Chronica scientifica
Abastecimento de aguas potaveis – Escolha de nascentes e aproveitamento de aguas superficiaies – Depuração e esterilização por processos industriaes – Protecção das aguas
O abastecimento de agua potavel é um dos cuidados essenciaes para a manutenção de qualquer aglomeração urbana e pareceria uma banalidade dizel-o simplesmente, se não se soubesse que a maneira de prover a este abastecimento é um dos problemas de solução por vezes mais dificil e dos que mais interessam a [sic] vida das populações. Mesmo nas cidades que assentam á beira dos rios, essa dificuldade não deixa de subsistir, por ser inconveniente utilizar a agua desses cursos, ao menos sem a purificar por qualquer dos processos para esse fim instituidos. Em geral procura-se e prefere-se por boa razão uma nascente subterranea, que seja pura e agradavel. Em caso de necessidade, a agua desta proveniencia pode ser mais facilmente esterilizavel e com economia do que as aguas superficiaes.
A sciencia possue actualmente todos os elementos de reconhecimento das aguas potaveis, assim como os meios de as tornar suficientemente limpas para o consumo.
A chimica e a bacteriologia, tão adeantadas e seguras nos seus methodos delicados e exactos para a determinação da riqueza mineral e pureza das aguas, constituem uma valiosa aliança, constantemente armada para a defesa hygienica das populações. Sabendo-se pelos meios que estas sciencias facultam que uma agua é contaminada ou suspeita, esta nem sempre se rejeita por completo. Muitas vezes a technica industrial moderna fornece não uma, mas muitas maneiras de a tornar capaz de consumo inofensivo.
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D’entre os factos da mais alta importancia scientifica e social trazidos, pela intensa renovação do ultimo quarto do seculo passado, destacam-se dois que vieram revolucionar profundamente as idéas sobre a distribuição e aproveitamento das aguas potaveis. Um foi a descoberta, ou antes a serie de descobertas ácêrca do papel das bacterias sobre a transmissão das doenças infecciosas, em particular na vehiculação destas pelas aguas (origem hydrica da febre typhoide, cholera, etc.). A outra, foi o reconhecimento do modo como se opera a circulação das aguas subterraneas, atravessando os terrenos de diversa constituição. A geologia veio explicar como certas emergencias liquidas, consideradas como fontes de agua limpida e fresca, potaveis quanto á sua composição chimica, não passavam de resurgencias [sic] ou reaparições de aguas tendo já corrido em outros pontos, ou provenientes de infiltrações da chuva pelas fendas do solo, brotando na apparencia de lugares que estão longe da sua origem e acarretando por esse facto todas as impurezas recolhidas durante o seu trajecto subterraneo.
É em muitos casos esta a razão de virem inquinadas as aguas de certas nascentes e poços, cujo uso se torna portanto prejudicial á saude e deve portanto ser interdicto ou beneficiado pelos modernos processos de purificação. Verificou-se que os germes penetram por toda a parte e os seus esporos conservam a sua vitalidade durante muito tempo nos depositos humidos, melhor ainda nos reconditos tenebrosos das cavernas, cuja obscuridade protege a vida microbiana.
Tinha-se pensado que a passagem atravez de calhaus, cascalhos e argilas poderia eliminar ou atenuar esses germes. Esta persuação adquiriu força e credito de doutrina até que novas e, póde dizer-se, recentes experiencias bacteriologicas, vieram provar a insuficiencia desta especie de filtração natural. Reconheceu-se mesmo que após as chuvas as aguas excessivas punham em movimento as reservas estacionarias pela estiagem, trazendo ao de cima as impurezas e especialmente as bacterias, vindo por essa maneira polluir as resurgencias e tornando-se o principal factor etiologico de epidemias dothienentericas e outras, que muitas vezes se propagam em seguida ás primeiras chuvas.
Marcel Beaudoin e Lacouloumère, pesquizando os poços romanos de Troussepoil, segundo refere o abalizado especialista Martel, ahi encontraram depositos formados por restos de animaes domesticos, lamas ricas de microbios, que se tinham conservado num estado de vida enfraquecida, em espaços fechados, por um periodo de cêrca de 18 seculos.
Perdeu-se como a crença em um mytho a convicção de que a filtragem natural em terrenos margosos puzesse obstaculo ás inquinações das emergencias ou falsas nascentes, que só devem ser aproveitadas com todos os cuidados.
Está provado que nem todos os terrenos são proprios para exercer essa depuração benefica, e só os terrenos verdadeiramente filtrantes deixam transparecer as nascentes propriamente ditas e portanto de confiança, no ponto de vista da sua limpidez bacteriana.
Em presença de numerosos factos que a sciencia tem estabelecido indubitavelmente a este respeito, o problema do aprovisionamento de aguas torna-se de um interesse crescente e de uma dificuldade mais consideravel, para dar satisfação a todas as necessidades publicas, attendendo ao mesmo tempo a hygiene e a economia.
Como afirma com toda a razão o espeleologista Martel, é justamente no momento em que aumentam as populações urbanas e a necessidade do bem-estar geral exige, no interesse da hygiene publica, uma disponibilidade maior de agua potavel absolutamente salubre, que se verifica: 1.º, o perigo apresentado pelas aguas de má qualidade, como vehiculos das doenças mais graves; – 2.º, a incapacidade de uma grande parte dos terrenos em fornecerem aguas naturalmente puras e sadias.
Em muitas partes dá-se uma verdadeira luta pela agua, que é uma fórma não menos para apreciar de luta pela existência. Está da parte dos poderes publicos e das autoridades competentes prevenirem-se com todos os elementos de estudo e de investigação, para se colocarem a ponto de providenciar com discernimento e acerto a este respeito.
As observações e experiencias a que aludimos, mostram como um pequeno desleixo ou engano póde ser prejudicial á saude e aos interesses das colectividades.
Dada a escassez de agua em certas localidades, forçoso é ás vezes utilisar nascentes que são facilitadas por quaesquer circunstancias. Na pratica não se póde, em determinados casos, rejeitar uma agua subterranea que, se não é razoavelmente pura, é purificavel pelo emprego judicioso dos variados meios que a sciencia e a pratica industrial põem ao nosso alcance, para ir aproveitar as aguas superficiaes ou dos rios, constantemente polluidas pelos productos residuaes que resultam da actividade das populações.
No combate incessante contra as epidemias de origem hydrica, a febre typhoide principalmente, teem-se condemnado muitas aguas subterraneas, sem pensar que o abastecimento á custa das de superfície tem egualmente [sic] os seus perigos e inconvenientes, como acontece na capital francesa e em outras grandes cidades, forçadas a beber com a agua dos seus rios uma certa proporção da que passa pelos exgotos [sic] e vae polluir os cursos fluviaes que as banham.
Empenham-se os hygienistas em conseguir que as aguas residuaes sejam depuradas antes de se lançarem nos rios e ribeiras que abastecem as povoações.
A industria encontra-se ao corrente de systemas diversos, qual mais eficaz e aplicavel, de esterilizar perfeitamente as aguas de modo a proval-as totalmente dos agentes figurados nellas existentes. Aludimos sómente aos processos de esterilização de grandes quantidades, os quaes se podem dividir em quatro grupos: a) filtração pela areia não submersa; b) tratamento pelos agentes chimicos, c) ozonização; d) emprego dos raios ultra-violetas.
A segurança com que estes meios são aplicados permitte ao presente que se amplie o fornecimento de agua segundo as necessidades urbanas, com a captação de aguas fluviaes ou de lagos, que além de deverem ser criteriosamente escolhidas nos pontos menos contaminados, a montante quanto possivel das grandes aglomerações civis, serão devidamente purificadas.
O que se torna absolutamente necessario é que a aplicação desses processos de depuração chimico-physica se faça de forma completa, para toda a agua susceptivel de inquinação ou simplesmente suspeita e não sómente para aquella destinada a bebida, porque a sciencia medica prova que a propagação das doenças epidemicas se não faz apenas pelas aguas de alimentação, mas tambem pelas aguas de lavagem.
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O que a sciencia sobretudo evidencia no conjuncto dos estudos hydrologicos etá hoje realizados, é que a captagem e distribuição das aguas de alimentação carece de estar sujeita a um regime e a uma inspecção especial. A agua potavel é um patrimonio commum natural, de que todos devemos cuidar, como um dos melhores recursos, um elemento indispensavel de vida, sujeito alias a desperdicios e prejuizos, como qualquer fonte de riqueza, sendo portanto uma necessidade aplicarem-se-lhe os principios de economia, que devem conserval-a, senão amplial-a, nos limites do possivel.
Torna-se indispensavel uma protecção ás aguas, como a que se exige e com toda a razão para as florestas e que de algum modo se liga com aquella. Esta protecção é da maior importancia, porque se reflecte inteiramente na saude collectiva, e só pode tornar-se efficaz dado o conhecimento geral e intimo das aguas de cada região, estendendo sobre ellas uma vigilancia medica, guiada pelos conhecimentos que a geologia, a chimica, a bactereologia, a hygiene geral e a epidemologia proporcionam a quem se queira servir.
A fiscalização dos systemas de captagem, bem como o estudo geologico das nascentes e aguas subterraneas, são tão necessarios como a fiscalização e estudo do aproveitamento das correntes fluviaes, lagos, etc.
Emfim [sic] e quando mesmo essa disposição se torne dispendiosa, deve-se impedir por todos os meios legaes a inquinação das aguas, tanto superficiaes como subterraneas que tenham de servir para a alimentação publica, evitando por sensatas disposições que se lancem detritos e animaes mortos nos abysmos e fendas por onde se faça a absorpção de aguas que possa relacionar-se com as fontes, poços ou emergencias utilizaveis.
Um complexo de medidas judiciosas e assentes em estudos technicamente dirigidos e não de exclusiva proveniencia burocratica poderá de futuro conseguir o uso regular e sem prejuizo de um dos bens naturaes mais espalhados e infelizmente mais desleixados e prejudicados pelos proprios que deveriam ter todo o cuidado em salvaguardar esses bens communs.
J. Bettencourt Ferreira.
José Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Abastecimento de aguas potaveis – Escolha de nascentes e aproveitamento de aguas superficiaies – Depuração e esterilização por processos industriaes – Protecção das aguas"
in Diário de Notícias
de 12 de Julho de 1910, nº. 16042, p. 1 (c. 4-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1925.