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Mãos sujas

Penso que nos livros de medicina falta um capitulo que é preciso fazer de novo, e que deveria intitular-se: «Das muitas doenças que se podem transmittir e propagar pelas mãos sujas». E, certamente, que esse trabalho precisa ser extenso, tantas são as enfermidades que as mãos sujas nos podem causar, com a febre typhoide na dianteira, como se verá no presente estudo.

Já não bastava o perigo da transmissão da febre typhoide pela agua de bebida e pelos alimentos contaminados, ou pelo solo infectado, e eis que se dá agora importancia grande aos individuos sãos que transportam em si germens d’aquella doença, aos convalescentes e aos doentes de fórmas frustras ou abortivas, para a sua transmissão directa.

De modo que mais do que nunca se impõe a obrigação de andar na pista d’estes casos perigosos; essa obra será o complemento necessario e efficaz da moderna lucta contra a febre typhoide.

Que a falar a verdade, talvez, que este novo estudo seja singelamente a resurreição [sic] de um velho thema, o do perigo transmissivel das fórmas abortivas das febres infecciosas e tambem dos convalescentes das mesmas doenças, tão temido no tempo antigo. O que a bacteriologia fez actualmente foi accusal-o de novo para as affecções typhoides e paratyphoides, e precisar-lhe a natureza e os effeitos. Onde se prova ainda que a bacteriologia não tem supremacia sobre a observação clinica, mas que uma e outra são precisas para se integrarem nos progressos reaes da medicina.

Vejamos, porém, um lado interessante da questão. Os doentes d’esta especie, os convalescentes, os individuos já curados, os casos frustros, e emfim [sic] os individuos sãos que teem em si o bacillo da febre typhoide, serão contagiosos do mesmo modo e na mesma medida? Certo é que o bacillo d’esta doença é sempre perigoso em toda a parte e em todos os casos, onde se encontre; todavia, não se possuem ainda os dados todos para se julgar do alcance que na transmissibilidade da febre typhoide deverão ter esses porteurs mais ou menos chronicos de bacillos d’esta especie; não se conhecem muitos casos – antes, se julgam ser excepcionaes os de contagio interhumano – para um definitivo julgamento; é possivel que alguns factos attribuiveis aos individuos sãos que semeiam a febre typhoide tenham em rigor uma differente interpretação; e, em conclusão, não é licito por emquanto generalisar em demasia nas suas consequencias praticas a these radical, que a este respeito pretendem erigir os bacteriologistas.

Em reforço d’este parecer interlocutorio, vem o dr. Linossier lembrando que ás aguas de Vichy affluem, todos os annos, muitos doentes lithiasicos; que esta affecção tem por causa o mesmo bacillo d’Eberth, que é tambem o motor especifico dos estados typhoides e paratyphoides; e que nunca esta localidade ou os seus arredores teem deixado de se manter indemnes de quaesquer fórmas de tal doença. Põe, por isso, muito em duvida a nocividade habitual dos porteurs de germens eberthianos.

Além d’isso, o caso de que se trata é apenas um aspecto da grande questão dos contagios por individuos que transportam em si germens de varias affecções infecciosas, e sabemos todos muito bem que nas nossas cavidades naturaes existem diversos micro-organismos pathogeneos, inoffensivos para quem os tem e para os que convivem com estes individuos.

Talvez que o perigo não provenha afinal dos sãos, mas de doentes de fórmas frustas [sic] ou ambulatorias da febre typhoide, que passaram desconhecidas para o medico e para o doente, ou que foram consideradas embaraços gastricos, ictericia catarrahal, ou colicas hepaticas, sob aspectos variantes e equivocos d’aquella doença.

Depois, estes bacillos não são aptos para contaminar as aguas de bebida, ao passo que os bacillos dos doentes, vasados ou transportados nas aguas alimentares, são causa certa da contaminação d’ellas.

Logico é pois – porque a logica critica e instrumental tem em tudo o seu logar para bem dirigir o entendimento na investigação e na demonstração da verdade – estabelecer-se, no ponto restricto, que mais rasão devem ter aquelles que por emquanto querem registar o perigo, mas, não, exaggeral-o.

Tambem a defesa contra esses individuos sãos que semeiam a febre typhoide – o seu isolamento e desinfecção – são quasi impraticaveis, o que, por força, tem de a orientar sobretudo no sentido dos doentes e convalescentes, e no da vigilancia das aguas de bebida e dos alimentos para darem todas as garantias do seu valor commercial e da sua innocuidade. Os alimentos todos, com o leite na vanguarda, são dos vehiculos mais frequentes dos germens emittidos pelos typhosos.

E, para o caso dos que, sem serem doentes, transportam em si, eventual ou chronicamente, germens da febre typhoide, impõe-se sobretudo a vigilancia sanitaria permanente sobre todas as pessoas que manipulam substancias alimentares, em uma só palavra, sobre todas as profissões alimentares.

Esta verificação deverá abranger todos os que entram na manipulação e distribuição do leite, no trabalho da pastellaria e conservaria, os empregados dos talhos, padarias, e salchicharias, e todo o pessoal culinario. Estes individuos precisam dar todas as garantias de que não são suspeitos de poderem propagar as fórmas varias da febre typhoide, de que são pessoas de todo livrvs [sic] de bacillos typhicos.

Certo é, todavia, que todas estas medidas em que se confie na vigilancia permanente e activa, seja de quem fôr, e nas investigações do laboratorio, são mais ou menos theoricas e contingentes.

No caso de que se está tratando, o mais pratico e o mais seguro será lutar contra as mãos sujas.

Necessario se torna educar as creanças na phobia das materias fecaes, insistir em que o transporte de qualquer parcella estercoral á bocca é um gravissimo perigo, e accentuar bem que depois de qualquer exoneração intestinal, incluindo tambem a micção, ou que em seguida a ter-se tocado em roupa ou recipientes sujos, é necessario lavar sempre e bem as mãos, adquirindo assim e em todos os casos o habito da sua cuidadosa lavagem, que deverá tornar-se um uso, por assim dizer automatico.

Sendo incontestavel que nas dejecções humanas é que se contém o agente de contagio da febre typhoide, bem evidente se apresenta o perigo dos dedos que n’ellas tenham tocado, e a necessidade de um [sic] rigorosa desinfecção das mãos, sob a ameaça ou a imminencia dos casos d’esta grave doença. E, não só para o thyphoso ou para os que o tratam, para todos sem excepção, visto que as roupas, os recipientes e os alimentos maculados pelas fezes, disseminam por muitos modos indirectos as febres d’esta natureza.

Querem saber uma novidade? Então, ouçam:

É frequente, nas nossas casas, limpar e engraxar o calçado na cozinha, junto da meza onde está o leite, ou onde estão certos alimentos que não vão ao lume, ou ao lado das comidas já preparadas e que nos vão ser servidas.

Pois, se se derem a esta observação, hão de ver que, muitas vezes, é a mesma pessoa que limpa o calçado e prepara ou mexe n’esse [sic] alimentos, sem o cuidado de lavar as mãos.

Nos hoteis, não é raro ver os mesmos criados, logo de manhã, occuparem-se da limpeza do calçado dos hospedes e de lhes prepararem o petit dejeuner d’essa hora.

Este ponto precisa de algumas precauções.

O calçado deve ser limpo com esponja ou panno humido; as pessoas que o manipulam devem lavar muito bem as mãos antes de começarem qualquer outro trabalho, e sobretudo antes de tocarem nos alimentos; e todas as operações de limpeza e arranjo de calçado devem sempre effectuar-se longe das cozinhas, das dispensas ou de outros locaes onde se exponham ou se guardem alimentos.

A rasão [sic] é por que a lama do calçado póde transmittir a febre typhoide. Esta e outras doenças contagiosas. Tudo por obra e graça das

Mãos sujas

G. ENNES.


Referência bibliográfica

G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CI / Mãos sujas" in Diário de Notícias de 19 de Julho de 1910, nº. 16049, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1928.



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