos.

A geral deficiencia acustica das grandes salas de theatro, de curso, de parlamento, etc., tanto em Portugal como no estrangeiro mostra que não é fácil realizar as condições exigidas, que é necessario modificar para cada caso particular.

Os gregos e os romanos construiram os seus theatros na fórma de hemiciclos, como ainda se vê em Orange e nas chamadas arenas de Nimes e de Béziers, executando-se modernamente nalgumas dellas peças especialmente adaptadas, cujo efeito optico e cuja audição, longe de serem prejudicados ao ar livre, parece pelo contrario ganharem pelo seu desenvolvimento em taes lugares.

Deve notar-se que os antigos tinham o cuidado de evitar ou preencher as reintrancias em que pudessem fazer-se resonancias prejudiciaes, Estas tentativas parecem rejuvenescer o theatro antigo e fornecem sem duvida deslumbrantes espectaculos. Essa amplitude não se compadece porém com a intimidade dos modernos dramas e comedias, a cuja representação tem de ser acomodado o espaço em geral exiguo para esta especie de edificações.

Ellas constituem ainda presentemente uma dificuldade intrincada, que merece bem a atenção dos constructores. Será este um thema de estudo de que deve sair o theatro futuro.

J. Bettencourt Ferreira.


Referência bibliográfica

José Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Acustica das salas de reunião e de espectaculo" in Diário de Notícias de 30 de Junho de 1910, nº. 16030, p. 1 (c. 4-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1923.



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