Chronica scientifica
A regeneração do ar nos espaços confinados – Sobre um systema depurador e refrigerante do ar renovado
Ninguem ignora que, na epoca de calor, é sobretudo nos espaços fechados, nos lugares em que uma multidão se aglomera, onde o augmento de temperatura mais se faz sentir com todos os seus inconvenientes. Muitas vezes os acidentes a que certas pessoas são atreitas, conforme o seu temperamento e a sua predisposição, por causa do calor, são mais propriamente atribuidos ao ar viciado, cujos efeitos prejudiciaes a temperatura agrava na sua ascensão estival. É por isso que neste tempo a atmosphera dos templos, dos theatros, dos salões, das fabricas e outros sitios egualmente frequentados se torna perturbadora e insuportavel. A purificação do ar nos espaços confinados é pois de uma tão grande necessidade, como a das aguas de alimentação. Os hygienistas fazem as mais bem entendidas diligencias para tornar sofriveis estes locaes, assim como a simples habitação, cujo ar renovado e fresco a torna aprasivel no verão.
Se o aquecimento no inverno, sem perigo de viciação desse ar, é um conforto muito apreciavel da civilização moderna, principalmente nos paises que não teem como o nosso o bello sol por esquentador, afugentando pela sua intensa luminosidade e pelo seu calor, ao mesmo tempo os microbios e as tristezas, a refrigeração nesta quadra, de afogueantes lufadas, torna-se uma necessidade não menos imperiosa, sancionada pela hygiene.
Os systemas de caloriferos tem-se aperfeiçoado consideravelmente, facilitando esse aquecimento de uma forma economica e regular, alcançando uma temperatura suave, sem lançar na atmosphera deleterios productos de combustão. Não é tanto assim quanto aos modos de renovar e arrefecer o ar das quadras em que costumam acumular-se grande numero de pessoas, como acontece em theatros e nas oficinas, particularmente nestas ultimas, onde durante a estação calmosa os operarios passam horas de inclemencia, em salas ou atelieres pouco espaçosos, em casas mal construidas no ponto de vista da ventilação e da luz.
Regenerar essas atmospheras polluidas por tantas causas, difundir largamente a luz atravez dellas, saneal-as por meio de um arejamento racional e pratico e pela iluminação bem conduzida, regular a sua temperatura, tanto no inverno como no verão, é um dever social.
Consegue-se a constancia do grau calorifico nas estancias durante os mêses frios, o que representa uma dificuldade vencida, não sem trabalho; porém determinar o abaixamento de temperatura na quadra mais quente, ou mesmo em qualquer estação, nos lugares acumulados de gente, é outro problema, tanto ou mais difícil e dependente de maior numero de elementos.
Neste caso ha que atender tambem ás causas de inquinação pelos germes que pullulam habitualmente no ar, pelas poeiras que de ordinario os transportam, pelos gases e vapores que o tornam improprio para a respiração. Tenta-se afastar uns e outros por meio de correntes aereas, dirigidas de certo modo, trazendo o ar fresco do exterior e expulsando o viciado.
Para este efeito servem as variadas combinações de aparelhos e dispositarios [sic], alguns rudimentares e de ingenuidade quase infantil, outros complicados e elegantes, custosos e portanto insusceptiveis de entrarem na pratica corrente. Para similhante fim se inventaram as ventoinhas electricas, hoje muito generalisadas, nos seus diversos typos, mas de um resultado um tanto ilusorio, porque o ar que ellas agitam fortemente nem sempre é renovado e criam alem disso correntes frias, cuja persistencia se torna incomoda e até prejudicial e conservam em suspensão as poeiras e os microbios. Pretendeu-se obviar a esta circumstancia [sic] vaporisando na atmosphera substancias que os inutilizem, sem incomodar as pessoas que nella se demoram. Mas se a calefação é relativamente facil, se o uso de caloriferos pode vir a ser comodo e inofensivo, se a introducção de correntes de ar frio se pode praticar discretamente, tornando as atmospheras suportaveis, as mais das vezes os diferentes e complexos meios de as refrescar e purificar são ainda incompletos e ineficazes. Nas oficinas e nas salas de espectaculo neste tempo experimentam-se sensações de inferno dantesco e perturbações consequentes da imperfeita renovação do ar. Em regra os proprietarios e edificadores preocupam-se mais com a elegancia e o conforto do que com os principios de sanidade.
O que acontece nos nossos theatros é suficiente para dar o triste exemplo deste desequilibrio. Nenhum delles possue systema moderno de ventilação, a não ser alguma ventoinha electrica de efeito irrisorio ou contraproducente. A condução do ar é mal feita, de modo que quando se não sufoca dentro delles, passa-se a ser victima de resfriamentos.
A analyse do ar no ponto de vista da variação dos seus elementos normaes e introduzidos, da sua temperatura e humidade, da sua impureza bacteriologica, etc., nos sitios onde a sua alteração é provavel, é deveras instructiva.
É um estudo que entre nós não se acha encetado e deveria activamente proseguir [sic], nos termos em que tem sido executado noutros paises e que não pode ser mais interessante no ponto de vista da saude publica.
Sabe-se quanto uma temperatura elevada é deprimente quando coincide com uma grande humidade. É a caracteristica de certos climas, por isso mesmo prejudiciaes á saude. É tambem esta a causa de se tornarem desagradaveis certos dias de verão, particularmente na aproximação de tempestades. Para que o mal-estar se não faça sentir é preciso que o grau hygrometrico seja proporcional ao grau thermometrico; o excesso de um e de outro não é mau em absoluto; o que impressiona desagradavelmente é a desproporção entre estes factores. É mais facil de nos sujeitarmos a excessivo calor no deserto, onde o ar é de exagerada secura, do que na embocadura dos rios ou no litoral, nos climas tropicaes, onde a humidade é muito abundante e por isso a residencia nessas paragens se torna doentia para os europeus. Pelo contrario, o frio seco é mais difícil de sofrer do que nas atmospheras providas de uma certa quantidade de vapor d’agua, como se experimenta nos climas do norte. Destas observações se conclue legitimamente que é indispensavel estabelecer nas habitações e, por maioria de razão, nos sitios onde a gente se reune em grande numero, uma relação normal entre o grau de calor e a humidade. Não se deve pensar em aumentar ou diminuir aquelle sem corrigir esta.
Para chegar de um modo pratico á realização deste desideratum inventou uma companhia americana (Regenerated Cold Air C.º) que cultiva a especialidade do fabrico de aparelhos de refrigeração, uma machina denominada regeneradora, a qual permitte obter nas melhores condições, o arejamento de quaesquer locaes, sejam quaes forem as suas dimensões.
A regeneração do ar realiza-se neste aparelho pela corrente de agua que atravessa uma extensa superfície, emquanto [sic] é aspirado um grande volume de ar. Em contacto com esta superficie refrigerante o ar cede o excedente do seu calor e carrega-se de humidade. O aparelho está regulado de maneira a comunicar ao volume de ar que por elle passa, um determinado grau hygrometrico. O motor empregado é a electricidade, hoje de um uso universalmente espalhado como força motriz. Dois typos de machinismo adaptam este utilissimo invento ás condições em que carece de ser empregado, conforme as dimensões das quadras e o destino dellas. Um regenera 42m3 por minuto e o outro trata 170m3 na mesma unidade.
Uma particularidade curiosa redobra o valor desta invenção. Pode ella servir, mediante uma modificação relativamente simples do seu funccionamento, para um fim inteiramente diverso daquelle para que foi posta em pratica; presta egualmente para aquecer o ambiente, conservando-o devidamente humido. Ainda se consegue do mesmo aparelho a regulação hygrometrica, sem alteração na temperatura.
Para alcançar tão poderosos e variados efeitos basta substituir a corrente de agua fria pela de agua quente ou vice-versa. É facil comprehender que o ar passando no aparelho modifica a sua temperatura e humidificação segundo a da agua cujo contacto é levado.
Alem desta vantagem não é menor a de, pelo mesmo dispositorio, efectuar a depuração aerea, isentando a atmosphera de poeiras que a conspurcam e de microrganismos que a inquinam, quer se tome para alimentar o aparelho o ar exterior, quer se utilizem as camadas superiores do local em que elle se acha instalado.
Esta faculdade, junta á da possivel verificação da temperatura da agua que corre no ventilador, assim como da velocidade do mesmo, permitte regular exactamente as condições atmosphericas nos recintos limitados.
Escusado nos parece encarecer os serviços de um engenho tão prestavel e a altissima funcção hygienica que deve ser chamado a desempenhar especialmente nas instalações fabris, nos casinos, nos theatros, nos grandes armazens, escritores, etc., onde as machinas, o ajuntamento de pessoas, os diferentes focos de combustão contribuem para comunicar á atmosphera um calor sufocante, os miasmas prejudiciaes e as emanações deleterias.
J. Bettencourt Ferreira.
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / A regeneração do ar nos espaços confinados – Sobre um systema depurador e refrigerante do ar renovado"
in Diário de Notícias
de 28 de Julho de 1910, nº. 16058, p. 1 (c. 5-6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1936.