A producção mundial da hulha e a extincção dos jazigos carboniferos / I
É desnecessario e seria ocioso desenvolver aqui o importantissimo papel que desempenha hoje o precioso combustivel em todos os paizes civilisados. Será ainda por largo tempo o carvão de pedra a principal, a mais importante e a mais economica das fontes de calor, da luz, da força motriz e até da propria electricidade, presentemente applicada pelo homem. A acção prodigiosa que a hulha exerceu sobre os paizes civilisados e a revolução a que deu origem na economia mundial, justificam plenamente a consagração que se lhe tem prestado e a denominação de mãe do progresso e da civilisação moderna.
A hulha representa um elemento quasi sem limites de transformações chimicas; pela destillação fornece o gaz de illuminação e uma importante parte das côres empregadas na tinturaria, e que modernamente levam grande vantagem sobre as tintas de origem vegetal e animal: como residuo dessa destillação, resta-nos o «coke», o carvão das retortas, o alcatrão, etc., o primeiro dos quaes desempenha importante funcção na economia domestica; emfim [sic], da hulha deriva um numeroso conjuncto de productos chimicos diversos, todos de importancia e de immediato aproveitamento.
Mas a sua mais importante applicação é sem duvida, a que reside na utilisação e transformação da poderosa energia calorifica que se liberta da sua combustão, que creou [sic] o vapor, a força motora, os meios rapidos de transporte e communicação, que alimenta milhares e milhares de fabricas, innumeras industrias, espalhadas por todo o globo, estimulando a actividade do homem, abrindo vastos horisontes ao progresso, á civilisação e á sciencia.
Porém esta applicação especial do cravão [sic] de pedra carece ainda de largo aperfeiçoamento; effectivamente, apesar de todos os cuidados, nós, hoje, apenas conseguimos transformar em trabalho mechanico util uma pequenissima parte da assombrosa energia calorifica da combustão da hulha; e muito mais fraca é ainda a parte dessa energia luminosa, apesar do papel importantissimo que hoje compete á electricidade, como intermediaria nessa transformação.
É facto que actualmente se tem muito desenvolvido o aproveitamento da chamada «energia hydrica», considerada nas suas tres formas – «hulha branca» (quedas de agua)[,] «hulha verde» (rios e outras correntes de agua»), e até «hulha azul» (marés); porém, apesar de todos os aperfeiçoamentos, nenhuma dessas «hulhas coloridas» póde ainda hoje lutar com vantagem com a «negra», e o caso é que o grande desenvolvimento que tem tomado a applicação d’aquellas não tem impedido que a producção mundial e o consumo desta ultima augmentem em proporções verdadeiramente colossaes, como mostraremos n’um segundo artigo. Isto não quer dizer que se desprezem essas immensas fontes de energia das «hulhas branca» e «verde», ou mesmo da «azul»; pelo contrario, sendo ellas caracteristicamente locaes, é da maior importancia que se aproveitem nos logares da sua origem, onde podem vantajosa e praticamente supplantar a importação do carvão de pedra. Deste mesmo raciocinio immediatamente se conclue que a energia hydrica não se póde obter em toda a parte, com facilidade, porque as quedas de agua se não encontram a cada passo, bem como os rios caudalosos, e sendo a conducção dessa energia sempre muito cara e dispendiosa, senão ás vezes impossivel ou pouco pratica, resulta d’aqui claramente a pouca economia existente na applicação d’essas energias naturaes, quando «por muito mais baixo preço» se obtem presentemente o carvão mineral.
A propria electricidade, cujas applicações são admiraveis e cuja influencia no progresso e na civilisação moderna é incontestavelmente decisiva, não tem realisado ainda hoje senão uma fraca economia no consumo do carvão de pedra; a producção de energia electrica subentende praticamente uma transformação da energia hydrica, ou, o que é incomparavelmente mais vulgar, uma transformação da energia calorifica da hulha, como facilmente se comprehende.
Consequentemente, o carvão de pedra é hoje, e por largo tempo será, o «substractum» ou fundamento original das principaes industrias, como sejam a dos transportes e muitas outras. Antes do final do seculo XVIII, epoca em que a hulha começou a ser definitivamente applicada, havia indubitavelmente a madeira; mas se a industria se tivesse restringido aos recursos do combustivel vegetal, ter-lhe-ia sido absolutamente impossivel ver realisado o maravilhoso e extraordinario desenvolvimento, que modernamente teem tomado todos os seus multiplos ramos e applicações.
Restam-nos dois principaes campos no estudo das energias futuras: o primeiro diz respeito ao barateamento e conversão pratica da energia hydrica; consiste na – transmissão da força a distancia.
Sobre este campo os progressos são extraordinarios; basta notar que ha dez annos era empreza, senão quasi impossivel, pelo menos, espantosa, o transporte de alguns milhares de cavallos-vapor a 30, 40 ou 50 kilometros de distancia. Hoje, o colossal e admiravel emprehendimento que representa o transporte a Paris da energia do Rhodano (425 kilometros), com uma potencia superior a 25:000 cavallos-vapor, póde dizer-se em vias de realisação. O segundo campo ficou aberto com a descoberta do precioso «radium», legada ao mundo pelos esposos Curie, a qual nos conduziu á «radioctividade», como sendo propriedade geral da materia, pondo-nos em presença d’uma immensa energia espontanea e constantemente libertada. A energia do radium é effectivamente gigantesca. Alguns exemplos concretizal-a-hão mais facilmente.
A velocidade das particulas de radium emittidas na sua dissociação attingem o fabuloso algarismo de 283:000 kilometros por segundo, e, apenas sob a forma de calor. O precioso metal liberta um numero de calorias bastante para elevar o seu proprio peso a 34 kilometros de altura.
Reduzindo hypotheticamente, a 100:000 kilometros a velocidade dessas particulas, e suppondo que se podia dissociar por completo um gramma de radium, applicando esses algarismos na equação das forças vivas, teriamos em resultado uma força de 6 biliões e 800 milhões de cavallos-vapor, capaz de fazer circular um comboio com 40 vagons, tarados em 12,5 toneladas cada um, sobre uma via horisontal de um cumprimento [sic] de 170:000 kilometros e com uma velocidade de 36 kilometros por hora!
Mas oh!, muito tempo decorrerá ainda antes que o homem realise a sua aspiração suprema de captar em seu proveito ao menos uma minuscula fracção dessa espantosa e gigantesca energia; estamos hoje apenas no começo de um tenebroso caminho que largo tempo se levará a percorrer.
Espiritos engenhosos e emprehendedores applicam-se, entretanto, ao problema do aproveitamento de outras energias naturaes mais faceis de captar e conduzir; o seu trabalho é, sem duvida, util, embora a phantasia predomine, mas se em sciencia o que hoje é phantasia póde amanhã ser realidade não é menos para desejar que sigamos os conselhos da prudencia, não confundindo essa phantasia com a dura realidade, a fim do não soffrermos para o futuro as mais crueis desillusões …
Então, até lá, o homem cava a terra, sem descanso, cada vez com mais ardor, roubando-lhe das suas entranhas o negro alimento das fabricas, dos «streamers» e das suas locomotivas, e nós vemos com espanto o numero representativo da producção elevar-se enorme e progressivo, ao mesmo passo que os algarismos do consumo particular de cada paiz o reclamam imperiosamente na sua ascensão veloz e continua.
Entretanto as differentes hulheiras esgotam o seu precioso combustivel, as novas bacias descobertas não compensam ainda pela sua fraca extensão a exaggerada extracção, a pouco e pouco apresenta-se-nos o problema da extincção dos jazigos carboriferos [sic], cada vez mais tratado sobre todos os aspectos. Esta momentosa e complexa questão, porém é muito mais diffícil de desenvolver do que se possa imaginar, e, podendo ser encarada por diversas formas, exige um particular cuidado na sua exposição e no seu exame.
Para penetrarmos bem o asumpto [sic], como tencionamos fazer, e a fim de avaliarmos de modo perfeito e claro a situação em que estamos collocados e a que diz respeito o problema, precisamos, em primeiro logar, saber quaes são os paizes hulhiferos, qual a importancia da sua reserva carbonifera e consequente exploração; depois, separadamente, qual o algarismo particular da producção desses paizes, desde uma determinada epocha até ao presente, a fim de conhecermos o augmento respectivo da extracção; por fim devemos comparar pela estatistica a producção dos differentes jazigos carboniferos, sommando os algarismos representativos dessa producção para conhecermos a extracção mundial e d’ahi o consumo geral.
Por ultimo, conhecendo os progressos da producção mundial e o algarismo que a representa, resta-nos averiguar se devem ou não existir na terra zonas ou paizes onde se devam ainda encontrar vastas bacias hulheiras, cuja exploração permitta retardar até certo ponto o esgotamento final dos jazigos de precioso mineral.
A hulha é presentemente indispensavel e se ella viesse a faltar a maior parte das industrias seriam mortalmente feridas; que se supponha, por um momento, que a producção das nossas velhas hulheiras parava por um motivo qualquer; então, as grandes fabricas cessariam a sua laboração quotidiana; a circulação ficaria interrompida nos caminhos de ferro, no mar e nos rios; o gaz extincto deixaria as nossas cidades sepultas na escuridão das noites sem luar e os globos electricos, faltando-lhes a fonte principal e originaria da sua energia luminosa de transformação, para sempre apagariam o seu magestoso fulgôr das nossas praças e dos nossos theatros, e a nossa propria existencia social, como de subito transportada a uma epocha passada da historia, experimentaria uma suspensão inevitavel na sua actividade, uma quebra fatal e terrivel nas suas aspirações e no seu bem estar…
(Continua).
Eduardo de Bettencourt Ferreira.
[NOTA - A continuação deste artigo efectuou-se nas edições n.º 16069, de 8 de Agosto (p. 5, c. 1-2), e n.º 16091, de 30 de Agosto (p. 3, c. 1-3)]
Eduardo de Bettencourt Ferreira - "A producção mundial da hulha e a extincção dos jazigos carboniferos / I"
in Diário de Notícias
de 25 de Julho de 1910, nº. 16055, p. 4 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1933.
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